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A gestante e a prisão domiciliar como direito subjetivo público da mulher

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31/10/2016 às 12:35
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Analisa-se a decisão do Habeas Corpus 126.107, concedido pelo STF a uma mulher grávida que se encontrava presa na penitenciária feminina da cidade de São Paulo.

"As jovens viúvas marcadas

E as gestantes abandonadas

Não fazem cenas

Vestem-se de negro, se encolhem

Se conformam e se recolhem

Às suas novenas, serenas"

(Mulheres de Atenas, de Chico Buarque e Augusto Boal)[1]

O Ministro Ricardo Lewandowski concedeu o Habeas Corpus nº. 126107 a uma mulher grávida que se encontrava presa na Penitenciária Feminina da cidade de São Paulo.

No pedido, a Defensoria Pública paulista informa que a presa é “portadora de cardiopatia grave” e está “em estágio avançado de gestação”. Ademais, “encontra-se presa preventivamente, desde 20/5/2014, em razão da suposta prática do crime previsto no artigo 33 da Lei 11.343/2006”.

Com a decisão, a gestante permanecerá presa preventivamente, mas em casa, destacando que vícios formais impediriam a análise do pedido. Entretanto, diante do cenário de flagrante violação aos direitos humanos, e fundamentado na Constituição brasileira e em normas internacionais de direitos humanos, decidiu conceder de ofício o pedido.

No plano da Constituição Federal brasileira, ressaltou que a individualização da pena é uma garantia fundamental do Estado Democrático de Direito, de modo que o nascituro não pode “pagar” criminalmente pelos supostos atos, ainda em apuração, praticados por sua genitora: “Se é certo que esse fato reprovável se, ao final, for comprovado enquadra-se perfeitamente em evidente tráfico ilícito de entorpecentes, o mesmo não se pode dizer quanto à adequação da medida às condições pessoais da acusada (artigo 282 do Código de Processo Penal) e do próprio nascituro, a quem certamente não se pode estender os efeitos de eventual e futura pena, nos termos do que estabelece o artigo 5º, XLV, da Constituição Federal”, ressaltou.

Salientou ainda o fato de a Penitenciária Feminina da Capital encontrar-se com o número de presas 13% acima de sua capacidade, fato que comprometeria a segurança e o adequado tratamento médico.

Além da legislação brasileira, o Ministro Lewandowski buscou fundamento em normas internacionais de direitos humanos, ao lembrar que, “durante a 65ª Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, realizada em dezembro de 2010, foram aprovadas as Regras Mínimas para Mulheres Presas”. Essas regras obrigam os Estados-membros da Organização das Nações Unidas, inclusive o Brasil, a “desenvolverem opções de medidas e alternativas à prisão preventiva e à pena especificamente voltadas às mulheres infratoras, dentro do sistema jurídico do Estado-membro, considerando o histórico de vitimização de diversas mulheres e suas responsabilidades maternas”, destacando que tais regras “são dirigidas às autoridades penitenciárias e agentes de justiça criminal, incluindo os responsáveis por formular políticas públicas, legisladores, o ministério público, o judiciário e os funcionários encarregados de fiscalizar a liberdade condicional envolvidos na administração de penas não privativas de liberdade e de medidas em meio comunitário”.

Aliás, no seu discurso de posse no cargo de Presidente do Supremo Tribunal Federal, o Ministro Ricardo Lewandowski expressa o desejo de que os membros do Poder Judiciário brasileiro observem e apliquem os entendimentos das Cortes de Direitos Humanos, integrando-os à prática jurídica do País, citando que “é preciso, também, que os nossos magistrados tenham uma interlocução maior com os organismos internacionais, como a ONU e a OEA, por exemplo, especialmente com os tribunais supranacionais quanto à aplicação dos tratados de proteção dos direitos fundamentais, inclusive com a observância da jurisprudência dessas cortes”.

