Construção de usinas hidrelétricas e povos indígenas afetados

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04/02/2015 às 13:28
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O presente artigo trata dos problemas decorrentes da construção de usinas hidrelétricas quando há povos indígenas afetados

(a)   Introdução: colisão entre desenvolvimentismo e sustentabilidade

A demanda por energia elétrica no país é crescente. Diante da necessidade de ampliação do parque de geração, transmissão e distribuição discutem-se tanto a escolha quanto a prevalência das fontes de geração de energia. Os critérios à seleção são embasados em uma série de variáveis como o caráter renovável da energia, o custo, a sazonalidade da geração, entre outros.

Diante disso, a União[1], embora não deixe de considerar a utilização de fontes de geração de energia que podem vir a ter maior viabilidade no futuro - a partir de sua utilização em escala e aprimoramento da tecnologia - como a solar, eólica e das marés, ainda prioriza, na matriz brasileira, a construção de usinas hidrelétricas. E, como há um potencial de geração nas bacias hidrográficas da Amazônia, em locais em que há várias terras indígenas já demarcadas, tem ocorrido casos em que os empreendimentos causam influências sobre terras indígenas, máxime no que se refere a grandes hidrelétricas.

Nesse cenário, de colisão, entre o direito essencial de continuidade do abastecimento de energia elétrica, e os direitos dos povos indígenas, se descortina um hard case uma vez que vários princípios constitucionais demandam cedência recíproca para possibilitar uma concordância prática que seja apta a não aniquilar o núcleo essencial de nenhum dos direitos.

A harmonização deve ser feita no contexto da esfera pública: ou seja, faz-se necessário um debate, em uma lógica pós-positivista, com discursividade e comunicação, para que seja possível alcançar uma solução negociada para o choque entre o desenvolvimentismo e a sustentabilidade dos povos indígenas.

Nesse eito, poderão ser identificados e mitigados os efeitos indiretos da construção, e do funcionamento, do empreendimento e afastados os riscos previsíveis - tanto às comunidades indígenas quanto ao meio ambiente. Assim, torna-se possível compatibilizar, de forma a possibilitar coexistência, os valores constitucionais do direito ao desenvolvimento da sociedade brasileira – a partir da necessária expansão do parque energético do país, com qualidade e modicidade nos preços - com a sobrevivência da comunidade tradicional, ante a devastação cultural e ambiental que pode ocorrer.

Tal discussão mostra-se necessária se o empreendimento for estabelecido dentro dos limites das terras indígenas ou - mesmo que o empreendimento seja localizado topograficamente fora do território demarcado - vier a afetar as comunidades, desde que haja conseqüências danosas em decorrência dos diversos impactos, diretos e indiretos, potencialmente causados pelo empreendimento aos índios[2].

As externalidades negativas à população indígena podem ser diversas em razão da proximidade com a obra, como o comprometimento da qualidade da água dos rios, a redução da diversidade biológica, com pungentes riscos à sobrevivência e à saúde da população indígena. Sem falar nos danos potenciais às eventuais áreas sagradas, que - no momento de avaliação dos impactos e viabilidade dos empreendimentos - devem ser compreendidas em sentido amplo, como relevantes para as crenças, costumes, tradições, simbologia e espiritualidade das etnias, como preceituam os artigos 216 e 231 da Constituição[3]

É certo que a construção de usina à geração de energia elétrica também tem o condão de gerar externalidades positivas, ante uma cadeia de riquezas oriunda da infraestrutura material decorrente do complexo hidrelétrico, que não deixa de ter enorme potencial de alavancar a economia local, para além de sua finalidade precípua: a colaboração para a consolidação da matriz energética do País, que ostenta fundamentalidade para possibilitar o crescimento da economia do país.

(b)   Do meio ambiente cultural: princípios da precaução e equidade intergeracional

Com a construção do empreendimento, ao mesmo tempo em que se alcança a possibilidade da geração de energia renovável e economicamente barata - permitindo-se a modicidade das tarifas – não se pode desconsiderar que há intervenção em elementos socioculturais de comunidades tradicionais e no meio ambiente.

Tanto o meio ambiente, quanto a cultura da comunidade, têm como princípios informadores a equidade intergeracional e a precaução. Tais princípios do direito ambiental podem ser emprestados à tutela dos povos indígenas, ante a relação peculiar que tais povos possuem com as terras que ocupam.

Insta asseverar que o elemento imaterial ou espiritual da cultura indígena é atavicamente ligado ao elemento territorial, seja pelo seu uso, seja pela sua ocupação.

