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O conceito de soberania na teoria de Carl Schmitt

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07/11/2016 às 13:45
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4 – O CONCEITO DE SOBERANIA NA TEORIA DE CARL SCHMITT

Carl Schmitt, jurista, filósofo, antidemocrata, antiliberalista, nazista, intrigante. Sua teoria condensa particularmente o debate entre liberdade e igualdade; autoridade e democracia; noções cotidianamente presentes na tradição do pensamento europeu contemporâneo.

Ousaremos analisar um dos conceitos mais importantes desse pensador, de conseqüências para o mundo político, jurídico e filosófico: o conceito de SOBERANIA schmittiano, presente especialmente na obra Teologia Política,  a qual o pensador inicia com a celebre frase – “Soberano é aquele que decide sobre o Estado de exceção”. (Schmitt, 1996:87)

Para tanto, será preciso, evidentemente, esmiuçar os conceitos acessórios presentes na afirmação de abertura da obra schmittiana mencionada e, por isso, investigaremos paralelamente a concepção de decisão e exceção que compõem o conceito de SOBERANIA de Carl Schmitt.

4.1 – A soberania schmittiana.

A soberania schmittiana é um complexo conceitual permeada por outros dois conceitos, decisão e exceção, extraídos da frase de abertura de Teologia Política (“Soberano é aquele que decide sobre o Estado de exceção.” Schmitt, 1996:87).

Segundo Felicíssimo (2001),

“A tríade formada pelos conceitos de decisão, soberania e representação é a chave para compreensão do pensamento de Schmitt. ‘A decisão equivale à vontade representada do soberano. Vontade essa que ‘se manifesta com maior firmeza no momento de crise e perigo.’ A exceção surge de uma situação concreta, uma situação excepcional, onde normas gerais, abstratas e impessoais não bastam.” (Felicíssimo, 2001:19)

Para Felicíssimo (2001:19) o conceito de decisão já caracteriza o conceito de soberania schmittiano e “a conseqüência da triangulação: soberania, decisão e representação é a idéia de ordem.” A decisão é a solução para a situação de emergência nas quais as normas já não bastam, sendo essencial para a ordem jurídica, esclarece a Felicíssimo.

Portanto, SOBERANIA para Schmitt é eminentemente uma decisão, não tão somente sobre a existência do Estado em situação extrema, mas inclusive sobre todos os feitos para que cesse tal estado de coisa. O soberano tem autoridade política para suspender direitos a fim de realizá-los. É um paradoxo que Schmitt esclarece alegando que o conceito de SOBERANIA é um conceito-limite em si mesmo.

“O conceito-limite não é um conceito confuso, como na feia terminologia da literatura popular, mas um conceito da esfera extrema; isso quer dizer que sua definição não se encaixa num caso normal, mas sim num caso limite. O fato de se entender o Estado de exceção como um conceito genérico da doutrina de Estado, e não como qualquer situação emergencial ou Estado de sítio (...). E o fato também de o estado de exceção, no sentido eminente, ser adequado para a definição jurídica de soberania, tem razão sistemática lógico-jurídica. A decisão sobre a exceção é, portanto, uma decisão no sentido eminente. Pois uma norma genérica, como se apresenta a norma jurídica válida, não pode nunca assimilar uma exceção absoluta e, portanto, nunca justificar totalmente a decisão tomada em um verdadeiro caso de exceção.” (Schmitt, 1996:87)

Para Schmitt, então, a SOBERANIA não se encaixa numa situação habitual, mas situa-se diante do inesperado, imprevisto, imprevisível. O acesso ao quase intangível faz surgir a forma política onde a SOBERANIA se manifesta eminentemente no sentido schmittiano do termo. Nesse caso o poder político é centrado na figura do representante de Estado, o que traz a luz o binômio SOBERANIA – REPRESENTAÇÃO.