Anteriormente, o Ministro Ricardo Lewandowski concedeu liminar no Habeas Corpus nº. 126003, impetrado pela Defensoria Pública de São Paulo em favor de uma mulher que teve um filho em agosto na Penitenciária Feminina da Capital, enquanto cumpria prisão preventiva em decorrência de processo por tráfico de drogas. Ao deferir a liminar, o Ministro argumentou que a acusada estava submetida a constrangimento ilegal, pois a prisão cautelar foi detectada unicamente em razão da gravidade abstrata do delito, sem levar em conta a inexistência de antecedentes criminais e a possibilidade de estipular medidas cautelares diversas para garantir a persecução penal. O Ministro presidente verificou que o decreto de prisão preventiva não atendeu aos requisitos previstos no artigo 312 do Código de Processo Penal, pois foi fundamentado, basicamente, na gravidade abstrata do delito. Salientou que, de acordo com farta jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, não basta a gravidade do crime e a afirmação abstrata de que o réu oferece perigo à sociedade e à saúde pública para justificar a imposição da prisão cautelar. Observou, ainda, que a análise concreta dos fatos indica, pelo menos inicialmente, que a ré não faz do tráfico de drogas o seu meio principal de vida e que possivelmente foi utilizada como "mula" por companheiro preso. “Se é certo que esse fato reprovável, se ao final comprovado, enquadra-se perfeitamente em evidente tráfico ilícito de entorpecentes, o mesmo não se pode dizer quanto à adequação da medida às condições pessoais da acusada (artigo 282 do CPP). Diante disso, ausentes os requisitos autorizadores da custódia cautelar, revela-se patente o constrangimento ilegal imposto à paciente”, concluiu o Ministro ao deferir a liminar. O relator do HC 126003 é o Ministro Teori Zavascki, mas como o processo foi impetrado no período de recesso forense, seguiu-se o previsto no Regimento Interno do STF (artigo 13, inciso VIII), que estabelece a remessa ao Ministro presidente dos casos urgentes ajuizados no período.

Pois bem.

Como se sabe, foi promulgada a Lei nº. 12.403/2011, publicada no Diário Oficial da União do dia 05 de maio de 2011; a nova lei alterou substancialmente o Título IX do Livro I do Código de Processo Penal que passou a ter a seguinte epígrafe: “Da Prisão, Das Medidas Cautelares e Da Liberdade Provisória”. No Capítulo I – Das Disposições Gerais – foram modificados os artigos a seguir comentados:

O novo art. 282 estabelece que as medidas cautelares previstas em todo o Título IX deverão ser aplicadas observando-se um dos seguintes requisitos: a necessidade para aplicação da lei penal, para a investigação ou a instrução criminal e, nos casos expressamente previstos, para evitar a prática de infrações penais (periculum libertatis).

Além destes requisitos (cuja presença não precisa ser cumulativa, mas alternativamente), a lei estabelece critérios que deverão orientar o Juiz no momento da escolha e da intensidade da medida cautelar, a saber: a gravidade do crime, as circunstâncias do fato e as condições pessoais do indiciado ou acusado (fumus commissi delicti). Evidentemente, merecem críticas tais critérios, pois muito mais condizentes com as circunstâncias judiciais a serem aferidas em momento posterior quando da aplicação da pena, além de se tratar de típica opção pelo odioso Direito Penal do Autor.[2]

Procura-se, portanto, estabelecer neste Título os requisitos e os critérios justificadores para as medidas cautelares no âmbito processual penal, inclusive no que diz respeito às prisões provisórias, incluindo-se a prisão temporária, “pois são regras abrangentes, garantidoras da sistematicidade de todo o ordenamento.”[3] Ademais, a prisão temporária encontra-se prevista neste Título IX do Código de Processo Penal (art. 283).

Assim, quaisquer das medidas cautelares estabelecidas neste Título (repetimos: inclusive as prisões provisórias codificadas ou não) só se justificarão quando presentes o fumus commissi delicti e o periculum libertatis (ou o periculum in mora, conforme o caso) e só deverão ser mantidas enquanto persistir a sua necessidade, ou seja, a medida cautelar, tanto para a sua decretação quanto para a sua mantença, obedecerá à cláusula rebus sic stantibus.          

Dispõe a lei que as medidas cautelares poderão ser aplicadas isolada ou cumulativamente[4] e serão decretadas pelo juiz, de ofício ou a requerimento das partes ou, quando no curso da investigação criminal, por representação da autoridade policial ou mediante requerimento do Ministério Público. 

