Nas aulas da Pós-graduação em Direito do Estado que tive a felicidade de cursar pela Universidade Católica de Brasília, em certa feita fomos instados a participar de debate sobre a possibilidade ou não da tributação sobre o livro eletrônico.
Dois professores do curso tinham opiniões jurídicas diversas, o Prof. Oswaldo Othon expunha de modo inflexível, que, se o ordenamento hoje espelha tão somente a imunidade relativa aos livros de papel, é porque foi da vontade do legislador constituinte que assim o fosse, achou que atenderia às necessidades da sociedade à época, tentando não cercear a liberdade de imprensa e acesso aos menos favorecidos, já que, na época o livro de papel parecia ser um meio bastante viável de acesso à informação, embora já fossem conhecidos outros meios de livros.
Defendia ainda a tributação do livro eletrônico pautada na evasão da arrecadação tributária, já que por trás de uma possível imunidade tributária concedida aos livros eletrônicos, poderiam se esconder, sobre pseudos-livros, uma gama infinda de outros produtos que não livros, entre eles hipertextos, recursos audiovisuais, e outros tantos.
Já o professor Aldemário Araújo Castro, por sua vez, defendia a imunidade tributária do livro eletrônico, e para isso tecias considerações que remontavam às definições acerca do tema – livro, entre as quais, estão as que pendem para o lado físico-material (a maior parte delas), dizendo ser um conjunto ou reunião de folhas agrupadas, encadernadas; e em outra definição, tem-se a menção ao lado do conteúdo do livro, a qual o define como obra em prosa ou verso.
Abordava, ainda a questão do momento histórico no qual as leis se inserem quando formuladas pelos legisladores, e que, de certo modo as justificam.
Nesse cenário manifestei-me no seguinte sentido:
“É sempre bom lembrar que na clássica divisão dos vários ramos das ciências, o Direito pertence às ciências sociais; que é de matéria propedêutica o brocardo ubi jus ibi societas; que numa visão jusfilosófica podemos conceber o direito numa estruturação tripartite de fato, valor e norma com sua implicação-polaridade (Reale), e que sempre, ao se tratar com relações jurídicas, invariavelmente teremos repercussão no âmbito social.
A questão em debate suscita da possibilidade ou não da tributação do livro eletrônico, defendida afirmativamente pelo Prof. Othon e negativamente pelo Prof. Adelmário, tendo como paradigma norma constitucional insculpida em nossa CF/88 no Art. 150, VI, d.
Mostra-se de grande relevância a observação que o momento histórico da produção normativa constitucional reflete a realidade daquele momento social, e que se o constituinte originário, mesmo tendo oportunidade, não preferiu dar maior espectro de atuação à norma, é porque entendeu, enquanto representante dos anseios e agruras do povo, numa perspectiva sócio-jurídico-econômica de um país em recessão e recém saído de um regime militar, que a razão de ser da imunidade prevista no texto constitucional, e nada surge sem uma causa, uma razão suficiente, uma necessidade, está no interesse da sociedade em ver afastados procedimentos, ainda que normatizados, capazes de inibir a produção material e intelectual de livros, jornais e periódicos (RE 174.476, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 12/12/97), pois tinha como finalidade precípua evitar embaraços ao exercício da liberdade de expressão intelectual, artística, científica e de comunicação, bem como facilitar o acesso da população à cultura, à informação e à educação (RE 221.239, Rel. Min. Ellen Gracie, DJ 06/08/04). E nesse panorama, o constituinte originário bem entendeu, que livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão, numa concepção “clássica” deviam ser imunes aos impostos.
Estamos tratando de uma norma constitucional, que não deve ser interpretada sob a visão dos métodos da hermenêutica clássica, até porque não se concebe hodiernamente, encarar o direito sob o manto do Estado Liberal, que diante da necessidade de condicionar a força do Estado à liberdade da sociedade, erigiu o princípio da legalidade como fundamento para sua imposição.
Vivemos num Estado Constitucional em que os princípios (constitucionais) não servem apenas para explicar, esclarecer ou ser fundamento de uma regra, mas apresentam-se com força normativa e devem ser obrigatoriamente respeitados e aplicados. Seja a norma constitucional formal ou material (Schimitt), seja fundamento legitimador do resto do ordenamento (Kelsen), ela deve verdadeiramente atender a necessidade de seu povo (Lassale). Assim, aplicar uma interpretação, literal, restritiva à norma do Art. 150, VI, d da CF/88 não seria alinhada à evolução social brasileira, até porque como explicado no parágrafo anterior, não atenderia o escopo da norma que é evitar embaraços ao exercício da liberdade de expressão e permitir livre acesso à cultura, à informação e à educação.
Quanto ao argumento de que os livros eletrônicos necessitariam de meios indiretos de leitura, que devem ser tributados, não tem sustentabilidade, pois analogamente estariam na categoria de produtos acessórios tais quais, outros insumos não compreendidos no significado da expressão ‘papel destinado à sua impressão’ (RE 244.698-AgR, Rel. Min. Ellen Gracie, DJ 31/08/01) ou aos serviços de composição gráfica necessários à confecção do produto final (RE 230.782, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ 10/11/00), que também são de difícil identificação e passíveis de tributação.
A função do intérprete não é atuar como legislador positivo (isso cabe ao poder legislativo), mas antes de tudo de respeitar a Constituição e fazê-la efetiva.
Por tudo, filio-me à corrente que defende a imunidade preceituada no Art. 150, VI, d da CF/88 como extensiva ao livro eletrônico.