CAPÍTULO II 2. Os Princípios no Direito de Família
O positivismo jurídico não é capaz de acompanhar a realidade e a evolução social da família, pelo que esta, além de ter grande amplitude de possíveis relações, sofre mutações com facilidade tamanha que o regramento é incapaz de contemplar todas as hipóteses de situações possíveis, tão pouco de se adaptar a tempo.
É por esse pretexto que, em muitos casos, as leis não trazem os elementos necessários e suficientes para que o mais próximo ao justo seja alcançado. Desse modo, os operadores do direito partem em busca de fontes outras, como os princípios gerais, a fim de encontrar aquilo que mais se aproxime do ideal de retidão.
Nesse sentido, PEREIRA (2006) entende que são os princípios gerais do direito, dentre todas as demais fontes, o lugar em que se encontra a melhor viabilização para a adequação da justiça, especialmente no que corresponde ao ramo familiar.
O autor aduz ainda que os princípios exercem dupla função, sendo a primeira delas a função de otimização do direito.
Em outras palavras, a sua força deve alcançar toda organização jurídica, inclusive preenchendo lacunas legislativas, independente de serem expressos ou não expressos. Já a segunda função dos princípios jurídicos é a de possuírem papel sistematizador do ordenamento, dando-lhe suscetibilidade de valoração, bem como dinamicidade, na proporção em que conferem axiologia à interpretação das regras positivas. Com efeito, a utilização dos princípios como norte em casos concretos é o que afasta o engessamento e a sobreposição do direito sobre os fatos, conduzindo-nos à essência do direito, na direção de resguardar o sujeito, em detrimento de seu formalismo. Portanto, a partir da nova hermenêutica civil-constitucional, os princípios ganharam força normativa para apaziguar as relações familiares, sempre tendo em vista a pessoa humana.
2.1 Os Princípios em espécie
2.1.1 O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana
O princípio que mais importa ao presente estudo é o da dignidade da pessoa humana, previsto no artigo 1º, III, da Constituição Federal de 1988, como fundamento da República Federativa do Brasil. Na atualidade é impossível pensar em direito sem considerar o conceito de dignidade da pessoa humana, pois hoje a dignidade é vista como um macroprincípio sob o qual irradiam e estão contidos os demais.
A palavra “dignidade” tem a raiz etimológica proveniente do latim dignus – aquele que merece estima e honra aquele que é importante. É o que distingue os seres humanos dos demais, sendo a dignidade inerente à espécie humana como um todo.
A dignidade da pessoa humana é um conceito que tomou os contornos presentes em 1788 através do pensamento de IMMANUEL KANT, em Fundamentação da Metafísica dos Costumes e Outros Escritos. Nessa obra, o filósofo estabeleceu a moralidade em bases novas através do que chamou de “imperativo prático”, que determina aos sujeitos que ajam de maneira tal que possam usar a humanidade, própria e alheia, sempre e simultaneamente, como um fim e nunca simplesmente como um meio.
É que, a partir do raciocínio kantiano, o homem passou a ser considerado como um ser dotado de valor intrínseco, de dignidade, pois “o que se faz condição para alguma coisa que seja fim em si mesma, isso não tem simplesmente valor relativo ou preço, mas um valor interno, e isso quer dizer, dignidade”.
Sobre a temática, a Ministra CARMEM LÚCIA ANTUNES ROCHA (2000) considera a dignidade como o pressuposto da ideia de justiça humana. Explica que assim o faz por entender a dignidade como ditadora da condição superior do homem como ser de razão e de sentimento e que, por sê-lo assim, independe de merecimento pessoal ou social. Sintetiza elucidando que a dignidade é inerente à vida e um direito pré-estatal.
Para KANT (2005), no mundo social existem duas categorias de valores, o preço e a dignidade. Na proporção em que as coisas têm um preço, um valor exterior (de mercado), as pessoas tem dignidade, cujo valor é interior (moral) e de interesse geral. Sendo o valor moral infinitamente superior ao valor de mercadoria, então impõe-se o “imperativo prático” segundo o qual as pessoas devem agir de tal sorte que seja considerada a humanidade, própria e alheia, sempre e simultaneamente como um fim e jamais como um meio.
Conclui-se, por tal noção filosófica do que seja dignidade, que se trata de tudo que não tenha preço e que não possa ser objeto de troca, porquanto inestimável e indisponível. É a dignidade que posiciona o homem em uma condição superior, como ser de razão e de sentimento50, motivo pelo qual é papel do julgador e do legislador ter em vista o valor humano no exercício de suas atribuições.