Observa-se que as medidas cautelares só poderão ser decretadas de ofício pelo Juiz durante a fase processual; antes, no curso de uma investigação criminal, apenas quando instado a fazê-lo, seja pelo Ministério Público, seja pela Polícia. Ainda que tenha sido louvável esta limitação, parece-nos que no sistema acusatório é sempre inoportuno deferir ao Juiz a iniciativa de medidas persecutórias, mesmo durante a instrução criminal. É absolutamente desaconselhável permitir-se ao Juiz a possibilidade de, ex officio, ainda que em Juízo, decidir acerca de uma medida cautelar de natureza criminal (restritiva de direitos, privativa de liberdade, etc.), pois que lembra o velho e pernicioso sistema inquisitivo[5].

É evidente que o dispositivo é perigoso, pois não se pode admitir que uma mesma pessoa (o Juiz), ainda que ungido pelos deuses, possa avaliar como “necessário um ato de instrução e ao mesmo tempo valore a sua legalidade. São logicamente incompatíveis as funções de investigar e ao mesmo tempo garantir o respeito aos direitos do imputado. São atividades que não podem ficar nas mãos de uma mesma pessoa, sob pena de comprometer a eficácia das garantias individuais do sujeito passivo e a própria credibilidade da administração de justiça. (...) Em definitivo, não é suscetível de ser pensado que uma mesma pessoa se transforme em um investigador eficiente e, ao mesmo tempo, em um guardião zeloso da segurança individual. É inegável que ‘o bom inquisidor mata o bom juiz ou, ao contrário, o bom juiz desterra o inquisidor’”.[6]

Claro que há efetivamente certo distanciamento dos postulados do sistema acusatório, mitigando-se a imparcialidade[7] que deve nortear a atuação de um Juiz criminal, que não se coaduna com a determinação pessoal e direta de medidas cautelares. “Este sistema se va imponiendo en la mayoría de los sistemas procesales. En la práctica, ha demonstrado ser mucho más eficaz, tanto para profundizar la investigación como para preservar las garantías procesales”, como bem acentua Alberto Binder.[8]

Dentro desta perspectiva, o sistema acusatório é o que melhor encontra respaldo em uma democracia, pois distingue perfeitamente as três funções precípuas em uma ação penal, a saber: o julgador, o acusador e a defesa. Tais sujeitos processuais devem estar absolutamente separados (no que diz respeito às respectivas atribuições e competência), de forma que o julgador não acuse, nem defenda (preservando a sua necessária imparcialidade), o acusador não julgue e o defensor cumpra a sua missão constitucional de exercer a chamada defesa técnica[9].

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Observa-se que no sistema acusatório estão perfeitamente definidas as funções de acusar, de defender e a de julgar, sendo vedado ao Juiz proceder como órgão persecutório. É conhecido o princípio do ne procedat judex ex officio, verdadeiro dogma do sistema acusatório. Nele, segundo o professor da Universidade de Santiago de Compostela, Juan-Luís Gómez Colomer, “hay necesidad de una acusación, formulada e mantenida por persona distinta a quien tiene que juzgar, para que se pueda abrir y celebrar el juicio e, consecuentemente, se pueda condenar”[10], proibindo-se “al órgano decisor realizar las funciones de la parte acusadora”[11], “que aqui surge com autonomia e sem qualquer relacionamento com a autoridade encarregue do julgamento”[12].

Dos doutrinadores pátrios, talvez o que melhor traduziu o conceito do sistema acusatório tenha sido José Frederico Marques:

“A titularidade da pretensão punitiva pertence ao Estado, representado pelo Ministério Público, e não ao juiz, órgão estatal, tão-somente, da aplicação imparcial da lei para dirimir os conflitos entre o jus puniendi e a liberdade do réu. Não há, em nosso processo penal, a figura do juiz inquisitivo. Separadas estão, no Direito pátrio, a função de acusar e a função jurisdicional. (...) O juiz exerce o poder de julgar e as funções inerentes à atividade jurisdicional: atribuições persecutórias, ele as tem muito restritas, e assim mesmo confinadas ao campo da notitia criminis. No que tange com a ação penal e à função de acusar, sua atividade é praticamente nula, visto que ambas foram adjudicadas ao Ministério Público.”[13]

Ainda como corolário dos princípios atinentes ao sistema acusatório, aduzimos a necessidade de se afastar o Juiz, o mais possível, de atividades persecutórias[14]. Um dos argumentos mais utilizados para contrariar esta afirmação é a decantada busca da verdade real, verdadeiro dogma do processo penal[15]. Ocorre que este dogma está em franca decadência, pois hoje se sabe que a verdade a ser buscada é aquela processualmente possível, dentro dos limites impostos pelo sistema e pelo ordenamento jurídico.