Cumpre considerar que a utilização dos princípios do Direito Ambiental para as comunidades indígenas decorre do item 15 da ementa do leading case Raposa Serra do Sol em que se enfatizou “a relação de pertinência entre terras indígenas e meio ambiente” já que “há perfeita compatibilidade entre meio ambiente e terras indígenas, ainda que estas envolvam áreas de "conservação" e "preservação" ambiental”. Ademais, é certo que o direito ambiental abrange - além do meio ambiente natural, artificial e do trabalho - o meio ambiente cultural.

Disso dimana que, inelutavelmente, o meio ambiente sadio e equilibrado tem relação mutualística com a existência dos povos indígenas. Da essencialidade da preservação à sobrevivência e reprodução, física e cultural, decorre a utilização dos princípios ambientais supracitados.

O princípio da solidariedade intergeracional do Direito Ambiental é previsto no inciso IV do §1º do art. 225 da Constituição Federal[4].

A razão de tal previsão é a constatação de que a maioria dos danos causados ao meio ambiente e à cultura dos povos indígenas são irreversíveis. E, por via de consequência, com os danos ambientais, os danos socioculturais da comunidade indígena. Portanto, diante do duvidoso, deve prevalecer o meio ambiente cultural equilibrado e a higidez do modo de vida da comunidade indígena afetada, em detrimento do lucro.

Nessa seara deve ser trazido à baila o ditado popular de que “o seguro morreu de velho”; ou ainda de que é melhor “prevenir a remediar”. Com efeito, não se pode tolerar que o Poder Judiciário inicialmente se abstenha de impedir a destruição de um modo de vida de minorias, para depois da construção, e finalização do empreendimento, alegar a perda de objeto da demanda ante o fato consumado. Primeiro se refuta o provimento do pedido da tutela de urgência, para depois se confirmar a já previsível negativa de tratamento adequado ao bem jurídico constitucional.

Insta assinalar que a recomposição específica do dano ambiental – assim como do dano sociocultural - revela-se incerta e penosa. Por isso, fica autorizada a afirmação de que, além da invocação da equidade intergeracional, sem a utilização do princípio da precaução, além de um malferimento dos artigos 216 e 231 da Constituição, corre-se um risco de etnocídio da minoria dos índios pela sociedade envolvente.

Nessa quadra, não se pode ignorar a assertiva de que a vontade da Constituição é de preservação e fomento do multiculturalismo; e não da produção de um assimilacionismo e integracionismo, de matriz colonialista, impostos pela vontade da cultura dominante em detrimento dos modos de criar, fazer e viver dos povos índigenas (art. 216, II, da Constituição).

Por isso, não pode o empreendedor, como medida de compensação aos impactos da obra, se limitar a construir casas populares, escolas, postos de saúde e alardear que a usina trará benefícios à coletividade, como tem sido feito em alguns grandes empreendimentos em regiões antropizadas da Amazônia, como Jirau e Santo Antônio, em Rondônia, Belo Monte, no Pará, e o complexo de sete usinas no rio Teles Pires, em Mato Grosso[5].

Já no que se refere à precaução, em um contexto da delicada e complexa tarefa da busca de equilíbrio e conformação entre os valores já mencionados no item anterior - do desenvolvimento com a sustentabilidade do meio ambiente cultural sadio - com preservação de direitos dos povos indígenas, torna-se também imperioso assinalar que este princípio tem a lógica de que se existir incerteza científica e, em decorrência, ausente segurança das prováveis conseqüências de uma atividade, há de se repensar ou, no mínimo, adiar tal atividade.

Tal princípio foi originariamente previsto no Princípio n.º 15 da Declaração do Rio de 1992[6].

Nesse contexto, a meu ver, se mostram ilógicas e açodadas, do ponto de vista do princípio da precaução, expedições de licenças, realização de leilões, se ainda não foram envidados esforços para sanar desconformidades em relação a povos indígenas - que possuem ligação peculiar com o meio ambiente natural - como exige o princípio da precaução. Tal comportamento faz tábula rasa da necessidade da proteção de minorias pelo Poder Judiciário, cuja necessidade em uma democracia foi ressaltado pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Recurso Extraordinário 477554[7], em um cenário de jurisdição constitucional coletiva e histórica. 