Tendo em conta que o princípio da dignidade da pessoa humana assenta o sujeito de direito e a sua dignidade como o núcleo de uma teoria de justiça, em que o Direito é considerado o instrumento de ordenação racional indissociável da realização do justo, não é razoável que instituições humanas sejam constituídas sem que a pessoa humana tenha a sua dignidade resguardada.
Com efeito, PEREIRA (2006) assegura que como a dignidade do homem é intangível, é papel do Poder Público respeitá-la e protegê-la. Expõe ainda que a dignidade é o atual paradigma do Estado Democrático de Direito, a determinar a funcionalização de todos os institutos jurídicos condicionada à pessoa humana.
E é nesse mote que o Estado assume o papel de protetor do respeito à dignidade da pessoa humana, tanto do ponto de vista de conceder direitos, quanto de garantir que estes não sejam violados.
Conforme já dito, uma vez que a família é a base da sociedade, e também elemento indispensável ao desenvolvimento do ser humano, a organização estatal deve ser orientada para livrar seus membros de quaisquer medidas que venham a supri-los da convivência em ambiente familiar permeado de valores tais como o afeto e o cuidado.
Dizemos isso por entendermos que a supressão desses valores, principalmente nos primeiros estágios de vida da pessoa, reduz as possibilidades de que essa pessoa desenvolva todas as suas capacidades psicofísicas. Como crianças e adolescentes são vulneráveis e dependem de outros ao seu redor a fim de que possam crescer física e mentalmente, daí a importância desses valores e a relevância dos genitores no papel estruturante da personalidade da prole.
Portanto, o interesse público na conservação dos papéis paterno e materno reside na repercussão do exercício das atividades de cuidado e afeto precípuas do encargo dos genitores, em favor da dignidade dos menores.
2.1.2 O Princípio da Paternidade e da Maternidade Responsável
O princípio da paternidade ou da maternidade responsável decorre do imperativo constitucional, no que toca o dever de se fazer um planejamento familiar, preexistente ao próprio nascimento da criança.
A responsabilidade paterna ou materna não se esgota neste planejamento e na conscientização da importância do instituto. Ademais disso, a paternidade/maternidade responsável pressupõe o cumprimento das obrigações materiais e morais para com os filhos, a fim de propiciar o seu desenvolvimento regular. Com efeito, o normal desenvolvimento da pessoa somente é possível se ela tiver condições dignas de sobrevivência, motivo pelo qual não basta que sejam destinados recursos materiais a fim de criar e educar a prole, há que respeitá-la em sua dignidade (PEREIRA, 2006, p.52).
Isso porque pais e a mães responsáveis têm consciência de que o inadequado exercício de suas funções interfere de maneira prejudicial ao crescimento dos infantes.
De fato, o desprezo, a indiferença e a falta de afeto interferem na formação da personalidade e, conforme apontado por MARIA ISABEL PEREIRA DA COSTA (2008), resultam como consequência em uma pessoa agressiva, insegura, infeliz, o que é danoso não só para o indivíduo, como também para toda a sociedade, dada a maior criminalidade de indivíduos nessas condições.
A paternidade/maternidade responsável, portanto, se manifesta na consciência dos pais acerca dos encargos decorrentes da decisão de se ter um filho e na efetiva disposição do suporte material, moral, espiritual e afetivo para o pleno desenvolvimento da personalidade da prole, formando indivíduos aptos ao convívio social.
2.1.3 O Princípio da Afetividade
O princípio da afetividade é um dos desdobramentos do princípio do respeito à dignidade da pessoa humana, na medida em que toda a orientação jurídica desenvolve-se no sentido de garantir ao indivíduo uma vida digna, atribuindo valor jurídico ao afeto, sobretudo nas relações entre pais e filhos.
Conforme destacado por PEREIRA (2006), a família até o século XIX era claramente patriarcal e estruturava-se em torno do patrimônio, sendo um agrupamento de indivíduos cuja razão de ser era precipuamente de cunho econômico. Com a nova ordem civil constitucional, a estrutura familiar deixou de lado as motivações econômicas, que anteriormente tinham importância primária nessas relações, dando lugar a elos afetivos, justificados pela solidariedade mútua.
É o princípio da afetividade que confere substrato material à convivência familiar como direito-dever, nos moldes do artigo 227 da Carta Magna. É dito isso, pois, a convivência familiar é um direito da criança e do adolescente, no melhor interesse desses menores, bem como dever dos pais para com sua prole, tendo em vista a paternidade/maternidade responsável.