Como ensina Muñoz Conde,

“el proceso penal de un Estado de Derecho no solamente debe lograr el equilibrio entre la búsqueda de la verdad y la dignidad de los acusados, sino que debe entender la verdad misma no como una verdad absoluta, sino como el deber de apoyar una condena sólo sobre aquello que indubitada e intersubjetivamente puede darse como probado. Lo demás es puro fascismo y la vuelta a los tiempos de la Inquisición, de los que se supone hemos ya felizmente salido.”[16]

Com efeito, não se pode, por conta de uma busca de algo muitas vezes inatingível (a verdade...)[17] permitir que o Juiz saia de sua posição de supra partes, a fim de auxiliar, por exemplo, o Ministério Público a provar a imputação posta na peça acusatória. Sobre a verdade material ou substancial, ensina Ferrajoli, ser aquela

“carente de limites y de confines legales, alcanzable con cualquier medio más allá de rígidas reglas procedimentales. Es evidente que esta pretendida ´verdad sustancial´, al ser perseguida fuera de reglas y controles y, sobre todo, de una exacta predeterminación empírica de las hipótesis de indagación, degenera en juicio de valor, ampliamente arbitrario de hecho, así como que el cognoscitivismo ético sobre el que se basea el sustancialismo penal resulta inevitablemente solidario con una concepción autoritaria e irracionalista del proceso penal”.

Para o mestre italiano, contrariamente, a verdade formal ou processual é alcançada

“mediante el respeto a reglas precisas y relativa a los solos hechos y circunstancias perfilados como penalmente relevantes. Esta verdad no pretende ser la verdad; no es obtenible mediante indagaciones inquisitivas ajenas al objeto procesal; está condicionada en sí misma por el respeto a los procedimientos y las garantías de la defensa. Es, en suma, una verdad más controlada en cuanto al método de adquisición pero más reducida en cuanto al contenido informativo de cualquier hipotética ´verdad sustancial´[18]”.

Vê-se, portanto, que se permitiu um desaconselhável “agir de ofício” pelo Juiz. Não é possível tal disposição em um sistema jurídico acusatório, pois que lembra o sistema inquisitivo caracterizado, como diz Ferrajoli, por “una confianza tendencialmente ilimitada en la bondad del poder y en su capacidad de alcanzar la verdad”, ou seja, este sistema “confía no sólo la verdad sino también la tutela del inocente a las presuntas virtudes del poder que juzga”.[19]

Parece-nos claro que há, efetivamente, uma mácula séria aos postulados do sistema acusatório, precipuamente à imprescindível imparcialidade que deve nortear a atuação de um Juiz criminal (e não neutralidade, que é impossível)[20]. Quanto à neutralidade, faz-se uma ressalva, pois não acreditamos em um Juiz neutro (como em um Promotor de Justiça ou um Procurador da República neutro). Há sempre circunstâncias que, queiram ou não, influenciam em decisões e pareceres, sejam de natureza ideológica, política, social, etc., etc. Como notou Eros Roberto Grau, “ainda que os princípios os vinculem, a neutralidade política do intérprete só existe nos livros. Na práxis do direito ela se dissolve, sempre. Lembre-se que todas as decisões jurídicas, porque jurídicas, são políticas.”[21] São inconfundíveis a neutralidade e a imparcialidade. É ingenuidade acreditar-se em um Juiz neutro, mas é absolutamente indispensável um Juiz imparcial.