Segundo Araújo e Santos (2009:383), a decisão da concepção schmittiana “remete ao caráter pessoal da manifestação concreta do poder político.”  A exceção “se refere a um estado ou situação (Zustand) excepcional e conflitivo (...) e que se define como um caso de extrema necessidade, de perigo para existência do Estado (...), mas que não pode ser circunscrito numa tipificação (tatbestandsmäbig). Esses autores dizem ainda que a apreciação do conceito de decisão leva às definições centrais da Teoria da Constituição de Schmitt, pois a “definida Constituição como Decisão tratar-se-á de conceituar a situação de exceção na qual se manifesta o Soberano e sua constitucionalização como estado de exceção.” (grifo do autor)

“A própria existência da ordem social – e portanto, da ordem jurídica – pressupõe um ato de decisão constitutiva emanado da unidade política. A decisão é, para Schmitt, a origem e fundamento de toda a fenomenologia do direito (Hofmann[2], 1999, p. 78): as manifestações concretas do direito só são possíveis – o direito só  se realiza – por emanarem de um ato decisório de caráter pessoal. Referendo-se a Hobbes no livro Sobre os três modo de pensar a ciência jurídica (1934), Schmitt compreende todo direito como um ato do soberano: ‘[t]odo direito, todas as normas e leis, todas as interpretações de leis, todas as ordens são para ele essencialmente decisões do soberano, e o soberano não é um monarca legítimo ou uma instância competente, mas o soberano é exatamente aquele que decide soberanamente. Direito é lei e lei é comando que decide uma disputa jurídica: Auctoritas non veritas facit legem. (Schmitt[3], 1996b, p.29).” Araújo e Santos (2009:383).

A decisão representa, portanto, da leitura que Schmitt faz de Hobbes, a eliminação da desordem presente no estado de natureza com a fundação da ordem estatal à partir do soberano. A decisão soberana é, então, o princípio absoluto; uma ditadura criadora da ordem e contra a insegurança anárquica pré e infra-estatal. É a partir da decisão que o soberano, como um juiz, decide efetivamente de acordo com a contingência do caso concreto. A caracterização da soberania em Schmitt aponta para uma formação específica do Estado baseado na decisão da unidade política.

Os conceitos de decisão, representação e soberania dão forma ao conceito de Constituição que, segundo Schmitt, significa em essência a determinação da própria forma de existência. Como para Schmitt soberano é aquele que decide sobre o Estado de exceção, entende-se exceção, portanto, como um conceito geral da doutrina de Estado, e soberano não é aquele que ocupa o cume de uma pirâmide organizacional da burocracia normativa de Estado, mas quem detém a prerrogativa, o poder de decidir sobre a existência dos fatos e acontecimentos, e determina como superá-los.

Em Carl Schmitt não há espaço para ilusões legitimistas no sentido normativista de um fundamento moral ou racional, pois a ordem – seja ela social, política ou jurídica – emana de uma decisão e será legítima se advinda do agrupamento amigo-inimigo, no sentido schmittiano, que constitui a unidade política, residindo nesta o Poder Constituinte quem cabe a decisão soberana de constituir a ordem.

O agrupamento amigo-inimigo schmittiano é um critério da ação política que se difere de toda atividade humana. Como a política para Schmitt é eminentemente uma decisão, decide-se quem é o amigo e quem é o inimigo e, inclusive, sobre a vida e sobre a morte, sobre a paz e sobre a guerra; enfim, a decisão de Schmitt é pela representação que se manifesta pelo poder soberano.

Segundo Silva (2009:454), distinção “amigo-inimigo” schmittiano é um critério para o político, e ainda um posicionamento metodológico, pois possibilita a Schmitt apontar contra quem, ou contra o quê escreve. A esse respeito, Silva (2009:452) ressalta que

