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A gestão como doença social: as enfermidades decorrentes das relações de trabalho contemporâneas

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26/03/2016 às 10:13
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3 SÍNDROME DE BURNOUT

A origem etimológica do termo burnout tem significado de “exaurido pelo fogo” ou “esgotado de tanto uso”. Para Benevides Pereira (2002), burnout pode ser entendido como “aquilo que chegou ao seu limite” e, em razão da ausência de energia, não há mais possibilidade de desempenhar reação física ou mental. É mister ressaltar, por conseguinte, que, na referida patologia, a exaustão experimentada pelo corpo humano se dá tanto no aspecto físico quanto no âmbito psicológico.

O burnout constitui um dos transtornos de comportamento relacionados ao ambiente de trabalho e é fruto da cronificação de um processo de estresse, enfermidade estudada no tópico anterior. A síndrome está intrinsecamente ligada ao estresse emocional decorrente do relacionamento com outras pessoas que apresentam sentimentos negativos, como o de frustração e fracasso.

É possível, ainda, que essa enfermidade acometa trabalhadores com alto grau de motivação. Isso ocorre quando, ao se encontrarem pressionados pelo atingimento de metas ou assediados moralmente, por exemplo, estes indivíduos tenham uma reação ao estresse do trabalho que é a de se esforçar cada vez mais, comportamento este que pode ocasionar um maior desgaste emocional, até o instante que entrarão em verdadeiro colapso.

Importante deixar claro, desde já, que, embora o estresse possa estar relacionado diretamente com a síndrome de burnout, com esta não se confunde. Enquanto o estresse apresenta duplo caráter, conforme afirmado no ponto dois do trabalho (diferença entre eustresse e distresse) a enfermidade objeto de estudo deste tópico possui apenas o aspecto negativo. E mais, esta síndrome está relacionada somente com as relações de trabalho, diferentemente do que ocorre com o estresse. Seria mais correto dizer que o burnout se configura como uma das consequências do estresse, para alguns, a mais relevante. O trabalhador acometido por esta enfermidade desiste de suas atividades, simbolicamente, quando percebe que todo o seu esforço e investimento afetivo empregado não surte efeito nos resultados e não trazem o retorno esperado.

Existem algumas profissões que são mais vulneráveis ao burnout. Geralmente são aquelas que envolvem uma relação direta de cuidado ou de amparo com terceiros, a exemplo dos profissionais de saúde, segurança pública e de educação, como enfermeiros, policiais, bombeiros, agentes penitenciários, assistentes sociais, oficiais de justiça, professores, dentre outros. São profissões caracterizadas pelo dia a dia de elevada exigência emocional, em que se requer intensidade no dever de cuidado, haja vista o perigo iminente e a responsabilidade atribuída aos mesmos. A síndrome de burnout também é comum nos casos de profissionais que se envolvem muito com o trabalho, não conseguindo distinguir os papéis que desenvolve na sociedade.

A título de ilustração, observa Schmidt (2013) que a insatisfação profissional vivenciada por trabalhadores de enfermagem em terapia intensiva se dá por inúmeros fatores como: os longos períodos de trabalho, as particularidades do local de assistência, a capacidade técnica e habilidades com equipamentos relevantes para a estabilidade do paciente etc. Com toda essa problemática, o profissional precisa adotar estratégias de enfrentamento para melhorar suas interações pessoais e profissionais, de forma a evitar transtornos relacionados ao estresse e não deixar sem cuidado o ser carente de necessidades.

Dentre as causas apontadas para que o trabalhador chegue ao seu limite estão: a superdemanda de trabalho, as condições precárias oferecidas no ambiente laboral, o sentimento de injustiça em relação ao seu desempenho, a falta de reconhecimento do esforço empregado, além da frustração e da autoestima abalada.

De acordo com Benevides Pereira (2002), são identificados quatro espécies de sintomas: a) os físicos, como o cansaço constante e progressivo, a sensação de exaustão, a insônia e o aparecimento de alergias; b) os cognitivos, a exemplo da dificuldade de atenção e concentração e as alterações de memória; c) os comportamentais, como a irritabilidade e incapacidade de relaxar e o abuso de drogas lícitas e ilícitas; e, por fim, d) os sociais, a exemplo da tendência ao isolamento e a perda do interesse pelo trabalho.

Percebe-se, portanto, que o burnout revela-se como uma consequência do estresse no ambiente laboral. O diagnóstico se dá por meio de exame clínico, avaliação do histórico laboral do trabalhador, além da utilização de instrumentos psicológicos específicos para o caso.

No que se refere ao tratamento adequado para combater tal enfermidade são apontados diversos tipos, desde atividades físicas regulares, até sessões de ioga ou relaxamento, sem prescindir do acompanhamento psicológico e psiquiátrico. Ressalte-se que o tratamento isolado não é eficaz.