Um Magistrado imparcial, como afirmam Alexandre Bizzotto, Augusto Jobim e Marcos Eberhardt, implica em um

“formal afastamento fático do fato julgado, não podendo o Magistrado ter vínculos objetivos com o fato concreto colocado à discussão processual. Coloca-se daí na condição de terceiro estranho ao caso penal. (...) Já a neutralidade é a assunção da alienação judicial, negando-se ingenuamente o humano no juiz. Este agente político partícipe da vida social sente (a própria sentença é um ato de sentir), age, pensa e sofre todas as influências provocadas pela sociedade pós-moderna. Afirmar que o juiz é neutro é ocultar uma realidade.”[22]

Sobre o sistema acusatório, afirmava Vitu:

“Ce système procédural se retrouve à l’origine des diverses civilisations méditerranéennes et occidentales: en Grèce, à Rome vers la fin de la Republique, dans le droit germanique, à l’époque franque et dans la procédure féodale. Ce système, qui ne distingue pás la procédure criminelle de la procédure, se caractérise par des traits qu’on retrouve dans les différents pays qui l’ont consacré.  Dans l’organisation de la justice, la procédure accusatoire suppose une complète égalité entre l’accusation et la défense.”[23]

A propósito, relembramos o art. 3º. da Lei nº. 9.296/96 (interceptações telefônicas) que permite ao Juiz, mesmo na primeira fase da persecutio criminis, determinar de ofício a quebra do sigilo telefônico, o que também representa uma quebra flagrante dos postulados do sistema acusatório, bem como o art. 311 do Código de Processo Penal, possibilitando ao Juiz Criminal a decretação, de ofício, da prisão preventiva (ver adiante), decisões que (pasmen!), ainda o tornam prevento (art. 75, parágrafo único e art. 83 do Código de Processo Penal).[24]

Com inteira razão Jacinto Nelson de Miranda Coutinho:

“a questão é tentar quase o impossível: compatibilizar a Constituição da República, que impõe um Sistema Acusatório, com o Direito Processual Penal brasileiro atual e sua maior referência legislativa, o CPP de 41, cópia malfeita do Codice Rocco de 30, da Itália, marcado pelo princípio inquisitivo nas duas fases da persecutio criminis, logo, um processo penal regido pelo Sistema Inquisitório. (...) Lá, como é do conhecimento geral, ninguém duvida que o advogado de Mussolini, Vincenzo Manzini, camicia nera desde sempre, foi quem escreveu o projeto do Codice com a cara do regime (...) ”[25]

Continuando...

Atendendo à exigência constitucional do contraditório, dispõe o § 3º. do art. 282 que, ressalvados os casos de urgência ou de perigo de ineficácia da medida (quando, então, será tomada inaudita altera pars, como, por exemplo, uma interceptação telefônica), o juiz, ao receber o pedido de medida cautelar, determinará a intimação da parte contrária, acompanhada de cópia do requerimento e das peças necessárias; neste caso, os autos devem permanecer em juízo. Parece-nos que mesmo no caso da medida ser determinada de ofício pelo Juiz, deve assim também se proceder, ou seja, ouvir-se a parte a quem a medida possa trazer algum prejuízo, ressalvadas, evidentemente, as hipóteses de urgência ou de perigo para a eficácia da decisão. Não há devido processo legal sem o contraditório, que vem a ser, em linhas gerais, a garantia de que para toda ação haja uma correspondente reação, garantindo-se, assim, a plena igualdade de oportunidades processuais. A respeito do contraditório, Willis Santiago Guerra Filho afirma

“que não há processo sem respeito efetivo do contraditório, o que nos faz associar o princípio a um princípio informativo, precisamente aquele político, que garante a plenitude do acesso ao Judiciário (cf. Nery Jr., 1995, p. 25). Importante, também, é perceber no princípio do contraditório mais do que um princípio (objetivo) de organização do processo, judicial ou administrativo – e, logo, um princípio de organização de um instrumento de atuação do Estado, ou seja, um princípio de organização do Estado, um direito. Trata-se de um verdadeiro direito fundamental processual, donde se poder falar, com propriedade em direito ao contraditório, ou Anspruch auf rechliches Gehör, como fazem os alemães.” (grifos no original).[26]

Segundo Étienne Vergès, a Corte Européia dos Direitos do Homem (CEDH) “en donne une définition synthétique en considérant que ce principe ´implique la faculté, pour les parties à un procés penal ou civil, de prendre connaissance de toutes pièces ou observations présentées au juge, même par un magistrat indépendant, en vue d´influencer sa décision et de la discuter` (CEDH, 20 févr. 1996, Vermeulen c/ Belgique, D. 1997, som. com. P. 208).”[27]