“[S]eguindo o caminho trilhado por Maquiavel, Schmitt quer dar à política um caráter autônomo – é, sobretudo sobre esse ponto que Strauss será mais contundente em suas críticas, denunciando a idéia de uma política autônoma e livre de valores – e liberar a teoria política do entrave que se origina da confusão entre a esfera política e os demais campos da ação humana. Ao reconhecer a necessidade de pensar a política em sua especificidade, Schmitt poderá ser  filiado à tradição da filosofo a política que tem como seus expoentes Maquiavel e Hobbes, autores dos quais se sente próximo.Para isso, Carl Schmitt partirá direto para a idéia de fundamento e tentará responder a questão: qual é o objetivo do político? (no que diz respeito aos fundamentos da vida comum). Assim como o domínio da moral é determinado pelas noções de bem e mal, o estético pelas de belo e feio, o econômico pelas categorias do lucro, a política pode ser definida a partir da distinção amigo-inimigo. Schmitt deixa claro que o inimigo ao qual se refere será sempre o inimigo público (hostis), a ênfase que o autor faz, é necessária para evitar que inimigo resvale no indivíduo (liberal) incapaz de produzir identidade e por conseqüência unidade. Há uma relação direta em Schmitt entre Identidade e unidade.”

Sobre o antagonismo amigo-inimigo, Ferreira (2009: 329) esclarece que

“A compreensão do político baseada na distinção entre amigo e inimigo que ele propõe no livro Der Begriff des Politischen (O conceito do político) tem como desdobramento uma imagem do mundo como um pluriversum de unidades políticas que se definem de forma recíproca umas em relação às outras. Nesse contexto, a guerra seria “o pressuposto sempre presente como possibilidade real” (BP, 34-35).”

Quanto à distinção amigo-inimigo e a possibilidade sempre iminente de guerra, Silva (2009:452) orienta que  esse critério do político constitui um conceito-limite, ou seja, define um caso de guerra,  que é a mais extrema demonstração de inimizade e o que nos leva a  conhecer a natureza das formas políticas. Silva afirma que é no caso limite que é manifesto todo caráter particular das oposições políticas. Segundo ele, Schmitt afirma que a guerra nos permite ter uma perspectiva privilegiada daquilo que não podemos perceber no cotidiano. A guerra amplia a visão em relação ao político, o que em situações normais não seria tangível. A possibilidade da guerra é a manifestação do caso de exceção, rompendo a normalidade, desvelando o ser do político.

“Em suma, a guerra traz a tona o político. Isso faz dela uma condição existencial da política. Não significa, porém que guerra seja finalidade da política, mas ela é uma possibilidade inscrita no ser da política. A possibilidade de haver guerra é o que Schmitt chama de político.” Silva (2009:452)

E complementa dizendo que

O conflito para Schmitt é uma condição para a vida política como o é também em autores -cada um ao seu modo- como Hannah Arendt ou mesmo Claude Lefort, o que marca a obra de Schmitt é exatamente a dimensão que é dada ao conflito, afinal o antagonismo amigo-inimigo é de todos, o mais forte e intenso, que não afasta de si a possibilidade de provocar ou mesmo de sofrer a morte física. Mais uma vez ele é o grau extremo dirá Schmitt, é o conceito levado e aplicado ao seu limite, ao extremo. Na situação limite o humano é lançado na sua origem contingente, quer dizer, ele se priva de qualquer garantia e se expõe ao risco da morte. A decisão final será sempre sobre a vida do outro. Essa é a situação política por natureza. Apesar da importância da guerra nessa formulação do político que Carl Schmitt faz isso não implica numa defesa da guerra como tal. Está claro no texto que ela não é o fundamento nem tão pouco a finalidade da política, também não faz parte da definição de amigo-inimigo, a guerra é possibilidade não conteúdo da política, ela é na verdade o reconhecimento de que a guerra está inscrita na possibilidade das relações humanas e é sobretudo uma recusa do pacifismo que vem como conseqüência do estado total, a célebre afirmação de Clausevitz de que a guerra é nada mais que prosseguimento da política por outros meios é resignificada por Schmitt. Silva (2009:453)

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Assim, o poder de decidir sobre amigo-inimigo recai sobre Estado, enquanto unidade política soberana e, como a decisão soberana acaba com o caos e instaura uma normalidade que poderá se transformar conforme a dinâmica de suas instituições (Akoncretes Ordnungsdenken), caberá ao soberano definir o inimigo e estabelecer o caso de guerra.

