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Desenvolvimento e demanda na economia de mercado: seus desdobramentos na teria do superendividamento do consumidor

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20/09/2017 às 15:00
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5 Alcance social e efeitos do superendividamento

Como visto, não raro o consumidor é levado à compra por impulsos conscientes e inconscientes e razões alheias à utilidade do produto, considerada esta como a resposta funcional que um bem ou serviço dá à necessidade específica de alguém. Com efeito, a necessidade deveria ser a única justificativa para aquisição de um produto, entretanto, o desejo é a base do nosso atual sistema de consumo.

Estudos revelam que recursos persuasivos são utilizados pela publicidade para incutir a ideia geral de que o ato de comprar simboliza um atributo, um adjetivo que qualifica o indivíduo, convertendo-se num passaporte para a inclusão ou exclusão na vida comunitária, conforme ele pratica ou não os hábitos de consumo. O alcance das estratégias de venda é virtualmente infinito e, como observado, capaz de retirar da funcionalidade do produto sua principal vantagem para cravá-la no próprio ato da compra, propiciando prazer, status e sensação de pertinência ao adquirente, que, sob os efeitos da conformidade, passa a repetir obediente a comandos ditados pelo consumo.

Sobre esse aspecto nota-se que a capacidade de comprar é vista como elemento de inclusão social por meio do qual, além do acesso a inúmeros bens e serviços, o indivíduo alcança prestígio e reconhecimento. Na contramão do seu fluxo está aquele que, por algum impedimento, deixa de consumir ou desacelera o ritmo da compra. Este sujeita-se à segregação, sendo afastado progressivamente do convívio em sociedade, marginalizado. O superendividamento é um desses impedimentos, convertendo-se num entrave ao consumo. Sob sua sombra o endividado, além de perder o acesso ao crédito – pois seu nome passa a fazer parte do cadastro de inadimplentes dos órgãos de proteção ao crédito, bloqueando a contratação de novos financiamentos –, exaure sua renda e suas economias são insuficientes para quitar as dívidas.

Nesta turbulência, as instituições financeiras, antes solícitas ao contratante, passam a tratá-lo como pária, sujeito a muitas restrições que inviabilizam qualquer chance de renegociação administrativa da sua dívida ou, quando muito, permitindo a renovação de seus contratos de maneira extremamente desvantajosa para ele. Destarte, frustrada a renegociação da dívida, ou ainda, se firmados novos compromissos para adimplir os anteriores, ainda assim o consumidor não consegue pagar suas contas, invariavelmente seus credores buscam o Poder Judiciário para ver seu crédito reconhecido, e o pagamento por meio da penhora do patrimônio do endividado, decretando-lhe a morte financeira. A ruína individual se estende para além da pessoa do devedor, alcançando seus dependentes e engendrando a desagregação familiar.

O superendividamento é, assim, um grave problema social que afeta o consumidor de maneira extensa, em alguns casos impedindo sua reinserção no mercado de trabalho, comprometendo a manutenção da sua família. Revela-se por vezes tão avassalador que impõe tratamento interdisciplinar. Neste aspecto, refletem Cláudia Maria Marques, Clarissa C. Lima e Karen Bortoncello (2010):

Sob uma ou outra forma, o superendividamento é gerador de situações nefastas que não se pode deixar prosperar. Constitui, com efeito, fonte de tensões no seio da célula familiar que muitas vezes acarretam um divórcio, agravando a situação de endividamento. Ele pode conduzir as pessoas superendividadas a evitar despesas de tratamentos, mesmo essenciais, ou ainda a negligenciar a educação dos filhos. E, na medida em que a situação é tal, que a moradia não pode ser assegurada, é dado um passo na direção da exclusão social. O superendividamento é fonte de isolamento, de marginalização; ele contribui para o aniquilamento social do indivíduo. Quanto mais este fenômeno aumenta, mais seu custo social se eleva e mais a necessidade de combatê-lo se impõe.