A necessidade da preservação de um multiculturalismo, que garante a existência da comunidade indígena, está positivada nos itens 9 e 10 da ementa do julgado paradigmático, exarado pelo Supremo Tribunal Federal, no supracitado caso Raposa Serra do Sol em que restou consignado que o desenvolvimento sempre deve levar em conta os direitos dos índios a partir da efetiva consideração do modo de vida das minorias[8]

Nesse diapasão, para a Suprema Corte pátria, forçoso concluir-se que se tem por inconstitucional desenvolvimento sem ou contra os índios. Tal conduta ignora a Constituição intercultural, que não aceita a dominação pelo pensamento unívoco da cultura hegemônica e impõe uma Administração Pública dialógica, máxime com grupos minoritários.

Por isso, o Poder Judiciário não pode, tão somente calcado no pretexto da necessidade de desenvolvimento célere, ignorar o marco regulatório vigente à construção de usinas - mormente a Resolução 01/86 do CONAMA e o princípio da precaução - quando haja povos indígenas afetados.

E a jurisprudência dos Tribunais Regionais Federais tem se atentado aos impactos socioambientais das usinas hidrelétricas.

Com efeito, o e. Tribunal Regional Federal da 1ª Região, no que se refere à usina hidrelétrica Teles Pires, censurou a apressada política governamental, que desconsidera o supracitado princípio da precaução, bem como, a possível interferência nas comunidades indígenas Kayabi, Munduruku e Apiaká[9].

Ainda, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região, recentemente, também não se furtou em reconhecer a necessidade de consideração pelo Poder Judiciário da preservação do modo de vida das comunidades indígenas afetadas, na hipótese de construção de usinas hidrelétricas, em caso que se refere à UHE Mauá[10]. Para o Tribunal Regional Federal da 4ª Região, o Poder Judiciário não pode se furtar a fiscalizar um licenciamento possivelmente feito de forma viciada, como ocorreu no caso supracitado da Usina Hidrelétrica Mauá, conforme se denota da leitura dos itens 1 e 10 de sua ementa.

(c) da suspensão de liminar

Ocorre que, as decisões de mérito do Poder Judiciário, quando tem o condão de gerar a paralisação do empreendimento, não têm sido efetivadas concretamente já que o Poder Público, nos grandes empreendimentos hidrelétricos tem lançado mão do instrumento jurídico da suspensão de liminar e, dessa forma, conseguido sobrestar a eficácia das determinações judiciais[11].

O instrumento da suspensão de liminar possibilita uma contracautela a decisões de mérito e é previsto no art. 4º da lei 8437/92 e no art. 15 da lei 12.016/09. Em linhas gerais a ação de impugnação permite que o Presidente do Tribunal - em caso de interesse público, ou ilegitimidade, da decisão jurisdicional, para atender aos objetivos de impedir uma grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas - pode suspender a decisão de mérito até o trânsito em julgado da demanda.

Ou seja, com base em cláusulas gerais, e conceitos jurídicos indeterminados, cuja interpretação é difusa, e subjetiva, a lei permite que seja excepcionado o princípio do juiz natural, sem qualquer análise, pelo Presidente da Corte, da questão de fundo posta na demanda. Em caso de deferimento da suspensão não se cassa a decisão sobrestada. Ao revés, apenas se torna ineficaz seu comando até que a demanda transite em julgado (ou o Supremo Tribunal Federal profira decisão, nos termos da súmula 626[12] daquela Corte).

Por isso, há severas críticas da doutrina ao instrumento de impugnação, como, por exemplo, advindas do Desembargador Federal Souza Prudente para quem “a esdrúxula figura da suspensão de segurança, nascida nas entranhas da lei 4348, de 26 de junho de 1964, no liminar sangrento da ditadura militar, visando amordaçar a magistratura independente do Brasil na truculência do regime de exceção que ali se instalava (...)”[13].

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A prova de que a utilização do instrumento é aberta, e pode ser invocada em diversos cenários, é que, no que se refere ao tema do presente artigo, além das suspensões de liminares que paralisam as usinas hidrelétricas, recentemente o Procurador Geral da República entrou com pedido de suspensão no Supremo Tribunal Federal[14] com o pleito de que seja suspensa uma decisão, que deferiu outro pedido de suspensão, obstativa do licenciamento.

Assim, referido pedido de suspensão visa a conferir eficácia paralisante à suspensão deferida no Tribunal Regional Federal da 1ª Região, para que seja revigorada a eficácia da decisão liminar de mérito, de minha lavra, que suspendeu o licenciamento da usina São Manoel, para proteger índios isolados[15]. Ou seja, fica autorizada a conclusão de que a suspensão é um “abracadabra jurídico”: tanto é manejada com o intento de permitir o andamento do empreendimento, quanto para que seja restaurada a decisão que o suspendeu.