A ratio desse dispositivo está no reconhecimento da família como o lócus de realização do indivíduo, onde ele inicia seu desenvolvimento pessoal, seu processo de socialização, tomando suas primeiras lições de cidadania56. A convivência em ambiente familiar, permeado de afeto, é de especial essencialidade na vida dos menores; uma vez que, dada a sua peculiar condição de seres em desenvolvimento, merecem dispor do apoio e do afeto de seus pais a fim de que tenham uma formação adequada (PERREIRA, 2006, p.182).
No que toca os deveres paternos quanto aos filhos, este princípio é corolário do princípio da paternidade/maternidade responsável, pelo que determina que aos pais cumpre realizar o planejamento familiar. Já em relação aos filhos, o respeito ao princípio da afetividade, quanto à convivência familiar, é o que concretiza o melhor interesse dos menores, porquanto o afeto seja imprescindível em sua formação.
Dessa maneira, a partir dos fenômenos da despatrimonialização, decorrente da repersonalização das relações privadas, o foco das relações jurídicas passou a ser a pessoa humana, a realização dos membros da família e o relacionamento baseado no afeto, na importância da convivência familiar e na solidariedade mútua.
2.1.4 O Princípio do Melhor Interesse da Criança e do Adolescente
O princípio do melhor interesse da criança e do adolescente é um resultado da nova família cuja relação está pautada na afetividade e no companheirismo. Nesse contexto, o menor ganhou destaque especial pelo fato de ser imaturo e vulnerável, precisando que os pais o conduzam em direção à autonomia.
Este princípio tem suas raízes na doutrina da proteção integral, que segue as orientações do já mencionado artigo 227 da Lei Maior, segundo o qual é assegurado como dever dos pais, do Estado e da sociedade, e também como direito fundamental dos infantes, o convívio familiar, na mesma medida em que assegura os direitos à vida, à saúde, à educação, à liberdade, ao respeito e à dignidade, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
De acordo com MARIA ISABEL PEREIRA DA COSTA (2008, p.58), a proteção integral é um conceito pós-moderno, por tratar a criança e o adolescente em sua integridade, deliberando a convivência familiar, bem como a comunitária, como um direito fundamental dessas pessoas em desenvolvimento.
O especial apreço conferido aos infantes funda-se no reconhecimento de que
a família tem por objetivo a promoção do menor, enquanto pessoa frágil e vulnerável, para que bem desenvolva suas potencialidades no tocante a sua educação, formação moral e profissional.
Seguindo a orientação constitucional, foi elaborado o Estatuto da Criança e do Adolescente. O art. 1º do ECA elucida que suas disposições tratam da efetivação da doutrina da proteção integral. Dentre os direitos garantidos àqueles que se submetem ao ECA, está o direito à saúde. Conforme as normas do Estatuto, a saúde garantida aos menores abrange não só a física, alcançando a saúde emocional e espiritual. A preservação da saúde mental das pessoas em desenvolvimento – isto é, de sua integridade psicofísica - tem por escopo garantir a formação de uma personalidade sadia de um indivíduo realizado e integrado à sociedade.
Nesse diapasão, note-se que cabe aos pais, no cumprimento dos seus deveres legais, proteger a criança e o adolescente de forma integral, não omitindo afeto e cuidado no exercício da paternidade, porquanto sejam tais valores elementos indispensáveis à formação plena da personalidade das pessoas em desenvolvimento.
2.2 A ponderação dos princípios jurídicos na perspectiva civil-constitucional
É certo, como defende RODRIGO DA CUNHA PEREIRA (2005, p. 33), vive-se em uma sociedade pluralista e multicultural e que, por isso, a Carta Magna muitas vezes contempla interesses contrapostos.
Em várias situações jurídicas subjetivas lados em conflito parecem ter alguma orientação que venha a assegurar o ponto de vista de cada qual, sugerindo um conflito intransponível. Todavia, a solução dessa circunstância subjetiva encontra o interesse que merece proteção jurídica através da ponderação dos princípios que circundam o caso.
Sendo inevitável o choque de interesses, representados pelos princípios em jogo, cuidou-se de buscar vias que solucionem a suposta encruzilhada. De tal maneira, estudos jurídico-filosóficos elaborados por ROBERT ALEXY (2008, p. 93), em Teoria dos Direitos Fundamentais, trouxeram à baila a corrente de pensamento que resolve a colisão de princípios jurídicos através da ponderação, feita pelo intérprete, dos bens jurídicos em jogo.
