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A função social da propriedade pública e o edifício Wilton Paes de Almeida

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Resumo:


  • O Edifício Wilton Paes de Almeida, um marco da arquitetura moderna em São Paulo, encontra-se desocupado e não cumpre sua função social, contrariando a legislação urbanística e patrimonial.

  • Como bem público federal, dominical e patrimonial disponível, o edifício deveria atender aos objetivos fundamentais da República, mas sua inutilização implica em descumprimento da função social da propriedade pública.

  • Medidas como parcelamento, edificação ou utilização compulsórios, IPTU progressivo no tempo e desapropriação são previstas para casos de não cumprimento da função social da propriedade urbana, mas sua aplicabilidade a bens públicos federais é limitada, sendo a desapropriação "inversa" uma possibilidade jurídica para o Município de São Paulo.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

4. IMPLICAÇÕES JURÍDICAS DECORRENTES DO DESCUMPRIMENTO DA FUNÇÃO SOCIAL

Como visto, o fato de o edifício Wilton Paes de Almeida estar inutilizado já o insere na categoria de bem público dominical, porém sua situação atual evidencia completo desrespeito à função social da propriedade urbana. O prédio não atende diretrizes do Plano Diretor do município de São Paulo e a ausência de qualquer uso a ele conferido afasta, ainda, a concretização de princípios estruturantes da ordem econômica.

A Constituição Federal, em seu artigo 182, parágrafo 4º, faculta ao Poder Público municipal a edição de lei visando exigir do proprietário de solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, o seu adequado aproveitamento.

Art. 182, CF - A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes.

(...)

§ 4º - É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de:

I - parcelamento ou edificação compulsórios;

II - imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo;

III - desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais.

O Município de São Paulo, na Lei Municipal n. 16.050/14, que instituiu o novo Plano Diretor da cidade, exercitou a faculdade constitucional acima transcrita, ao assim prescrever:

Art. 90, Lei Municipal n. 16050/14 - O Executivo, na forma da lei, poderá exigir do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado, ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de:

I – parcelamento, edificação ou utilização compulsórios;

II – Imposto Predial e Territorial Urbano Progressivo no Tempo;

III – desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública.

A lei mencionada no supratranscrito artigo 90 vem a ser o Estatuto da Cidade (Lei Federal n. 10.257/01), que disciplina as três medidas ali previstas.

Ao volvermos os olhos ao caso ora estudado, cotejando-o com as medidas constitucionais e legais tendentes à realização da função social da propriedade, percebemos que a primeira delas não se mostra aplicável à situação descrita.

O parcelamento e a edificação compulsória da área onde está o edifício não são medidas plausíveis de serem adotadas, uma vez que não estamos diante de gleba ou de terreno inutilizado, mas sim de uma construção com 22 (vinte e dois) pavimentos. Além disso, por estarmos diante de um bem tombado, a tentativa de adaptação destas duas medidas à situação prática ora colocada poderia comprometer o tombamento em si, com o risco de descaracterização da fachada do imóvel.

Com relação à utilização compulsória, também entendemos que o Poder Público Municipal não poderia adotá-la como sanção. Isso porque, em se tratando de imóvel público federal, competiria à própria União, no exercício de suas competências constitucionais e de seu poder discricionário, afetar o imóvel a uma destinação que atendesse o bem comum.

Embora o Município não possa adentrar à essa seara de conveniência e oportunidade da União no que tange à destinação do imóvel, é certo e inegável que o abandono do local é inaceitável e demanda urgente atuação federal.

A segunda medida prevista tanto no artigo 182, parágrafo 4º, da Constituição Federal, como no artigo 90, da Lei Municipal 16.050/14, já vem sendo adotada pela Prefeitura de São Paulo em diversos casos de imóveis ociosos, sobretudo localizados na região central da cidade (tal qual o edifício em questão). Porém, trata-se de medida que também não se mostra aplicável ao caso.

Com efeito, e à luz do disposto no artigo 150, inciso VI, alínea ‘a’, da Constituição da República, é vedado aos entes federados instituir impostos sobre o patrimônio, a renda e os serviços, uns dos outros. Logo, se a cobrança de IPTU já é vedada constitucionalmente, a utilização do IPTU progressivo no tempo também não se mostra possível.

Por fim, a última sanção àqueles que não conferirem adequado uso do solo urbano é a desapropriação, com pagamento mediante títulos da dívida pública. Sobre essa modalidade de sanção iremos nos dedicar doravante.

O Decreto-lei 3365/41 traz o seguinte preceito acerca da desapropriação entre entes federativos:

Art. 2o, DL 3365/41 -  Mediante declaração de utilidade pública, todos os bens poderão ser desapropriados pela União, pelos Estados, Municípios, Distrito Federal e Territórios.