Nesse contexto dimana que uma discussão jurídica, contida em ação civil pública, sai da esfera do juiz natural, dos recursos ordinários aos desembargadores do Tribunal, para se situar tão somente em decisões monocráticas de suspensão de liminar, de natureza política, seja pelo Presidente do Tribunal Regional Federal, seja pelo Presidente dos Tribunais Superiores.

Ambas as partes se valem de um instrumento, que não está centrado nos fatos e provas objeto da demanda para se chegar a uma conclusão, mas tão somente no aspecto metajurídico incrustado nas cláusulas gerais vistas acima[16].

Com isso, uma decisão monocrática muitas vezes tem validade até a finalização da construção da usina, sendo que, na prática, a demanda judicial acaba por perder o seu objeto, uma vez que eventual dano sociocultural não poderá mais ser contido.   

(d) do papel do Poder Judiciário

O Poder Judiciário precisa impedir referida perda de objeto da demanda.

Já dizia Rui Barbosa que a justiça que tarda não é mais justiça, senão rematada e manifesta injustiça. Por isso, as questões postas nos autos não podem se resolver em futuras compensações meramente patrimoniais, diante da irreversibilidade da construção do empreendimento, com a assunção inconstitucional do risco da consumação de uma destruição da integridade étnica, culminando-se em crônica de uma tragédia anunciada.

Estas eventuais indenizações, seja para os índios, seja para um possível arrematante, além de sua insuficiência à proteção do bem jurídico, ainda podem onerar o erário (já que o empreendedor e proponente do projeto, em grandes usinas que têm ido a leilão é, como regra geral a Empresa de Pesquisa Energética[17], ente público).

Cumpre assinalar, no que pertine à tutela do Poder Judiciário sobre direitos indígenas em hidrelétricas, que a interferência do Poder Judiciário, na decisão administrativa de licenciamento do empreendimento, reveste-se de excepcionalidade.

Nessa senda, não cabe ao magistrado sindicar o mérito do ato administrativo: a opção governamental pela matriz energética nacional.

Com efeito, a vontade do Poder Executivo, com legitimidade haurida do voto popular, em linha de princípio, é infensa à apreciação judicial. A conveniência de expedir licenças prévias e realizar os leilões com celeridade é, em linha de princípio, decisão pertencente ao órgão governamental.

É certo que, na esteira da decisão do Supremo Tribunal Federal na ADPF 45, somente cabe o exame do mérito dos atos e decisões administrativas em hipóteses excepcionais. Estas podem se dar em caso de grave afronta dos direitos de minorias, em que não pode o Poder Judiciário se abster de efetivar o seu papel contramajoritário, no contexto do paradigma pós-positivista, como ocorre no caso de violação de direitos socioculturais dos povos indígenas.

Ao revés, o Estado-juiz deve tão somente, resguardar interesses legítimos das partes afetadas (stakeholders): os povos indígenas, ribeirinhos e a coletividade atingida por eventual violação do direito difuso de um meio ambiente sadio e equilibrado, holisticamente considerado, inclusive sobre o prisma cultural, nos territórios indígenas. Ainda, cumpre tutelar os próprios investidores interessados no empreendimento que, em caso de grandes usinas hidrelétricas, têm adquirido o empreendimento no leilão já licenciado pela Empresa de Pesquisas Energética.

Isso porque, cumpre consignar que, após o desenrolar das fases do licenciamento, com a realização do leilão e continuidade das fases seguintes do processo de licenciamento, o governo afiança ao mercado que todas as etapas anteriores à licença, prévia, de instalação, ou operação, já foram superadas.

Por isso, de rigor que os impactos sobre os povos indígenas, comprovados por meio dos Estudos do Componente Indígena, e as mitigações a serem implementadas não sejam ignorados: estes devem ser adequadamente precificados pelo licitante.

(e) dos instrumentos de direito internacional e do direito de consulta prévia, livre e informada

Nesse diapasão, em caso da produção de um dano socioambiental, é certo que este não virá somente em vilipêndio à vontade constitucional, máxime em seus artigos 216 e 231.

Há que se fazer referência ainda à ordem supralegal, nos termos de diplomas internacionais aplicáveis à espécie, de que o Brasil é signatário, como a Convenção 169/89 da OIT, Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, Convenção Internacional de Proteção ao Patrimônio Cultural Imaterial e o Protocolo de San Salvador, cujo descumprimento pode, inclusive, gerar a condenação da República Federativa do Brasil em instâncias internacionais.