Para Giorgio Agamben, no livro Estado de exceção (2003), a soberania schmittiana tem como escopo regular ou reinstalar a ordem jurídica numa situação de desordem somente mensurada de formar objetiva pelo próprio soberano.

Regular juridicamente a soberania equivale, portanto, a juridicizar a situação de exceção. Porém, tal situação não é passível de circunscrição jurídica porque não seria possível formular abstratamente os tipos de exceção para que se figure em lei. Para Schmitt, a abordagem jurídica tradicional não os alcança, sendo o estado de exceção passível de ser identificado somente na prática.

Nesse sentido, Schmitt não vê na concepção liberal de estado de sítio e estado de emergência como conceitos plausíveis para definir os estado de exceção; é no conceito de estado de necessidade que ele reconhece a substância do estado de exceção, pois há uma situação especial onde a lei perde os seu caráter obrigatório.

O estado de exceção para Schmitt, então, deve ser aquele que permita a suspensão de toda a ordem jurídica vigente, identificando concretamente a própria existência do Estado, com o fim de preservá-lo; “suspende-se toda a ordem jurídica com a finalidade de (re)constituí-la.” (Araújo e Santos, 2009:373)

“É através do estado de exceção que se exerce a soberania: suspende-se toda a ordem jurídica com a finalidade de (re)constituí-la. As teorias do Estado liberais repudiam esta idéia porque ela expõe a decisão inevitável que sustenta toda a normalidade constitucional. O Estado de Direito, ‘ao dividir as competências e instaurar o mútuo controle, procura adiar (hinauszuschieben) a questão da soberania o máximo possível’ (Schmitt, 2001, p.26-27).”

Cardoso (2009:61) esclarece que “o estado de exceção está para jurisprudência assim como o milagre está para teologia – fórmula que expressa o núcleo teológico-positivo do conceito de soberania.” E ressalta ainda a importância dessa concepção para Schmitt porque esse afirma que os conceitos da moderna teoria do estado são conceitos teológicos secularizados.

A exceção em termos schmitianos então versa sobre a questão da validade do direito, porque não existe norma que se possa aplicar ao caos. Ë preciso que a ordem seja estabelecida para que a ordem jurídica tenha um sentido. Não é o mandamento enquanto mandamento que restabelecerá a ordem da situação fática, mas a autoridade ou a soberania de uma decisão última, dada com o mandamento que constitui a fonte de todo “direito”, ou seja, de todas as normas e de todas as ordens que dele derivam. A decisão soberana é começo absoluto e jorra e um nada normativo e de uma desordem concreta. O soberano decide irrestritamente sobre o caso concreto e sua decisão, segundo Schmitt, mesmo sendo apolítica representa sempre uma decisão política, independentemente de quem ela atinge e que roupagem assuma.

Assim, segundo Cardoso (2009:81), a exceção enquanto estado de exceção constitui o pano de fundo da norma na doutrina schmittiana, pois “a situação normal não faz sentido se ela não exclui a situação anormal, excepcional.” A exceção é a situação anormal que institui e confere validade a norma.

“A exceção, desde que não seja sem relação com a norma, confirma a regra, como sublinhava CARL SCHMITT em sua Teologia política, e faz assim aparecer, de encontro à teoria kelsiana, a imanência no direito do elemento decisionista sem o qual a norma seria impensável. A decisão não é exterior ao direito, ela lhe é inerente. Nesse sentido, a exceção serve de mediado entre o fato e (a decisão) e o direito (a norma). Todavia a exceção no sentido da criação de uma ordem jurídica, seja pelo soberano no sentido de HOBBES, seja pelo poder constituinte qualquer que seja sua origem, revolucionária ou não, dissocia a norma da decisão na medida em que a decisão toma o passo sobre a norma. A norma pressupõe a decisão.” Cardoso (2009:81)

A esse respeito, Cardoso ainda cita os ensinamentos de Marramao:

“O significado jurídico do estado de exceção exerce a função de tornar manifesto o âmago da soberania, precisamente destituído pelo racionalismo iluminista que pretende deduzir a decisão segundo o conteúdo de uma norma. Torna-se assim crucial a distinção entre jurídico e normativo. A decisão é de fato extranormativa: livre de todo e qualquer vínculo normativo, absoluta em sentido próprio.” Cardoso (2009:62)

Dessa maneira fica evidente o posicionamento de Schmitt frente ao normativismo, sobre tudo, kelsiano contra quem se opõem ferozmente, pois “para Schmitt, o importante é quem decide, e o normativismo, por seu caráter abstrato, revela-se incapaz de diferenciar a norma e aplicação da norma” porque “o direito não estabelece quem vai e como vai aplicar o Direito.” (Cardoso 2009, p. 86)

4.2 – A concepção de soberania de Kelsen.

“Uma máscara, uma verdadeira máscara trágica, sob a qual se oculta diferentes pretensões de dominação, é a teoria da SOBERANIA.” (SOLON, 1997:47). Essas palavras de Kelsen presentes na obra dedicada a Giordio del Vechchio (“Der Wandel des Souveränitsbegriffs” in Studi filosofici giuridici dedicati a Giorgio del Vechchio, 1931.) traduzem bem a concepção que Kelsen possui a respeito do conceito de SOBERANIA. Para Kelsen, o conceito traz consigo finalidades de interesse estritamente político muito mais do que cientifico.

Em sua obra O problema da Soberania e a Teoria do Direito Internacional, contribuição para uma teoria pura do direito, ele relaciona o conceito com a sua origem etimológica da palavra latina supremitas que teria como significado fundamental uma ordem superior das condutas humanas que, apesar dos disfarces, a definição de soberania não perdeu o seu sentido original sendo aplicado ao domínio do Estado e do Direito como a expressão de uma ordem suprema, nos ensina Solon (1997:48).

No decorrer da obra dedicada ao tema, Kelsen critica desde a concepção medieval sobre as civitates superiorem non cognoscentes, menciona a definição de Bodin da summa potestas; critítica ainda a noção jusnaturalista e rousseauliana de fundamento do Estado num contrato social, mas o auge da critica se encontra, segundo Solon, na teoria geral do Estado dos juristas positivistas alemães do século XIX, do qual Solon  transcreve as palavras de Kelsen:

A afirmação, segundo a qual a Teoria Pura do Direito não passaria de um labandismo é desprovida de sentido. Se é, certamente, verdadeiro que Laband tentou separar o direito positivo da política, é igualmente verdadeiro que ele fracassou. A doutrina de Estado de Laband é, na realidade, uma ideologia do princípio monárquico, estuda de um modo totalmente inadmissível e em oposição ao direito positivo. Diante da aspiração muito conhecida de Ladand a uma distinção entre doutrina do direito positivo do Estado, de um lado, e a política, de outro, a Teoria Pura do Direito se inscreve, com certeza, no prolongamento de uma tradição que, na Alemanha, começou com Gerber.

A diferença fundamental entre a Teoria Pura do Direito e a doutrina de Laband reside no fato que este não enunciou os princípios de uma teoria jurídica, mas se limitou a uma interpretação ad Constituição (...).

Gostaríamos, além do mais, de sublinhar o fato de que já nossa “Hauptprobleme” tomou o cuidado de se distanciar das tend6encias políticas, habilmente disfarçadas, da doutrina do Estado de Ladand.Isso demonstra que a Teoria Pura do Direito nasceu em oposição ao labandismo. É surpreendente que todos aqueles que nos reprovam por seu um adepto do labandismo sejam os mesmos que insistam sobre o perigo que nossa teoria representa ao Estado. O próprio Laband, o jurista mais conservador da coroa prussiana,s e volveria em seu túmulo caso soubesse que a Teoria Pura do Direito lhe fora atribuída.” (Sólon, 1997:49)

Neste trecho citado por Solon em sua obra Teoria da Soberania como problema da norma jurídica e da Decisão (1997) deixa claro a divergência de Kelsen quanto a teoria do Estado dos positivistas dos século XIX.