Para ALEXY (2008, p.95): se dois princípios colidem – o que ocorre, por exemplo, quando algo é proibido de acordo com um princípio e, de acordo com outro, permitido-, um dos princípios terá que ceder. Isso não significa, contudo, nem que o princípio cedente deva ser declarado inválido, nem que nele deverá ser introduzida uma cláusula de exceção. Na verdade, o que ocorre é que um dos princípios tem precedência em face do outro sob determinadas condições. Sob outras condições, a precedência pode ser resolvida de forma oposta. Isso é o que se quer dizer quando se afirma que, nos casos concretos, os princípios têm pesos diferentes e que os princípios com maior peso tem precedência.
Assim, havendo uma situação jurídica subjetiva, na qual dois ou mais princípios entram em conflito, é por meio do sopesamento entre os interesses conflitantes que será resolvida a controvérsia e decidido o princípio e interesse prevalecente no caso concreto.
Nesse viés, percebe-se que o “fiel da balança” tende a apontar em direção ao princípio da dignidade da pessoa humana, tendo em vista a pessoa como centro do ordenamento jurídico, ainda que não exista uma hierarquia entre os princípios jurídicos constitucionais.
A respeito desse tema, PEREIRA (2005, p. 35) comenta que não se proclama a hierarquia absoluta entre princípios, devendo-se observar a ascensão da dignidade humana na ordem jurídica, tendo em conta a prevalência do sujeito em detrimento do objeto nas relações jurídicas.
Dito isso, no caso de ocorrer uma colisão entre princípios, é papel do intérprete buscar a melhor forma de alcançar a dignidade da pessoa humana. Desse modo, no caso concreto, em havendo choque, a tendência é que o princípio a ceder em face de outro será aquele que se relacionar com a dignidade humana em menor amplitude. Logicamente, aquele que estiver mais ligado à dignidade tenderá a prevalecer.
Considerando que diversos são os setores da ordem jurídica que são alcançados pelo valor da dignidade, é imprescindível que sejam traçados os corolários desse princípio constitucional, sob pena de atribuir-lhe um grau de abstração tamanho que impossibilite sua aplicação.
Para tanto, desdobra-se o substrato material da dignidade em quatro postulados. São eles: a) o reconhecimento, por parte do sujeito moral (ético), e que existem outros sujeitos, iguais a ele; b) a consideração de que esses sujeitos iguais são merecedores do mesmo respeito à integridade psicofísica de que é titular; c) a ciência de que ele, como sujeito, é dotado de vontade livre, de autodeterminação; d) e, por fim, estar convencido de que ele é parte do grupo social, o que o garante de não vir a ser marginalizado. Esta elaboração tem por corolários os princípios jurídicos da igualdade, da integridade física e moral – psicofísica, da liberdade e da solidariedade.
Importa tal decomposição a fim de se mostrar que, em havendo conflitos entre duas ou mais situações jurídicas subjetivas, em que cada uma delas tem por amparo um desses princípios de igual importância hierárquica, então “o fiel da balança, a medida de ponderação, o objetivo a ser alcançado, já está determinado, a priori, a favor do princípio, hoje absoluto, da dignidade humana” (BODIN, 2003, p.84).
Em outras palavras, cumpre demonstrar que, embora possa haver um conflito entre duas situações subjetivas amparadas pelos princípios que conferem substrato material ao da dignidade humana, tal conflito é apenas aparente. Em verdade, se corretamente for feita a ponderação entre esses subprincípios no caso concreto, então é possível determinar aquele que prevalecerá.
Primeiramente, sobre o princípio da igualdade, este deve ser analisado sob seus dois aspectos, formal e material. Do ponto de vista formal, primeiro a ser concebido, o princípio reza pela garantia de que o sujeito não venha a receber qualquer tratamento discriminatório, tendo direitos iguais aos de todos os demais. Quanto à feição material, as diferenças entre os sujeitos de direito são reconhecidas, de modo a lhes conferir tratamento desigual na medida de suas desigualdades.
Acerca do princípio de proteção à integridade psicofísica da pessoa humana, contemplavam-se, tradicionalmente, apenas os direitos de não ser torturado e de ser titular de garantias penais. Todavia, na esfera cível moderna, trata-se também da garantia de diversos direitos da personalidade, compreendendo o “direito à saúde” em sentido amplo, que abrange o bem-estar psicofísico e social. O termo “integridade” vem do latim integritas, que significa inteireza, completude, totalidade (BODIN, 2003, p.93). É um estado de característica daquilo que está inteiro, que não sofreu qualquer diminuição. Transportada essa noção ao ordenamento jurídico, como princípio, a integridade psicofísica diz respeito ao direito de não ter a harmonia das capacidades físicas e psíquicas lesionadas ou diminuídas.