Cumpre ressaltar ainda que não tem sido observados instrumentos de soft law, que contêm valor persuasivo, como as “Diretrizes Voluntárias Akwé: Kon”[18], firmadas em 2004 durante a Conferência das partes da Convenção da Biodiversidade, e que foram adotadas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos como razão de decidir no caso “Povo Indígena Saramaka versus Suriname”.

Tais orientações revelam padrões internacionais mínimos para a elaboração de estudos de impacto às comunidades indígenas e povos tribais, seja nas esferas ambientais, sociais, culturais e econômicas.

Ainda é preciso considerar o princípio 22[19] da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente, em que se consignou que os indígenas têm papel de centralidade na preservação ambiental e desenvolvimento sustentável. Ainda, se estipulou que os Estados Nacionais devem reconhecer e apoiar a preservação das identidades culturais.

Dos instrumentos de direito internacional à tutela dos direitos das comunidades indígenas destaca-se o direito de consulta prévia, livre e informada, previsto na Convenção 169/89 da OIT.

O direito das comunidades indígenas de serem consultadas quanto ao aproveitamento dos recursos hídricos em suas terras também tem supedâneo na Constituição.

Com efeito, o § 3º do artigo 231 da Constituição dispõe que “O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei”.

Além da Constituição, a Convenção nº 169/89 da Organização Internacional do Trabalho – OIT, ratificada pelo Decreto Legislativo nº 143, de 20/06/2002 e promulgada pelo decreto nº 5051, de 19/04/2004, garantiu a participação dos povos indígenas em ação que visa a proteger os seus direitos, nos termos de seus artigos 2º, 6º e 7º[20].

Nesse diapasão, registre-se, por oportuno, que a Emenda Constitucional nº 45/2004 equiparou os tratados internacionais que versam sobre direitos humanos aprovados em cada casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos, às emendas constitucionais. A despeito da Convenção nº 169/89 da OIT não ter sido submetida ao referido quórum de votação, o STF firmou entendimento no sentido de considerá-la de caráter supralegal (RE 349703, Rel. Min. Carlos Britto, Tribunal Pleno, 03/12/2008).

Portanto, as disposições contidas na Convenção nº 169 da OIT garantem aos indígenas, como corolário lógico de suas disposições, o direito de consulta prévia e participação, bem como, o consentimento prévio e informado sobre a Usina Hidrelétrica.

A jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, em diversos casos submetidos à sua apreciação, corrobora a necessidade de materializar os direitos de consulta e participação dos indígenas mediante consentimento prévio e informado. A esse respeito, as decisões da Corte, que corroboram referidos direitos, podem ser consultadas nos itens B e C do Capítulo IX [21] de obra que compila alguns de seus julgados.

Ainda no que se refere aos julgados da Corte Interamericana de Direitos Humanos, cumpre destacar o caso Saramaka vs. Suriname”, julgado em 2007. Neste caso houve concessão da exploração de recursos naturais em territórios indígenas, sem observância do direito de consulta prévia. A Corte censurou a conduta dos empreendedores, já que, ao restringirem direitos sobre os territórios das comunidades tradicionais deveria ter sido franqueada participação efetiva das comunidades afetadas.

Outro caso que cumpre trazer à baila é oXákmok Kásek vs. Paraguai”, de 2010, em que a Corte consignou que, em hipótese de criação de criação de reserva ambiental, com restrições aos povos indígenas, deve o Estado realizar o direito de consulta prévia para assegurar a efetiva participação dos povos afetados.

Em 2012, foi julgado o caso “Kichwa de Sarayaku vs. Equador”, em que o Estado autorizou extração e prospecção de petróleo em território indígena. Mais uma vez, a CIDH consignou a obrigação de realizar a consulta prévia, e dispôs que a efetivação do direito é indelegável.

Esse posicionamento também é previsto pela Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas, nos seus Artigos 19 e 32, em que é reiterada a necessidade do consentimento livre, prévio e informado dos povos indígenas antes de os Estados tomarem decisões que possam afetar seus interesses.

Insta asseverar que um amplo processo democrático de participação popular convive não só com a possibilidade de ouvir, mas também de ter participação efetiva nas soluções que emergirão da soma de estudos técnicos completos, com a realização de audiências públicas posteriores. É isso que se espera de uma Administração Pública dialógica, atenta aos efeitos colaterais de suas políticas públicas sobre os chamados stakeholders, que são todas as partes afetadas pelo empreendimento.