Ademais, é preciso fazer uma reflexão crítica. Se não houver alteração no ambiente de trabalho que causou o adoecimento, todo o empenho e dedicação na recuperação no indivíduo será ineficaz. Diz-se isso tendo em vista que, embora o trabalhador se restabeleça, caso o ambiente laboral permaneça estagnado, ao retornar ao seu posto de trabalho, após eventual afastamento, as situações que desencadearam a enfermidade tendem a se repetir e todo o esforço empregado terá sido em vão.

O estudo de Tabeleão, Tomasi e Neves (2011) ao investigar o esgotamento profissional entre docentes observou a presença da síndrome de burnout, sendo fundamental para a prevenção deste transtorno a interação entre os profissionais, com um sistema de apoio para buscar metas reais no trabalho e evitar grandes expectativas. Condições dignas de trabalho, representatividade de classe, ambiente de prática profissional acolhedor e mudanças no sistema educacional são avanços que devem ser buscados na realidade, para diminuir os riscos dos trabalhadores do ensino.


4 SÍNDROME DE LER-DORT

As lesões por esforço repetitivo (LER) constituem uma designação que busca identificar um conjunto de distúrbios que atingem músculos, tendões e articulações dos membros superiores (dedos, mãos, punhos, antebraços e braços) e, eventualmente, membros inferiores e coluna vertebral (pescoço, coluna torácica e lombar). São lesões que acometem pessoas do mundo inteiro e estão diretamente relacionadas às tarefas, às condições dos ambientes físicos e à organização do trabalho. Ressalte-se que estudos recentes têm revelado a contribuição de fatores psicossociais para o desenvolvimento da referida síndrome.

Essa enfermidade é também conhecida por outras siglas como: DORT (distúrbio osteomuscular relacionado ao trabalho); LTC (lesão por trauma cumulativo); AMERT (afecções musculares relacionadas ao trabalho) ou, ainda, síndrome dos movimentos repetitivos.

Para Neves (2006), em regra, não há estrutura no ambiente de trabalho das organizações apta a prevenir e combater essa enfermidade. Considerada um das doenças do trabalho que mais crescem no Brasil, a LER-DORT constitui causa de afastamento e tem um forte impacto social, sobretudo, no campo previdenciário, visto que atinge, na maior parte dos casos, trabalhadores que se encontram no auge de sua produtividade e experiência profissional.

Segundo Siena e Helfenstein (2009), as chamadas lesões por esforço repetitivo não devem ser consideradas uma única enfermidade propriamente dita, mas sim uma síndrome constituída por um grupo de doenças, a exemplo da tendinite, da bursite e da tenossinovite, que afeta músculos, nervos e tendões dos membros superiores, principalmente, e sobrecarrega o sistema musculoesquelético. Este distúrbio provoca dor e inflamação e pode alterar a capacidade funcional da região comprometida.

Ainda segundo os autores, dentre os fatores de risco para o acometimento de LER-DORT estão: a) posturas inadequadas no local de trabalho; b) invariabilidade ou repetitividade da tarefa executada; c) frio, vibrações e pressões locais sobre os tecidos, principalmente dos membros superiores; d) exigências cognitivas que podem causar aumento da tensão muscular ou estresse; e) fatores organizacionais e psicossociais ligados ao trabalho, dentre outros.

Reflexão crítica que merece atenção neste momento consiste na diferenciação entre dois importantes conceitos: a chamada “prescrição do trabalho” e o “trabalho real”. A prescrição do trabalho está diretamente relacionada com a ergologia, que é a ciência que estuda a elaboração do ambiente laboral e analisa todas as variáveis que podem interferir no cotidiano da organização. Destarte, quando se pensa o modo como será realizado o trabalho, ou seja, o estudo de metas, objetivos, o controle dos gastos e a contratação dos empregados, falar-se-á em prescrição do trabalho. De outro lado, encontra-se o que se convencionou denominar de trabalho real. Aqui, trata-se do nível de execução das atividades e não mais de planejamento.

Qual seria, então, a importância de abordar tal distinção em um estudo sobre as enfermidades decorrentes das relações de trabalho contemporâneas? É preciso compreender a necessidade de que os gestores desçam no nível de execução (trabalho real) para saber como as tarefas são, de fato, realizadas no dia a dia das empresas. Somente assim, os responsáveis pela gestão terão condições de planejar melhor os rumos das organizações evitando, principalmente, moléstias que se tornaram verdadeiras epidemias, a exemplo da LER-DORT.

Outra questão relevante em relação a essa enfermidade é o preconceito envolvido em algumas situações. Muitas vezes, na ausência de sinais objetivos, o lesionado carrega o fardo de ter que provar que está doente, já que seu discurso é constantemente colocado em dúvida, tanto no ambiente de trabalho, como nos serviços de saúde e, até mesmo, no círculo familiar e de amigos.

Esse tipo de constrangimento pode ser traduzido por meio de certas práticas de invalidação da doença utilizadas pelos superiores hierárquicos, colegas de trabalho, médicos da empresa, peritos do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), familiares e pelo próprio lesionado. E mais, em tais circunstâncias, a perda da capacidade laborativa acaba sendo compreendida como uma forma de fuga do trabalho. Tal postura desconsidera os problemas e as dificuldades enfrentadas pelos trabalhadores lesionados e ocasiona outra fonte de sofrimento, sujeitando-os novamente ao processo de exclusão que favoreceu o adoecimento.