Sob um ponto de vista panorâmico, os reflexos sociais do superendividamento podem ser observados em toda a comunidade. Isto porque, excluso da capacidade de consumir, o devedor deixa de contribuir para a geração de renda, afetando o mercado de consumo; as desordens pessoais podem atingir sua saúde física e mental, impondo-lhe tratamento médico específico, o que traz gastos para os hospitais públicos; adicione-se a isto o fato de que a reinserção social muitas vezes só é conseguida por meio de intervenção judicial, movendo a máquina judiciária para tratamento do problema. O superendividamento é, pois, um problema de ordem social com repercussões econômicas e jurídicas e seu tratamento legal no Brasil, embora urgente, se encontra em fase de discussões preliminares.


Considerações finais

O superendividamento é desencadeado por inúmeras razões de ordem pessoal e social. Fatores como ignorância financeira, carências, impulsividade, desemprego, divórcio, e outros, estão entre as suas principais causas. Políticas públicas que promovem o crescimento econômico à revelia do desenvolvimento social e ambiental do país, e fomentam estratégias de consumo voltadas para o incentivo à compra, sem executar campanhas educativas que revelem as consequências dos maus hábitos no comércio, contribuem significativamente para o surgimento do endividamento entre as famílias.

No Brasil, a cultura do consumo está consolidada. O condicionamento gerado por campanhas publicitárias arrojadas, a disponibilidade de crédito fácil e a oferta de produtos cada vez menos duráveis, aliados à uma ideologia de consumo propagada por todos os meios de comunicação, nas alegorias televisivas, nas músicas, enfim, na cultura de massa, reduzem ou anulam a capacidade do consumidor em decidir livremente sobre a compra. Os critérios elencados pela Teoria do Consumidor como responsáveis pela decisão de compra foram apreendidos e facilmente manipulados pelos fornecedores. Com efeito, as restrições orçamentárias são dribladas pelos financiamentos, a utilidade do produto é reduzida à condição de descartável e a preferência é escandalosamente ditada pelas estratégias de marketing. Assim, o consumidor é compelido a comprar e consumir cada vez mais.

O superendividamento surge da convergência de todos esses fatores, sendo, portanto, um problema de ordem social que deve ser tratado pelo poder público com normas específicas, preventivas ou resolutivas, que regulamentem ações que promovam a reinserção do endividado à saúde financeira. Para tanto, a parceria entre entidades públicas e privadas é fundamental, considerando que os problemas desencadeados pelo inadimplemento extrapolam o âmbito individual ou familiar do superendividado, atingindo economicamente sua comunidade e, numa perspectiva ampla, a própria economia do país, quando sua exclusão do mercado de consumo o impede de buscar financiamentos, por exemplo, num país onde, as operações de crédito respondem por grande parcela do PIB.

Socialmente as perdas são enormes, podendo levar o indivíduo ao banimento velado do seu nicho social, uma vez que deixa de conviver entre os seus, impossibilitado pela falta de dinheiro para participar de eventos sociais, hoje totalmente voltados para atividades pagas. Perdas econômicas e sociais culminam em desmoronamento emocional, levando o indivíduo ao colapso. Assim, o tratamento deverá prever abordagem multidisciplinar, englobando não apenas a saúde financeira do indivíduo, mas emocional, para que lhe seja viabilizado o retorno ao convívio social e ao status quo ante, sem perdas irreversíveis.


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Sobre a autora
Elisabete A. Porto

Advogada, Mestre em Ciências Jurídicas, Autora de livros e artigos, Membro das Comissões de Direito Previdenciário e Direito do Idoso da OAB/PB e membro do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PORTO, Elisabete A.. Desenvolvimento e demanda na economia de mercado: seus desdobramentos na teria do superendividamento do consumidor. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5194, 20 set. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/35908. Acesso em: 4 nov. 2024.

Mais informações

Ester artigo é parte integrante do livro: PORTO, Elisabete Araújo. Desenvolvimento e demanda na economia de mercado: seus desdobramentos na teria do superendividamento do consumidor. In: PORTO, Elisabete Araújo Porto (Org.) Contribuições para a ciência jurídica à luz dos direitos sociais. Editora Publit: Rio de Janeiro, 2014.

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