Cumpre ainda elevar os estudos, necessários antes da expedição do licenciamento, a instrumento substancial de harmonização dos valores do desenvolvimento, com o direito das comunidades impactadas, e não mera formalidade - que teria o condão de acabar convertida em letra morta - justamente para permitir um debate qualificado sobre todas as externalidades a serem geradas pela usina hidrelétrica.   

É preciso, por isso, também atentar para o conteúdo dos estudos. Por exemplo, cumpre desconsiderar, por ocasião da elaboração dos estudos, e efetivação da consulta prévia, as definições heterônomas, em que o grupo dominante adota conceitos restritivos de índios para induzir a utilização tacanha de uma razoabilidade de fachada, em que se confronta um pequeno número de índios, e as vantagens do empreendimento, em comparação com o risco de se ativarem as usinas térmicas, que são mais caras e poluentes[22].

Da ordem natural das coisas dimana uma relação de prejudicialidade entre discussões prévias com as comunidades indígenas afetadas, a posterior confecção de Estudo do Componente Indígena, e, por fim, a discussão com a sociedade civil em sede de audiências públicas, anteriores ao licenciamento, dos custos e benefícios da obra.

Embora haja uma ordem lógica de consulta prévia, estudos e audiências públicas cumpre ressaltar que o procedimento não é estático. Das deliberações da audiência pública, ou da análise dos estudos, é possível retornar à fase anterior.

Malgrado o procedimento de consulta e elaboração dos estudos seja dinâmico, não se mostra possível a maleabilidade com relação à inversão das fases do licenciamento, no sentido de se avançar à fase seguinte sem cumprir os requisitos do momento anterior.

Isso porque há risco à preservação do direito das minorias. Assim, uma exigência da licença prévia não pode ser postergada para a licença de instalação para que se imponha uma aceleração da obra. E, nos grandes empreendimentos hidrelétricos, a postergação das exigências têm sido feita com base em uma lógica pragmática de respeito aos cronogramas da obra para que haja uma coincidência entre a disponibilização da geração, transmissão e distribuição[23].

Não obstante a ordem de escalonamento dinâmico das fases, sem que se mostre possível postergar a tutela dos direitos para fases seguintes, verifica-se que o direito de consulta prévia sequer tem sido observado na construção de usinas hidrelétricas, donde se depreende que, nesses casos, não há outra saída que não a censura ao empreendimento pelo Poder Judiciário.

Do contrário, haverá malferimento do papel contramajoritário do Poder Judiciário, reforçado recentemente pelo Supremo Tribunal Federal, por ocasião do julgamento das Argüições de Descumprimento de Preceito Fundamental de números 132 e 187.

                                  Nota-se ainda que à realização da consulta prévia se impõe o respeito aos princípios da ampla divulgação e publicidade, de maneira efetiva. E mais, é importante, que as comunidades indígenas participem de forma substantiva e efetiva: ou, em outras palavras, que possam ouvir e serem ouvidas, sob pena de tal participação ser apenas pró-forma, destituída, de qualquer essência.

Impende ainda trazer à baila o artigo 13 da referida Convenção, que exige dos órgãos governamentais - como o IBAMA, a FUNAI e a Empresa de Pesquisa Energética - o respeito para valores culturais do habitat ocupado pelos indígenas[24]. Já o item 2 do art. 15 assevera que em caso de direitos sobre recursos das terras indígenas deve ser assegurado o direito de consulta “antes de se empreender ou autorizar qualquer programa de prospecção ou exploração dos recursos existentes nas suas terras”. O item 2 do art. 17 da Convenção também aduz que “os povos interessados deverão ser consultados sempre que for considerada sua capacidade para alienarem suas terras ou transmitirem de outra forma os seus direitos sobre essas terras para fora de sua comunidade”.

O direito de consulta pode ser visto como concretização do paradigma neoconstitucionalista, pois, a um só tempo, resta concretizada: (a) a centralidade e força normativa da Constituição (art. 231, Par. 3º); (b) os direitos fundamentais à preservação do modo de vida das minorias são efetivados; (c) o Judiciário exerce o seu papel contramajoritário; (d) há uma lógica discursiva e argumentativa; (e) por fim, há aproximação do direito com a ética e justiça, e a superação do modelo positivista, em que o Direito se mostrava estanque, sem interdisciplinaridade com outras ciências.