Kelsen, embora positivista, não concebia a SOBERANIA como uma característica do poder do Estado, mas sua concepção normativista somente poderia considerar a SOBERANIA como um atributo do Estado enquanto ordem jurídica suprema , o que o aproxima da SOBERANIA do direito de Krabbe.

Contudo, Kelsen diverge de Krabbe no ponto em que sua doutrina mantém o dualismo entre Estado e o direito, pois Kelsen entende que mesmo a monarquia absoluta seria um “Estado-de-direito”, pois por mais despótico que seja o governante, o fundamento de seu poder, sempre recairá em uma proposição jurídica originária, que converte comandos pessoais em normas.

Nesse sentido, em Teoria Pura do Direito, Kelsen diz que:

A doutrina tradicional do Estado e do Direito não pode renunciar a esta teoria, não pode passar sem o dualismo de Estado e Direito que nela se manifesta. Na verdade, este desempenha uma função ideológica de importância extraordinária que não pode ser sobreestimada. O Estado deve ser representado como uma pessoa diferente do Direito para que o Direito possa justificar o Estado – que cria este Direito e se lhe submete. E o Direito só pode justificar o Estado quando é pressuposto como uma ordem essencialmente diferente do Estado, oposta à sua originária natureza, o poder, e, por isso, mesmo, recta ou justa em um qualquer sentido. Assim o Estado é transformado, de um simples facto de poder, em Estado de Direito que se justifica pelo facto de fazer o Direito. Do mesmo passo que uma legitimação metafísico-religiosa do Estado se torna ineficaz, impõe-se a necessidade de esta teoria do Estado de Direito se transformar na única possível justificação do Estado. Esta “teoria” torna o Estado objecto do conhecimento jurídico, a saber, da teoria do Estado na medida em que o afirma como pessoa jurídica, e, ao mesmo tempo e contraditoriamente, acentua com todo o vigor que o Estado, porque e enquanto poder e, portanto, algo de essencialmente diverso do Direito, não pode ser concebido juridicamente. Esta contradição, porém, não lhe faz a menor mossa. Aliás, as contradições em que necessariamente as teorias ideológicas se enredam não significam para elas qualquer obstáculo sério. Com efeito, as ideologias não visam propriamente o aprofundamento do conhecimento mas a determinação da vontade. Aqui não se trata tanto de apreender a essência do Estado como antes de fortalecer a sua autoridade. (Kelsen, 1984:384-385).

Dessa maneira, é ponto pacífico para Kelsen identificação do Estado com o  Direito. Mas em todo caso, “[a] idéia essencial da unidade do Estado e do Direito, não exclui a onipotência material daquele como um dos mundos possíveis deste.” (Solon, 1997:53)

A partir desta premissa, tanto o Estado como o Direito formam um complexo normativo, que não pode ser analisado desde uma perspectiva jurídica, na esfera da realidade natural do “ser”, mas sim, no plano normativo ideal do “dever ser”. (Solon, 1997:54)

Assim, podemos concluir que Kelsen liquidou o problema de se saber se a soberania seria uma propriedade do Direito ou do Estado, pois estabeleceu que o Estado somente é soberano enquanto ordem jurídica.

Para Carl Schmitt, Kelsen resolve o problema do conceito de soberania simplesmente negando-o. Analisemos a critica no próximo capítulo.

4.3 – Schmitt contra Kelsen.

Carl Schmitt, em função da abordagem decisionista do Direito, tem Kelsen como um dos seus principais interlocutores, contra quem se opõe asperamente quanto à noção normativista e monista do Direito.

Schmitt afirma que Kelsen ao empreender um dos estudos mais preciosos do conceito de soberania, busca uma solução simplista aplicando a disjunção sociologia–jurisprundência e, com a aplicação desse procedimento, alcança um resultado nada surpreendente de que o Estado deveria ser algo puramente jurídico, identificando assim o Estado com a Constituição.