(...)

§ 2o Os bens do domínio dos Estados, Municípios, Distrito Federal e Territórios poderão ser desapropriados pela União, e os dos Municípios pelos Estados, mas, em qualquer caso, ao ato deverá preceder autorização legislativa.

É dizer: a desapropriação entre entes federativos, de acordo com a legislação de regência, deve obedecer a uma determinada ordem, estando vedada, assim, a desapropriação de bens federais pelos Estados, Distrito Federal e Municípios, sendo que estes últimos também não poderiam desapropriar bens estaduais ou distritais.

Esta “escala expropriatória” prevista na norma acima transcrita, era compatível com o regime adotado na Carta de 1937, em meio ao qual tal Decreto-lei foi editado. Neste regime, foi praticamente abolido o Estado Federal no Brasil. Com efeito, o Decreto-lei 1202/39, ao dispor sobre a administração dos Estados e dos Municípios, determinou que os Estados seriam administrados por interventores federais até a realização de um plebiscito nacional, que jamais chegou a ser convocado.[27]

Naquele regime, a previsão contida no artigo 2º, parágrafo 2º, do Decreto-lei 3365/41, mostrava-se compatível com a centralização de poderes e prerrogativas na União, o que criava uma aparente hierarquia de entes federativos, reproduzida, portanto, na aludida norma expropriatória.

A partir do momento em que o Estado Federado é restabelecido com a Constituição de 1946, não há falar mais em hierarquia entre entes federados e, portanto, não há falar em regra hierárquica para desapropriação. De mais a mais, a inaplicabilidade desta regra foi consolidada em nosso atual regime, instituído pela Constituição Federal de 1988, que prevê, em seu artigo 18, a autonomia da União, do Distrito Federal, dos Estados e dos Municípios.

Não havendo hierarquia federativa e tampouco superioridade da União no que tange às desapropriações, é forçoso reconhecer a inaplicabilidade do disposto no artigo 2º, parágrafo 2º, do Decreto-lei 3365/41.[28]

A única possibilidade de continuarmos a conferir eficácia à citada norma seria se a analisássemos sob o aspecto dos interesses federativos envolvidos, fazendo a ressalva de que tratamos, aqui, de interesse público primário. E, nesse ponto, temos que reconhecer a existência de hierarquia entre os interesses nacionais, regionais e locais, o que, por óbvio, não implica no reconhecimento de hierarquia entre os entes federativos.

É por isso que, desse modo, a escala expropriatória do art. 2º, §2º, do Decreto-lei n.3.365/41, só deve ser aplicada quando as pessoas nela referidas estiverem agindo em nome de interesses públicos primários, pois, para nós, a única razão capaz de justificar a prevalência de interesses postos a cargos de pessoas políticas juridicamente iguais é a maior abrangência desse interesse sobre o qual prevalecerá, devendo-se tomar a expressão abrangência do interesse no sentido do número de beneficiários que a satisfação desse interesse pode alcançar.[29]

Dessa maneira, e adotando em nosso estudo as lições de Letícia Queiroz de Andrade, a aplicabilidade do artigo 2º, parágrafo 2º, do Decreto-lei 3365/41, apenas teria sua razão de ser quando estiverem em choque dois interesses públicos primários. Nesse caso, deverá prevalecer o interesse público primário de maior abrangência, ou seja, aquele capaz de atingir um número maior de beneficiários.

Logo, a validade da citada norma depende de que a ela se atribua a interpretação acima, isto é, de que ela contemple um critério para a resolução de conflitos relacionados à desapropriação de bens públicos quando estejam se contrapondo dois interesses públicos primários, prevalecendo o interesse nacional sobre o regional e o local, e o regional sobre o local.[30]

Caso não estejamos diante de conflito de interesses, há a possibilidade de desapropriação “inversa”.

Feitas estas ponderações, passamos a analisa-las em conjunto com nosso estudo.

Verificamos com o edifício Wilton Paes de Almeida, bem público federal dominical situado em área urbana, não cumpre sua função social. A Constituição Federal, o Estatuto da Cidade e a Lei Municipal 16050/14 estatuem que, nesses casos, o adequado uso do bem será promovido, sob pena de parcelamento, edificação ou utilização compulsórias; IPTU progressivo no tempo; ou desapropriação mediante pagamento em títulos da dívida pública.

As duas primeiras medidas seriam inaplicáveis ao caso, nos termos das razões expostas alhures. E, diante das conclusões alcançadas sobre a possibilidade de desapropriação “inversa”, temos que a desapropriação seria instrumento adequado na situação ora tratada.