A consulta visa à solução autônoma, com a obtenção de consentimento das comunidades indígenas afetadas. Em caso de discordância é preciso deliberar sobre mitigações e compensações do projeto. Por isso, não se pode admitir licença automática e apressada desconsiderando o marco regulatório constitucional e supralegal atinente a intervenções em terras indígenas.

O autogoverno é enfatizado por Letícia Borges da Silva, no que pertine ao direito de consulta ao aduzir que “Trata-se de um direito coletivo, pois a comunidade como um todo deve aceitar ou não, as propostas políticas ou econômicas travadas com ela, respeitando-se assim sua forma tradicional na tomada de decisão”[25].

Como a consulta não foi regulamentada e não tem sido realizada nos empreendimentos recentes sugerimos, para fins de regulamentação por parte dos Poderes Legislativo e Executivo, parâmetros mínimos a serem observados por ocasião do exercício do direito de consulta.

A consulta deve ser feita diretamente aos povos indígenas e não indiretamente, através da FUNAI. O consulente deve ser o Poder Legislativo, seja porque fiscaliza os atos do Poder Executivo, seja por corolário lógico do supracitado Parágrafo 3º do art. 231 da Constituição. A coordenação dos trabalhos deve ser feita por comissão parlamentar temporária. Nada impede que uma perícia ou auditoria ofereçam subsídios para os responsáveis pela consulta.

A audiência deve ser feita na área afetada. Seja para que os parlamentares tenham contato com a realidade local, em que se almeja construir o empreendimento, seja para maximizar a possibilidade de participação dos membros das comunidades atingidas, o que se mostra apto a incrementar a legitimidade do processo.

Cumpre assinalar ainda que de nada adianta consultar se houver desconhecimento da realidade antropológica, econômica e social das comunidades que serão afetadas pelos impactos ambientais, por parte dos consulentes. Destarte, referida comissão precisa conhecer e ouvir a comunidade, além de realizar estudos antropológicos sobre os povos indígenas, para só depois avaliar os possíveis impactos, as mitigações e compensações, em uma lógica cautelosa e consequencialista.

O direito de consulta é corolário da democracia participativa em que a participação e a obtenção da informação, se revelam instrumentos à negociação e tomada de posição. Tal conduta gerará o que Robert David Putnam denominava de “capital social”: ou seja, a participação estimula a cooperação e a confiança, de todas as partes, em todo o processo relacionado ao empreendimento.

Após, o Congresso Nacional deverá publicar ato com a decisão sobre a autorização do empreendimento[26].

Essa influência no processo decisório, seja para a instalação da usina, seja para deliberar acerca de mitigações e compensações, é direito fundamental dotado de estatura constitucional e supralegal.

(f) dos índios isolados

Toda a argumentação expendida avulta no que se refere aos índios isolados. Com efeito, verifica-se que há comunidades que optaram pelo isolamento voluntário como estratégia de sobrevivência, em decorrência da traumática relação travada com não-índios.

A movimentação constante, nos arredores de terras indígenas, às detonações, prospecções e construção de barragens, pode provocar diversos efeitos indesejáveis, como especulação imobiliária, alcoolismo, prostituição e aumento da competição por recursos naturais, como já se verifica em algumas das usinas em construção. E, o grupo de índios isolados ostenta sensibilidade maior em relação a tais intervenções e efeitos colaterais, o que demanda um cuidado ainda maior por ocasião da decisão de construção do empreendimento.

Nessa quadra, pode ocorrer incremento de tensão entre os próprios grupos indígenas. E os isolados ostentam maior vulnerabilidade, bem como tal componente mostra-se capaz de acirrar ainda mais os conflitos socioambientais. Não bastasse isso, no grupo de isolados, há uma sensibilidade maior para contaminação com inúmeras doenças como leishmaniose, dengue, febre amarela, malária e outras, causando danos que podem provocar epidemias. Estas, por seu turno, podem reduzir significativamente o número de indivíduos desses grupos que, muitas vezes, já é diminuto.

Ainda, é fato incontroverso que a construção de uma grande usina tem o condão de, inexoravelmente, romper o isolamento e impactar direta e irreversivelmente os povos indígenas das terras indígenas próximas ao empreendimento, impedindo-se o direito das comunidades de conservar o autogoverno sobre o modelo de desenvolvimento que reputem adequado[27].

Se o Supremo Tribunal Federal, conforme noticiado em seu informativo 233[28] entende que não se pode retirar um indígena de sua terra, temporariamente, para prestar depoimento em uma CPI, por que seria permitida, de forma permanente e inexorável, a ida dos brancos até a Terra Indígena para destruir, de forma irreversível, o habitat e os modos de criar, fazer e viver desses povos? Trata-se de um comportamento desproporcional em relação à jurisprudência da Corte Constitucional.

