Nas terras do carnaval soteropolitano, surfando no contexto social de festividade que raia no mês de fevereiro, uma das pautas atuais de discussões tem gravitado em torno de um caso peculiar sobre as maquinações dos operadores das leis.
Trata-se de uma condenação penal de um homem a sete anos de prisão por ter dado um beijo, de forma forçada, em sua vítima no carnaval da Bahia – nos idos de 2008 – proferida pela juíza Silvia Lúcia Bonifácio Andrade Carvalho, da 6ª Vara Criminal, em Salvador, no dia 15 de setembro de 2014. (https://g1.globo.com/bahia/noticia/2015/02/homem-pega-pena-de-sete-anos-de-prisao-por-beijo-forcado-no-carnaval.html)
O tempo decorrido de trâmite do feito não é algo que surpreende nas terras baianas. A baixa produtividade deste Judiciário estadual já foi evidenciada pelo Relatório Justiça em Números 2014, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que apontava o TJ-BA com 47,7% de alcance de desempenho, ficando na frente, apenas, do último e, por isso, desmerecedor de aplausos (ou diríamos palmas?), Tribunal de Justiça do Estado do Piauí, com 42,1%, à época.
Certamente, embora a morosidade seja um fato notório, não é um incentivo a mínima resignação sobre tal defeito, assim como não o é sobre qualquer outro. A inculcação da rotina do vício como uma predestinação conterrânea ou um hábito inerente ao locus vivendi apenas nos torna mais predispostos a termos sobre o mau comportamento uma reação ainda mais natural do que aquela que estaríamos preparados para admitir (FREIRE, 1986).
Todavia, neste trabalho, são muitos os fatores sobre os quais devemos nos debruçar, razão pela qual escolheremos um especial que avulta aos olhos: a desproporcionalidade da pena. É este fato, aliás, o que causou a maior repercussão midiática diante do édito condenatório prolatado.
Vale ressaltar, antes de tudo, que não se pretende tecer uma defesa ao condenado aludido, tampouco menosprezar sua conduta descrita como o desvio punível nos autos do processo em que foi julgado. O que salta à consciência, como lembrou o defensor do Réu, é que “não há proporção entre pena e a ação".
E, de fato, não há. O crime pelo qual foi condenado o acusado, previsto no artigo 213, tem sua pena abstrata definida entre seis e dez anos. A condenação de sete anos por um beijo forçado, em temos, abstratamente, das cominações penais, tomando por base as penas máximas, equivale a condenar alguém por abandonar três bebês recém nascidos em um local ermo, como um matagal (crime do artigo 134, caput, do Código Penal, com pena máxima de dois anos); ou ameaçar de morte (ou algo mais assustador, talvez, como um esquartejamento) catorze pessoas em momentos e por ações distintas (crime previsto no artigo 147 do Código Penal, com pena máxima de seis meses) ou, ainda, invadir vinte e oito domicílios alheios (crime previsto no artigo 150 do Código Penal, com pena máxima de três meses). Há diversos outros crimes de natureza também repudiável. Os trazidos aqui, ilustrativamente, comparam-se em punição a um beijo forçado. Isto é, trocasse esse condenado sua conduta beijoqueira por quaisquer das outras condutas acima descritas, causaria um prejuízo a um número muito maior de pessoas em virtude do amplo alcance de violação a diversos bens jurídicos protegidos. É como no dizer popular: “o barato que saiu caro”. Tivesse feito algo além do beijo, teria o acusado, talvez, ao menos ficado satisfeito de ter consumado maiores prazeres de condutas ilícitas.
Logicamente que não há uma régua de Lesbos sobre o cálculo penal que acarrete uma exatidão da dose cominada de pena, muito embora fórmulas doutrinárias e diretrizes legais da dosimetria não faltem ao julgador. Todavia, é nessa destoante diferença métrica de gradações de penas onde reside a discrepância factual das condenações. Beccaria (1999), há muito, já advertia da necessidade de haver alguma “proporção entre os delitos e as penas... Se a geometria fosse adaptável às infinitas e obscuras combinações das ações humanas, deveria existir uma escala paralela de penas descendo da mais forte para a mais fraca”.
Sem essa fórmula matemática jurídica, não pode ser outra a consequência senão entrever a imagem de um Direito penal enquanto resposta, e única resposta da problemática da conduta desviante. Nesse sentido de entendimento genérico de formulação e aplicação da norma, a pena não teria outra serventia senão a de atemorizar o corpo social e dissipar uma falsa segurança respaldada abstratamente por leis criminais. Como explica Soares et al, uma pena considerada de tal forma como necessária, na verdade,
(...) visa punir uma transgressão legal, isto é, a perpetração de um crime. Seu sentido não é a vingança, não é o castigo pedagógico, nem uma injeção de superego num sujeito sem limites. (...) A pena responde à necessidade que a sociedade tem de inibir comportamentos refratários ao pacto de convivência, cristalizado nas leis (segundo o modelo ideal). Ou seja, ele não tem nenhum valor para o sujeito sobre o qual se aplica, mas para os demais, comunicando o seguinte: às possíveis vítimas, que não temam, pois a violência será freada pelo Estado (pela própria existência da punição); – reforçando-se, pois, a confiança na interação social – e “aos possíveis agressores, que não ousem violar as leis, porque pagarão caro por isso” (SOARES, 2005, p. 220. apud CARVALHO, [20--])
A lógica de um raciocínio da instrumentalização do Direito Penal enquanto meio de salvaguardar uma acreditável ordem abalada ou um aduzido descrédito do aparelho estatal em seu monopólio de mantenedor da ordem, se despida das vestes paternalistas de um Estado supostamente preocupado com a regularidade comportamental de seus cidadãos, deixa clara real ideia obscura da repressão: a criação e propagação de uma cultura do terror respaldada pela força da lei.
