À espera do Relatório da Verdade: mais uma arma para combater a “Lei do Silêncio”

09/12/2014 às 10:01
Leia nesta página:

Dia 16 de dezembro será divulgado o Relatório da Comissão Nacional da Verdade, onde deve ser apresentado um inventário dos crimes da ditadura militar, especialmente tortura, que é um crime contra a humanidade.

Tem dias que a gente se sente
Como quem partiu ou morreu
A gente estancou de repente
Ou foi o mundo então que cresceu

A gente quer ter voz ativa
No nosso destino mandar
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega o destino pra lá

Roda Viva, Chico Buarque

No dia 16 de dezembro de 2014 termina o prazo para que a Comissão Nacional da Verdade, instituída pela Lei nº 12.528, de 18 de novembro de 2011 apresente o relatório final sobre os crimes “conexos” praticados durante a ditadura militar.

Espera-se que o Relatório exponha um pouco da verdade apagada dos nossos livros de história durante o período ditatorial e que também possa ser utilizado como instrumento para reduzir a violência praticada pelas forças policiais ainda nos dias atuais.

Sobre a punição de perseguidores, censores e torturadores, a luta deve continuar, até porque o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADPF nº 153/2010, considerou que o tratamento equivalente dado aos crimes políticos e aos “crimes conexos”, proposto pela Lei nº 6.683, de 28 de agosto de 1979, como adequado à Constituição de 1988.

Curiosamente, o Supremo Tribunal Federal considerou como adequado à Constituição uma norma que contraria direito fundamentais inscritos no seu texto, expressamente no art. 5º, que proíbe a tortura e o tratamento desumano ou degradante.

A expressão “crimes conexos”, prevista na Lei de Anistia, é uma forma de abrandamento da violência praticada por repressores, torturadores, e criminosos de todos os tipos que, em nome do Estado, da Lei e da Ordem, levaram milhares de pessoas para os porões do DOPS e do DOI-CODI, durante os “anos de chumbo” para práticas de tortura e outras formas agressivas de violência. Não podemos esquecer, ainda, daqueles que foram espancadas e torturadas em praça pública sem nenhuma atividade política ativa, como vários camponeses da região do Araguaia.

Portanto, os “crimes conexos” são crimes comuns, e não crimes políticos. Não se tratava de uma lutava em defesa de ideais, princípios ou valores, e sim de uma perseguição violenta contra aqueles que lutavam pela abertura política e por democracia.

Ao contrário do que pregam alguns teóricos do silêncio, a nossa ditadura militar não perdeu em nada, no que se refere à violência, para os movimentos de caserna do Chile e da Argentina. A morte e a tortura de Mário AlvesCarlos MarighelaVladimir HerzogRubens Paiva e milhares de outros seres humanos pelas forças de repressão são provas concretas dos crimes praticados na ditadura militar.

A diferença entre Brasil, Chile e Argentina, é que nos dois últimos países não existiu a “Lei do Silêncio” (apelido dado à nossa Lei da Anistia), para a liberação dos responsáveis pelos “crimes conexos“, mas a prisão e a punição dos detratores da dignidade humana.

Pau-de-arara”, “choques elétricos”, a “cadeira do dragão”, a “pimentinha”, os espancamentos, a “geladeira”, dente outros, são apenas alguns exemplos dos métodos adotados pelos torturadores, que iam desde o uso de produtos químicos até o empalamento.

A descrição da violência sofrida pelo frei dominicano Tito de Alencar Lima, o Frei Tito, é bem ilustrativo do tratamento “brando” conferido pelos nossos torturadores contra aqueles que consideravam como opositores, e leia-se com clareza, “opositores reais ou fictícios”:

“[…] Ao chegar à OB fui conduzido à sala de interrogatórios. A equipe do capitão Maurício passou a acarear-me com duas pessoas. O assunto era o Congresso da UNE em Ibiúna, em outubro de 1968. Queriam que eu esclarecesse fatos ocorridos naquela época. Apesar de declarar nada saber, insistiam para que eu “confessasse”. Pouco depois levaram-me para o “pau-de-arara”. Dependurado nu, com mãos e pés amarrados, recebi choques elétricos, de pilha seca, nos tendões dos pés e na cabeça. Eram seis os torturadores, comandados pelo capitão Maurício. Davam-me “telefones” (tapas nos ouvidos) e berravam impropérios. Isto durou cerca de uma hora. Descansei quinze minutos ao ser retirado do “pau-de-arara”. O interrogatório reiniciou. As mesmas perguntas, sob cutiladas e ameaças. Quanto mais eu negava mais fortes as pancadas. A tortura, alternada de perguntas, prosseguiu até às 20 horas. Ao sair da sala, tinha o corpo marcado de hematomas, o rosto inchado, a cabeça pesada e dolorida. Um soldado, carregou-me até a cela 3, onde fiquei sozinho. Era uma cela de 3 x 2,5 m, cheia de pulgas e baratas. Terrível mau cheiro, sem colchão e cobertor. Dormi de barriga vazia sobre o cimento frio e sujo […]”.

A OB era a “Operação Bandeirantes”, o OBAN, porão da Polícia do Exército, também apelidado pelo torturador Maurício Lopes como “sucursal do inferno”. Além do “pau-de-arara”, dentre outras torturas, Tito também conheceu a “cadeira do dragão”, foi espancado contínua e violentamente, e teve o seu corpo queimado por cigarros.

Portanto, nunca existiu nada de brando na nossa ditadura, salvo o tratamento dado aos torturadores pela Lei de Anistia, que ainda vivem livres e recebem pensões pelos cargos ocupados na época da sua aposentadoria. Enquanto isso, muitas famílias sequer tiveram o direito de enterrar seus mortos.

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Nesse sentido, o estado também deveria processar os torturadores e seus mandantes, e requerer indenização frente aos atos praticados por tais agentes, utilizando os recursos para apoiar a indenização das suas vítimas. Não se justifica que responsáveis por crimes contra a humanidade, como é a tortura, ainda continuem livres e sem nenhuma punição, nem de natureza moral.

Espera-se que o Relatório da Comissão Nacional da Verdade proponha a condenação dos culpados pela violência do estado ou que pelo menos exponha nominalmente os torturadores. Lembro que o dia 16 está próximo de 13 de dezembro, quando teremos o aniversário de outra página negra da nossa história que foi a publicação do Ato Institucional nº 05, medida esta que cassou direitos políticos e fechou todas as casas legislativas ainda toleradas pelos militares.Obviamente, o legislativo pós 1964 já não contava com parlamentares perseguidos ou mortos, como foi o caso de Rubens Paiva, morto em 1971.

No que se refere a Rubens Paiva, por sinal, em setembro deste ano, a Segunda Turma Especializada do Tribunal Regional Federal decidiu, por unanimidade, reestabelecer a ação penal para processar os responsáveis pela sua morte e desaparecimento.

Nas palavras da Procuradora Silvana Batini, “os crimes cometidos contra a humanidade não podem ser abraçados pela Lei da Anistia”, o que de fato é relevante. A punição dos responsáveis pelos crimes praticados por policiais e militares durante a ditadura também é uma medida pedagógica, para que o país não venha mais sofrer com a tortura e violência praticada pelos agentes do estado contra os seus cidadãos.

Relacionada a este tema, e que merece acompanhamento pelos cidadãos e cidadãs preocupados com fortalecimento da Democracia, a tramitação do PL 4471/2012, de iniciativa do Deputado Federal Paulo Teixeira (PT/SP), com o apoio dos Deputados Fábio Trad (PMDB/MS), e Protógenes Queiroz (PCdoB/SP), dentre outros, com o objetivo de impor limites aos “autos de resistência”,

Tais autos de resistência são as justificativas utilizadas por polícias para as mortes em operações policiais que, na maior parte das vezes, acabam não investigadas. A aprovação do PL 4471//2012 também seria uma resposta à violência incorporada por setores da polícia na época da ditadura militar e continua a ser praticada nas ultrapassadas prisões para averiguação ou nos inquéritos policiais.

Mas para tanto, ainda será necessário acabar com a “Lei do Silêncio”, e permitir que as famílias dos milhares de torturados, mortos e desparecidos políticos, tenham o direito de ter reparada a violência que sofreram. Também é fundamental que todos os brasileiros possam saber as verdades escondidas pela ditadura militar, e assim, que tais crimes não sejam mais praticados.

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Sobre o autor
Sandro Ari Andrade de Miranda

Advogado no Rio Grande do Sul, Doutorando em Sociologia.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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