(g) conclusão

À guisa de conclusão, verifica-se que, no equilíbrio entre a sustentabilidade e o desenvolvimento, é preciso se valer do neoconstitucionalismo para realizar o sopesamento dos dois direitos em uma escala móvel de valores. Tudo para acomodar a necessidade do desenvolvimento com o direito das minorias.

É preciso considerar a Constituição como centro irradiador do ordenamento jurídico, com necessidade da efetiva concretização de direitos fundamentais, máxime a preservação do modo de vida grupos vulneráveis. A eficácia irradiante dos direitos fundamentais é direcionada tanto ao Poder Público (Administração Direta e Indireta) quanto aos particulares, (licitantes do empreendimento) nos termos da denominada eficácia horizontal dos Direitos Fundamentais (Drtitwirkung).

Ademais, a hierarquia entre os valores em choque não se dá com base nos interesses puramente econômicos da maioria; ao revés, cumpre contrapor a carga valorativa das normas e objetivos da democracia brasileira, positivados na Constituição vigente.  É justamente com base nesse pilar democrático que se legitima o papel contramajoritário do Poder Judiciário, com esteio em uma racionalidade discursiva e argumentativa.

Em caso da construção de usinas hidrelétricas em terras indígenas é inadmissível, por violar os princípios da precaução, e solidariedade intergeracional, no meio ambiente cultural, a imposição da aceleração de um procedimento complexo de licenciamento, que ignore os impactos socioculturais, ante a irreversibilidade do dano a ser infligido a minorias.

É cediço que o Poder Judiciário não deve se substituir ao administrador na análise da conveniência e oportunidade ao decidir construir o empreendimento. Assim, o ato administrativo é sindicável do ponto de vista formal. Com essa consciência, é preciso que o Estado-juiz preserve direitos de minorias e, ao mesmo tempo, zele para que o resultado do processo se revele útil. Nesse diapasão, muitas vezes, é necessária a concessão da tutela de urgência, já que a demora na tramitação do processo pode ser apta a nulificar direitos fundamentais de minorias.

Por isso, a utilização do instrumento da suspensão de liminar é perigosa, já que se trata de instrumento processual com fundamentação vinculada, sem enfrentamento direto do mérito da demanda. Com base em cláusulas abertas é possível obstar o cumprimento de decisões judiciais até o trânsito em julgado da demanda, quando, muitas vezes a usina já está construída.

Assim, a ação impugnativa da suspensão de liminar tem impedido o cumprimento pelo Poder Judiciário do seu papel de proteção das minorias, uma vez que suas decisões se tornam inexeqüíveis. Nesse eito, calha à fiveleta recordar as palavras do escritor Joseph Joubert, para quem “A justiça sem força e a força sem justiça são duas grandes desgraças”.

O Direito Internacional também possui vários instrumentos de proteção aos direitos das comunidades indígenas, das quais avulta o direito de consulta prévia, livre e informada, previsto pela Convenção 169/89 da OIT, e que não tem sido observada nas usinas hidrelétricas que são construídas no Brasil.

O direito de consulta prévia reveste-se de fundamentalidade para evitar o dano sociocultural e ambiental, porquanto, como visto, este pode vir a se tornar irreversível, com o desenrolar das obras.

A depender do estado em que a obra chegar, as decisões judiciais sequer teriam o condão de gerar uma reparação específica aos interesses das comunidades tradicionais afetadas, de molde que podem vir a gerar dano sociocultural irreparável aos índios, mormente os isolados.

Em caso de se decidir pela construção de empreendimentos torna-se necessária, também, a ampla discussão de medidas mitigadoras, suficientes a excluírem, de plano, a necessidade de paralisação do empreendimento.

E toda a argumentação expendida ganha mais relevo no caso dos índios isolados, que representam grupo mais sensível às intervenções em regiões que afetem, direta ou indiretamente, os seus territórios.

Em suma, não se pode fazer vistas grossas a um possível fato consumado de destruição sociocultural.

Assim como em Vidas Secas, de Graciliano Ramos, a cachorra Baleia sonhava, de forma inatingível, com seus preás, não se pode permitir que os povos indígenas, futuramente, ao recordar de seu passado, sonhem com um presente que já lhes seja impossível de se viver.

Não se podem relegar aos livros de História os elementos socioculturais de grupos que possuem modos de criar, fazer e viver diversos da cultura prevalente.

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