O estudo mais precioso do conceito de soberania, nos últimos anos, procura uma solução mais simples, na medida em que institui a disjunção “sociologia-jurisprudência”, (...). Kelsen seguiu esse caminho em seus escritos(...)

Com a ajuda desse processo, Kelsen chegou ao resultado nada surpreendente de que o Estado, para contemplação jurídica, deveria ser algo puramente jurídico, algo de valor normativo, portanto, não uma  realidade qualquer ou algo pensado como marginal ou exterior à ordem jurídica, mas nada além dessa própria ordem jurídica, na verdade uma unidade (...) Portanto, no enfoque jurídico, o Estado é idêntico à sua Constituição, isto é, à norma básica unificada. (Schmitt, 1996:97).

Assim, Schmitt acusa Kelsen de não resolver o problema da soberania, mas negá-la, sendo essa atitude uma antiga estratégia liberal desinteressada na concretização do direito, fazendo inclusive referencia a teoria de Krabble.

Kelsen resolve o problema do conceito de soberania simplesmente negando-o. A conclusão de suas decisões é “O conceito de soberania deve ser radicalmente reprimido” (Problem der Soveränität, p.320). Na prática, essa é a velha negação liberal diante do direito e o desdém pela questão independente da concretização do direito. Esse enfoque teve uma apresentação famosa por parte de Krabble, cujo o estudo sobre soberania do direito (1906, com o título de Die moderne Staatsidee, com o lançamento da 2º edição alemã ampliada, em 1919) baseia-se na tese que soberano é o direito, e não o Estado. (Schmitt, 1996: 99)

Outra referência que Schmitt faz da relação existente entre a teoria de Krabble e Kelsen é quando crítica o formalismo deste neokantiano, pois Schmitt (1996:104) afirma que “a idéia jurídica não pode se concretizar a si mesma”.

Kelsen contradiz a si mesmo quando adota esse conceito de forma, criticamente obtido, como ponto de partida subjetivo, e considera a unidade da ordem jurídica como um ato livre de reconhecimento jurídico; mas ali onde ele professa uma visão de mundo, ele exige objetividade e até mesmo critica o coletivismo hegeliano pelo seu subjetivismo estatal. A objetividade que ele reivindica para si esgota-se no fato de evitar tudo o que é personalista e devolver a ordem jurídica ao valor impessoal de uma norma impessoal.

As diversas teorias do conceito de soberania de Krabble, Preus e Kelsen defendem uma objetividade como essa; nelas eles também concordam ao alegar que tudo o que é pessoal deve desaparecer do conceito de Estado. Para eles, a personalidade e o comando estão interligados. (Schmitt, 1996:104).

Para Schmitt, todas essas concepções não consideraram que a idéia da personalidade e sua relação com a autoridade formal evadiram-se do interesse jurídico específico que se constitui no espírito da decisão-jurídica, pois decisão é percepção jurídica. Dessa maneira, toda decisão jurídica contém um instante de conteúdo indiferenciado, porque a conclusão jurídica não é dedutível até a última de suas premissas, por isso a necessidade da decisão em certos momentos determinantes e independentes. Tal circunstância se evidencia, segundo Schmitt, na doutrina do ato falho estatal; não é com auxilio da norma que se confere a competência a alguém, mas o contrário é a partir de um ponto de imputação que se determina o que é norma e precisão normativa. Considerando que toda decisão incorreta ocasiona uma conseqüência jurídica, a decisão incorreta possui um momento constitutivo justamente em função de sua incorreção e não em função de uma norma.

Assim, portanto, é na distinção entre decisão e norma que residem as principais divergências entre os dois autores ora estudados.

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Sobre o autor
José Cecílio Neto e Lopes

Doutorando em Filosofia. Professor na Academia de Polícia Civil de Minas Gerais (ACADEPOL/MG) nas disciplinas de legislação penal especial.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LOPES, José Cecílio Neto. O conceito de soberania na teoria de Carl Schmitt. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4877, 7 nov. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/35936. Acesso em: 19 abr. 2024.

Mais informações

Artigo apresentado como requisito parcial para obtenção de grau de bacharel em direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC-MG

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