Não estamos diante de conflito de interesses públicos primários que autorize seja invocada a escala hierárquica prevista no artigo 2º, parágrafo 2º, do Decreto-lei 3365/41. O edifício não está afetado a qualquer destinação pública e o uso que poderia ser feito dele destinar-se-ia ao atendimento de interesses locais, ainda que de forma a concretizar princípios de maior jaez (como o direito à segurança pública e o direito à educação, considerando-se aqui a instalação da Polícia Federal no prédio e a frustrada criação do instituto de ciências jurídicas da UNIFESP).

Dessa maneira, adotando o raciocínio que admite a desapropriação “inversa” e tratando do caso concreto dentro dos limites de uma discussão eminentemente jurídica (sem levar em consideração questões políticas que envolvam o assunto), temos que é possível a imposição de sanção, pelo Município de São Paulo, ao Poder Público federal pela inutilização do edifício Wilton Paes de Almeida, fazendo-o por meio da desapropriação.

E, nesse caso, o Município teria que conferir aproveitamento ao imóvel no prazo de cinco anos, a contar da incorporação, aproveitamento este que pode se dar por meio de atuação direta municipal ou através da alienação ou concessão do imóvel a terceiros, via processo licitatório.

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5. CONCLUSÃO

Marco na arquitetura de São Paulo e tombado pelo Conpresp, o edifício Wilton Paes de Almeida trouxe à cidade o conceito da courtain wall, trabalhado por Le Corbusier no exterior. Um prédio com tamanha relevância para a história da arquitetura deveria estar sendo empregado de modo a prestigiar não apenas sua própria estrutura, mas também a promover o desenvolvimento socioeconômico, sobretudo na região central da cidade, onde está situado. Em outras palavras, esse conceituado imóvel deveria estar atendendo à sua função social.

A inutilização do prédio pelo Governo Federal, tornou latente a necessidade de discutir se o próprio federal está ou não cumprindo sua função social. Isso porque os bens públicos também devem cumprir sua função social.

Constatado que o próprio não cumpre a função social da propriedade privada e, indo mais além, não observa também a função social da cidade, tornou-se necessário verificarmos quais das medidas sancionatórias tendentes ao uso adequado do solo urbano são aplicáveis ao caso concreto.

E, com isso, verificamos que a única medida plausível de ser aplicada é a desapropriação e, nesse caso, a desapropriação “inversa”, que, como vimos, é totalmente compatível com nossa nova ordem constitucional.

Dessa forma, não haveria como o Município de São Paulo compelir o Poder Público Federal a conferir adequado uso ao prédio, uso este tendente à concretização de sua função social, pois a única sanção cabível diante do descumprimento da função social da propriedade urbana, nesse caso, seria a incorporação do imóvel ao patrimônio público municipal, por meio da desapropriação.

Ao verificarmos as conclusões alcançadas para o caso do edifício Wilton Paes de Almeida, podemos estende-las a qualquer próprio federal ou estadual situado dentro dos limites urbanos de um Município e que não esteja cumprindo sua função social urbana. Em qualquer desses casos, não será possível que o respectivo Município compila o ente federativo a agir como forma de garantir que aquele imóvel atenda as diretrizes do plano diretor e, conseguintemente, cumpra sua função social.

Como vimos, duas das três medidas constitucionalmente previstas para casos como tais não são aplicáveis a imóveis públicos, seja por implicarem em possível desrespeito à autonomia do ente federativo (no caso de edificações, parcelamentos e utilizações compulsórias), seja por acarretarem afronta à imunidade tributária. A única medida plausível, pois, é a desapropriação.

Nesse diapasão, o descumprimento da função social da propriedade pública urbana por parte da União ou dos Estados-membros, acaso queira ser combatida e a desapropriação seja bem sucedida, repassará ao Município o ônus de conferir ao imóvel o adequado aproveitamento, seja diretamente, seja por meio de licitação para alienação a terceiros. É dizer, em se tratando de função social da propriedade pública urbana, caso não haja a observância voluntária por parte dos entes federados desta máxima, o Município é o único que poderá fazê-lo, após a incorporação do imóvel ao seu patrimônio.

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Sobre o autor
Thomas Augusto Ferreira de Almeida

Procurador Federal. Doutorando em Direito Constitucional pela PUC/SP. Mestre e Especialista em Direito Administrativo pela PUC/SP. Membro da Comissão de Direito Administrativo da OAB/SP. Professor-assistente da pós graduação lato sensu da PUC/SP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALMEIDA, Thomas Augusto Ferreira. A função social da propriedade pública e o edifício Wilton Paes de Almeida. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4739, 22 jun. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/35146. Acesso em: 24 dez. 2024.

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