O contraditório será fundamental (ressalvada a urgência e a possibilidade de ineficácia da medida), até para que o investigado ou acusado tenha a oportunidade de, por exemplo, requerer “a decretação de medida menos gravosa do que aquela sugerida pela parte contrária.”[28]

Aliás, ainda que a medida tenha sido tomada inaudita altera pars, “a observância do contraditório, nesses casos, é feita depois, dando-se oportunidade ao suspeito ou réu de contestar  a providência cautelar (...). Fala-se em contraditório diferido ou postergado.”[29]

Esta exigência do contraditório (prévio ou postergado) aplica-se, inclusive, quando se tratar da prisão provisória (temporária ou preventiva), pois típica medida cautelar, ressalvando-se, obviamente, a urgência e a possibilidade de sua ineficácia (prisão preventiva para aplicação da lei penal, por exemplo).

Caso haja descumprimento de qualquer das obrigações impostas, o Juiz, de ofício ou mediante requerimento do Ministério Público, de seu assistente ou do querelante, poderá substituir a medida, impor outra em cumulação, ou, em último caso, decretar a prisão preventiva, nos termos do art. 312, parágrafo único do Código de Processo Penal. Observa-se que a lei é expressa ao considerar a prisão cautelar (incluindo-se a temporária) como ultima ratio. É imposição legal a excepcionalidade da prisão provisória, que somente deverá ser decretada quando não for absolutamente cabível a sua substituição por outra medida cautelar. E na respectiva decisão, esta imprescindibilidade deve restar claramente demonstrada, nos termos do art. 93, IX da Constituição.

Como dissemos acima, a medida cautelar decretada poderá ser revogada ou substituída quando verificar a falta de motivo para que subsista, bem como voltar a ser decretada, se sobrevierem razões que a justifiquem (é a conhecida cláusula rebus sic stantibus). Aqui também, deve-se atender à exigência constitucional do contraditório, na forma do § 3º. do art. 282.                       

Ainda no Capítulo I, o art. 283 estabelece que ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva. Evidentemente, ressalvam-se os casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei, em cumprimento ao disposto no art. 5º., LXI da Constituição.

Portanto, é direito do réu aguardar em liberdade o seu recurso interposto, inclusive os recursos constitucionais, nada obstante o disposto no art. 27 da Lei nº. 8.038/90, não aplicável nos processos criminais, não impedindo que, excepcionalmente, aguarde-se preso o julgamento, caso no acórdão condenatório mantenha-se ou se decrete fundamentadamente a prisão provisória; neste último caso, terá o acusado direito à fruição dos benefícios da Lei de Execução Penal, à vista do disposto no seu art. 2º., bem como no Enunciado 716 da súmula do Supremo Tribunal Federal e na Resolução nº. 19/2006 do Conselho Nacional de Justiça)[30].    

Observa-se, outrossim, que todas as medidas cautelares estabelecidas no Título IX (incluídas as prisões, insista-se) não podem ser aplicadas à infração a que não for isolada, cumulativa ou alternativamente cominada pena privativa de liberdade. Portanto, não será possível aplicá-las em relação às contravenções penais a que a lei comina, isoladamente, pena de multa, como, por exemplo, aquelas previstas nos arts. 292, 303, 304, do Código Eleitoral (dentre várias outras). Diga-se o mesmo em relação ao art. 28 da Lei nº. 11.343/06 (Lei de Drogas).

Dispõe o § 2º. do art. 283 que a prisão poderá ser efetuada em qualquer dia e a qualquer hora, respeitadas as restrições relativas à inviolabilidade do domicílio. Neste sentido, observar-se-á o disposto no art. 5º., XI da Constituição, bem como o art. 150 do Código Penal.[31]

O Capítulo IV passa a ter uma nova epígrafe – Da Prisão Domiciliar, espécie de medida cautelar consistente no recolhimento do indiciado ou acusado em sua residência, só podendo dela ausentar-se com autorização judicial.

Não se trata de novidade em nosso ordenamento jurídico, tendo em vista o art. 117 da Lei de Execução Penal[32]. A prisão domiciliar, portanto, pode ser decretada como uma medida cautelar autônoma.