Percebe-se, portanto, que não é somente o indivíduo que adoece, mas todo o sistema do qual faz parte. De acordo com Neves (2006) o trabalhador doente é “culpabilizado” pelo seu estado. A restrição imposta pela doença o torna mais passivo e fragilizado. No caso da LER-DORT, além do sofrimento causado pelas limitações impostas pela dor e diminuição dos movimentos, há também a consternação decorrente das implicações da perda da capacidade laboral, o que acaba prejudicando, inclusive, suas relações sociais em geral.

Os profissionais mais expostos ao risco de serem acometidos por LER-DORT são: pessoas que trabalham utilizando computadores, a exemplo dos digitadores, os caixas de bancos e supermercados, trabalhadores de linha de montagem e de produção nas fábricas, os que operam britadeiras, músicos, esportistas, pessoas que fazem trabalhos manuais, como tricô e crochê etc.

No que se refere aos sintomas característicos desse tipo de enfermidade destacam-se as dores nos membros superiores e nos dedos e dificuldade para movimentá-los, alteração da temperatura e da sensibilidade dos mesmos, fadiga muscular, formigamento, redução na amplitude do movimento e inflamação. Observa-se que, na maioria dos casos, os sintomas apontados estão relacionados com uma atividade inadequada não somente dos membros superiores, mas de todo o corpo humano.

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O desenvolvimento da LER-DORT passa por cinco estágios. O primeiro estágio é descrito como transtorno funcional leve. Aqui a autonomia do paciente é total, no entanto, já existem dificuldades de movimentação no dia a dia. No segundo estágio, denominado de transtorno funcional moderado, há sensação de formigamento e fadiga muscular. Na fase de transtorno funcional médio, terceiro estágio, verifica-se limitação de mobilidade muscular. No quarto estágio, de transtorno funcional grave, identifica-se uma perturbação funcional dos membros e inflamação que não pode mais retroagir. No estágio de transtorno funcional muito grave, última etapa, há perda de força, déficit muscular, múltiplas limitações articulares e diminuição da capacidade de esforço.

É imperioso lembrar que somente a partir do quarto estágio é possível provar, por meio de exame clínico, a existência da LER-DORT. Ocorre que tal diagnóstico pode ser tarde demais para o trabalhador, haja vista que, após esse momento, as consequências podem ter se tornado irreversíveis.

Finalmente, cabe destacar as opções de tratamento recomendados para essa síndrome. O uso de anti-inflamatório e o emprego de gelo e água quente são indicados nos casos de crises agudas de dor. Nas fases mais avançadas da síndrome, utiliza-se a aplicação de corticóide na área da lesão ou por via oral. Há também a possibilidade de tratamento por meio de fisioterapia, acupuntura e medicação homeopática. Em último caso, recomenda-se a intervenção cirúrgica. Observam Moraes e Bastos (2009) que, em todas as hipóteses, ao retornar às suas atividades, o trabalhador não deve ser recebido com resistência por parte de seus colegas. Tal conduta em nada contribui para o bem-estar de toda a organização e pode constituir um fator psicossocial para o reaparecimento da doença.

Importante destacar que os conhecimentos de ergonomia, a ciência que estuda a melhor maneira de atingir e preservar o equilíbrio entre o homem, a máquina, as condições de trabalho e seu respectivo ambiente têm se mostrado bastante úteis no tratamento e prevenção da LER-DORT, visto que buscam assegurar a eficiência e o bem-estar do trabalhador. Seguindo esse raciocínio, é preciso que as empresas reorganizem a gestão do trabalho utilizando os conhecimentos da ergonomia e passem a adotar uma postura preventiva. Essa atitude contribuiria para a diminuição de trabalhadores acometidos por LER-DORT.

Ocorre que, por vezes, as organizações deixam de lado a preocupação com seu material humano, esquecendo que o trabalhador constitui seu principal ativo, e optam por uma postura absenteísma em relação a esse aspecto, passando focar as atenções única e exclusivamente no lucro. O resultado desse descaso é a deterioração da saúde dos seus empregados.

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Sobre o autor
Dante Ponte de Brito

Graduado em Direito pela Universidade Federal da Paraíba - UFPB (2006) e Mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba - UFPB (2008). Doutorando em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco - UFPE. Professor Efetivo da Universidade Federal do Piauí - UFPI. Membro do Grupo de Pesquisa "Constitucionalização das Relações Privadas (UFPE)". Autor da obra jurídica: "A Publicidade na Internet e a Violação dos Direitos do Consumidor". Membro eleito da Academia de Ciências do Piauí (ACIPI), ocupante da cadeira nº 27. Membro do Conselho de Consultores da Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR). É Advogado atuante e tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito, Civil e do Consumidor.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BRITO, Dante Ponte. A gestão como doença social: as enfermidades decorrentes das relações de trabalho contemporâneas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4651, 26 mar. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/34325. Acesso em: 18 abr. 2024.

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