A respeito do princípio da liberdade e da autonomia privada, este passou por uma grande mudança desde as primeiras décadas do século XX. Isso porque, na época liberal, este princípio tinha como valor fundamental o indivíduo livre e igual, submetido à sua própria vontade. Naquele cenário, o direito cuidava de regular situações precipuamente patrimoniais e as restrições à liberdade ampla do indivíduo apenas existiam para proteger as liberdades dos demais particulares (BODIN, 2003, 94).
Na medida em que o Direito passou a cuidar de relações extrapatrimoniais, essa conjuntura deu lugar a uma nova, segundo a qual a autonomia privada encontra limites na ordem pública. É que, antes as limitações às situações subjetivos individuais constituíam exceção, passando, no quadro contemporâneo, a receber a tutela do ordenamento se e enquanto estiverem não apenas em conformidade com a vontade do titular, mas também se estiverem em sintonia com o interesse social (BODIN, 2003, p. 106).
Por fim, quanto ao direito-dever de solidariedade social, a concepção humanista, decorrente do pós-guerra no século XX, veio a combater todas as formas de agressão contra a coletividade. Por solidariedade, deve-se entender, em última análise, como “o conjunto de instrumentos voltados para garantir uma existência digna, comum a todos, em uma sociedade que se desenvolva como livre e justa, sem excluídos ou marginalizados”(BODIN, 2003, p. 114).
Destaque-se o caráter inovador do princípio da solidariedade esculpido no imperativo constitucional, a ser levada em conta na elaboração legislativa, na execução de políticas públicas e, também, na interpretação e aplicação do direito por seus operadores e demais destinatários. Na realidade, o princípio da solidariedade social tem força normativa capaz de tutelar o respeito a cada um do grupo, sendo, inclusive, “fundamento daquelas lesões que tenham no grupo sua ocasião de realização” (BODIN, 2003, p.110 e 111).
Nesse ponto, levanta-se a temática da contraposição entre dois dos princípios corolários da dignidade, quais sejam o direito de liberdade da pessoa e o direito de solidariedade social. A primeira vista, são incompatíveis, de modo que em situações subjetivas possam facilmente entrar em colisão. A solução do suposto conflito entre princípios se dá através da ponderação entre eles, tendo em mente o fim último do ordenamento, que é a realização da dignidade humana. Feito isso, ora um princípio prepondera, ora outro, a depender do caso concreto.
Na temática proposta no presente estudo, verifica-se que esses princípios entram em conflito nas ações que versam sobre a condenação a título de danos morais decorrentes do abandono afetivo nas relações paterno-filiais. Uma situação subjetiva passível de reparação deve estar amparada em, ao menos, um dos quatro princípios corolários da dignidade humana, quais sejam igualdade, liberdade, integridade psicofísica e direito-dever de solidariedade social, para que seja possível conferir tutela jurisdicional dos danos à pessoa humana. Caso nessa situação subjetiva mais de um desses em princípios estejam em conflito, há que ser feita a ponderação entre eles no caso concreto para que seja encontrada a solução mais justa, mais próxima da proteção à dignidade.
Em relação às crianças e aos adolescentes e à garantia constitucional ao convívio familiar em ambiente permeada de afeto, vislumbra-se na esfera dos menores a afronta ao seu bem-estar psicofísico e social, pautado no princípio da integridade psicofísica, além do desrespeito, tocante ao princípio da solidariedade familiar, garantia de que o sujeito não seja marginalizado. Já na esfera dos pais omissos em prover afeto à prole, nota-se o princípio da liberdade/autonomia.
Com tal atitude omissiva, o pai ou a mãe que abandona afetivamente o menor desrespeita, além da dignidade da pessoa do filho, princípios específicos do Direito de Família, como o da paternidade/maternidade responsável e o da afetividade, em que o agrupamento familiar se dá com base planejamento familiar, no afeto e na solidariedade entre seus membros.
Nesse contexto, há que se verificar a possibilidade dos danos sofridos por tais “grandes traumatizados”, decorrentes da inatividade dos pais em prover afeto à sua prole, de serem enquadrados dentre os danos que geram a obrigação de compensar a vítima a título de danos morais. Isto é, cumpre examinar se estão os danos por abandono afetivo nas relações paterno-filiais entre os danos morais indenizáveis, levando em conta as construções doutrinárias e jurisprudenciais hodiernas sobre o tema posto (STOCCO, Rui. Tratado de responsabilidade civil . 5ª ed. São Paulo: RT, 2001, p. 89).