Nada obstante, havendo prova idônea das exigências legais, esta medida cautelar também poderá servir como sucedâneo da prisão preventiva quando o agente for maior de oitenta anos. A prova desta condição, por evidente, só poderá ser feita pela respectiva certidão de nascimento ou documento de igual valor, à luz do art. 155, parágrafo único do Código de Processo Penal. Aqui faço uma observação: por que não se estabeleceu idade igual ou superior a sessenta anos, coerentemente com o disposto no art. 1º., da Lei nº. 10.741/2003 – Estatuto do Idoso?

Também cabível a substituição quando o preso preventivamente estiver extremamente debilitado por motivo de doença grave, a ser confirmada por atestado médico ou, em caso de dúvida, por perícia oficial.  Neste caso, o Ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal concedeu medida liminar no Habeas Corpus (HC) 116587 para determinar que a prisão preventiva do médico T.S.M. seja cumprida em regime domiciliar até o julgamento definitivo do HC. O relator observou que “pelo menos neste primeiro exame, tenho que procede o pleito de cumprimento da custódia preventiva em regime de prisão domiciliar, conforme previsto no artigo 318 do CPP”. Conforme o relator, a defesa juntou aos autos laudo médico informando que seu cliente encontra-se hospitalizado para tratamento de doença grave. Em sua decisão, o ministro transcreveu trecho do laudo, segundo o qual T.S.M. está internado para avaliação e estabilização do quadro clínico. O laudo aponta que o acusado é portador de doença autoimune hepática fibrosante, de caráter progressivo, podendo evoluir para a necessidade de transplante hepático. Assim, o ministro Ricardo Lewandowski concedeu a medida liminar, ao considerar que “o encarceramento do paciente, neste momento, o impediria de receber o tratamento médico-hospitalar adequado, o que poderia levar ao agravamento de seu quadro clínico”. Fonte: STF http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=230577.

Igualmente exigível a substituição quando a presença (física, moral ou psicológica) do preso for imprescindível, independentemente de parentesco, aos cuidados especiais de pessoa menor de seis anos de idade. Urge também neste caso, perguntar por que não se estabeleceu a idade até doze anos incompletos, também coerentemente com o art. 2º., da Lei nº. 8.069/1990 – Estatuto da Criança e do Adolescente. Outrossim, substituir-se-á a prisão preventiva pela prisão domiciliar quando for imprescindível, também independendo de relação de parentesco, aos cuidados especiais de pessoa com deficiência. Já para a prova destas circunstâncias poderá o Juiz, além da respectiva certidão de nascimento para prova da idade, valer-se de profissionais de serviço social para atestar a imprescindibilidade dos cuidados, além de perícia médica em caso de dúvida fundada quanto à existência de deficiência.[33]

Por fim, tratando-se de gestante a partir do sétimo mês de gravidez ou sendo esta de alto risco. Nesta hipótese, poderá ser considerada como prova idônea um atestado médico ou, em caso de dúvida fundada, uma perícia oficial. Entendo que, sendo a substituição da prisão preventiva pela prisão domiciliar, preenchidas as exigências legais, um direito subjetivo público do indiciado ou acusado, é passível de ser garantido por meio de habeas corpus.

Importante ressaltar, repita-se, interpretando-se de maneira conjugada os arts. 317 e 318 que a prisão domiciliar não é meramente uma medida cautelar substitutiva da prisão preventiva, podendo ser determinada de maneira autônoma, consoante os requisitos gerais previstos no art. 282.[34]

Por fim, é preciso também atentar para a Lei nº. 12.962/2014, que alterou a Lei no. 8.069, de 13 de julho de 1990 - Estatuto da Criança e do Adolescente, para assegurar a convivência da criança e do adolescente com os pais privados de liberdade.[35] Segundo o novo § 4º., do art. 19 da referida lei, “será garantida a convivência da criança e do adolescente com a mãe ou o pai privado de liberdade, por meio de visitas periódicas promovidas pelo responsável ou, nas hipóteses de acolhimento institucional, pela entidade responsável, independentemente de autorização judicial.” (grifo meu).

Ademais, alterou-se dois parágrafos ao art. 23 do Estatuto, in verbis:

“Não existindo outro motivo que por si só autorize a decretação da medida, a criança ou o adolescente será mantido em sua família de origem, a qual deverá obrigatoriamente ser incluída em programas oficiais de auxílio.” (...) “A condenação criminal do pai ou da mãe não implicará a destituição do poder familiar, exceto na hipótese de condenação por crime doloso, sujeito à pena de reclusão, contra o próprio filho ou filha.”

Ora, levando-se em consideração o princípio da proporcionalidade (adequação-necessidade) é preciso que se atente para o disposto no art. 282.

Portanto, tratando-se de uma criança cuja idade não supere os seis anos de idade e o seu pai ou a sua mãe esteja privada da liberdade em razão de prisão preventiva decretada, a medida a ser aplicada é a prisão domiciliar (se a presença do respectivo ascendente  - física, moral ou psicológica - for imprescindível aos cuidados especiais do infante.

Concluindo: não é a criança de até seis anos de idade que vai conviver com o pai ou a mãe no cárcere, mas será a mãe ou o pai que irá residir com o seu filho em casa, ainda que submetido à prisão domiciliar.

A propósito, o Ministro Luís Roberto Barroso defendeu o uso da prisão domiciliar como alternativa à superlotação e degradação do sistema carcerário brasileiro. De acordo com o ministro, a prisão domiciliar monitorada deveria ser usada no caso de condenados não violentos ou perigosos. Para Barroso, esses condenados só deveriam ir para o sistema prisional caso violassem as regras da domiciliar.O posicionamento foi registrado em decisão proferida no dia 02 de dezembro de 2014, ao negar um pedido de autorização de viagem feito por um condenado na Ação Penal 470, que cumpre a pena em prisão domiciliar. O juízo da 2ª Vara Criminal da Comarca de Cuiabá havia concedido a autorização, mas o ministro não a homologou.De acordo com Barroso, a prisão domiciliar é uma alternativa humanitária para lidar com o déficit de estabelecimentos adequados e de vagas no sistema penitenciário. Contudo, ela não perde sua natureza de pena privativa de liberdade. Segundo o ministro, a autorização só deve ser concedida em casos excepcionais. Caso contrário, poderia desmoralizar a prisão domiciliar, privando o Judiciário de utilizar essa alternativa.“A possibilidade de condenados em prisão domiciliar viajarem livre ou regularmente, mesmo que com autorização judicial, é incompatível com a finalidade da pena. Qualquer viagem, no curso do cumprimento da pena, constitui medida excepcional, a ser deferida apenas em situações pontuais”, afirmou. “Com a devida vênia, entendo que participar de inaugurações ou proferir palestras não caracteriza a excepcionalidade aqui exigida, sendo, ao revés, incompatível com o regime prisional domiciliar”, concluiu Barroso.O Ministro explicou ainda que o exercício do direito de trabalhar enquanto se está cumprindo prisão domiciliar exige, como regra, que o trabalho seja exercido no local do cumprimento da pena. Por isso, segundo Barroso, não é aceitável “que o condenado possa viajar regularmente para participar de inaugurações ou proferir palestras em unidade da Federação diversa daquela em que se encontra em prisão domiciliar”. (Execução Penal 21) - Fonte: http://www.conjur.com.br/2014-dez-05/barroso-defende-prisao-domiciliar-suprir-falta-presidios

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Sobre o autor
Rômulo de Andrade Moreira

Procurador-Geral de Justiça Adjunto para Assuntos Jurídicos do Ministério Público do Estado da Bahia. Foi Assessor Especial da Procuradoria Geral de Justiça e Coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais. Ex- Procurador da Fazenda Estadual. Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador - UNIFACS, na graduação e na pós-graduação (Especialização em Direito Processual Penal e Penal e Direito Público). Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). Especialista em Processo pela Universidade Salvador - UNIFACS (Curso então coordenado pelo Jurista J. J. Calmon de Passos). Membro da Association Internationale de Droit Penal, da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais, do Instituto Brasileiro de Direito Processual e Membro fundador do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (atualmente exercendo a função de Secretário). Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. Integrante, por quatro vezes, de bancas examinadoras de concurso público para ingresso na carreira do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor convidado dos cursos de pós-graduação dos Cursos JusPodivm (BA), Praetorium (MG) e IELF (SP). Participante em várias obras coletivas. Palestrante em diversos eventos realizados no Brasil.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MOREIRA, Rômulo Andrade. A gestante e a prisão domiciliar como direito subjetivo público da mulher. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4870, 31 out. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/35744. Acesso em: 25 abr. 2024.

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