Com efeito, em vez de um direito penal preventivo de delitos, uma pena aplicada de tal forma desproporcional travestida de confirmação estatal judiciária da garantia da ordem, jamais pode ser enxergada enquanto justa resposta à conduta desviante, mas como mera vingança, desapossada das mãos individuais para ser estatizada e processada numa esteira taylorista de confecção do “produto pronto”, que é a pena, devidamente embalado pelas formalidades legais de um processo jurídico e sobejamente propagandeada ao seu mercado consumidor, cidadãos vorazes pela resposta severa estatal e alimentados gradativamente pela sede da Lei de Lynch.
Esqueceram-se os operadores do Direito – operadores, sim, uma vez limitados às suas origens nas regras mnemônicas dos manuais de concursos de decoração de leis, necessárias para alcançar o sonhado posto do julgador – que é tanto do escopo criminal a prevenção de uma possível falta de efetividade das leis quanto a extrapolação destas. Isso porque não interessa ao Estado somente a condenção do culpado, mas, de igual medida, a absolvição do inocente, assim como não se visa somente à reparação da vítima, mas também a estritamente necessária punição do ofensor.
Num Estado Democrático de Direito, destarte, o Direito penal só será ferramenta de garantias fundamentais enquanto envidar seus esforços tanto em prol da máxima proteção possível à vítima quanto em favor da mínima aflição exigível do ofensor, pois como lembra Ana Zomer (apud FERRAJOLI, 2002), “a pena não serve apenas para prevenir os delitos injustos, mas, igualmente, as injustas punições.” (p. 268)
Na hipótese do condenado a sete anos de reclusão pelo beijo lascivo, a pena alarma toda uma coletividade, quanto mais se pensamos na proximidade do contexto similar ao do caso posto, o carnaval, festa que já bate às portas. Nesse ano, para muitos, ele será mais reflexivo.
E o que dizer do contexto que nos cerca não só na festa pagã, mas ao longo do ano? Um grupo de jovens rapazes em busca de aventuras amorosas não seria agora uma associação criminosa a se considerar? O que dizer de nossas novelas, então, gestadoras de costumeiras cenas em que mocinhos arrancam inesperados beijos das donzelas, num rompante de arfar os telespectadores? Ora, infiltrem-se os policiais entre os foliões para desmantelar essas quadrilhas do beijo atrás dos trios soteropolitanos! Prendam os dramaturgos por incitação ao crime de estupro!!!
Obviamente, o direito penal encontra aí, não brechas, e, sim, inteligentes barreiras para não transpor. É ao pobre, aqui assistido da Assistência Judiciária Gratuita, sobre o qual se recai a dureza expiatória. Nossa conformação sobre tais situações impõe um risco de esquecermos que, amanhã, nada impedirá ao Estado de nos furtar a proporcionalidade de sua atuação quando, eventualmente, por similar banalidade, sentarmos no banco dos réus.
A desproporcionalidade de uma reação estatal, desta forma, é algo que assusta uma sociedade em geral, seja ela solidária ou não com o desviante do momento, devendo haver a consciência de que a mão que arrebata o direito de um não se esforçará diferentemente ao agir com tantos outros. A igualdade do tratamento, possivelmente, impulsionar-se-á na realidade, malferindo garantias como a segurança jurídica. Afinal, se nada socorre ao outro, o que me garantirá que socorrerá a mim ao me defrontar com similar comezinha contenda de desvio punível? Zaffaroni e Pierangeli trazem um exemplo interessante sobre a questão:
se nosso vizinho se embriaga semanalmente e comete pequenos danos como danificar nossa lata de lixo, podemos compreender que seja privado de liberdade por um par de dias e consideramos isto correto, pois reforçou o nosso sentimento de segurança jurídica: o sentimento de dispor do direito de colocar a lata de lixo em seu lugar e retirá-la quando o serviço de coleta a estiver esvaziado. (...) No entanto, por mais que uma equipe renomada de especialistas nos explicasse que para ‘curar’ o nosso vizinho de seu costume de derrubar latas de lixo é necessário privar-lhe a liberdade por quatro anos, esta medida, em lugar de ser considerada adequada e fortalecedora de nosso sentimento de segurança jurídica, nos causaria alarme, afetando nosso sentimento de segurança jurídica mais sensivelmente do que o pequeno dano da lata de lixo entornada. De imediato imaginaríamos que, por qualquer pequena falta, poderíamos também estar na situação do vizinho, e se o incidente de entornar latas de lixo nos levou a pedir o auxílio da autoridade, a privação de liberdade por quatro anos de nosso vizinho nos moveria a abandonar prontamente esta comunidade jurídica, para nos livrarmos de semelhantes aberrações.
Mais do que vomitar ruminações da impropriedade do uso do direito penal, cabe ao caso aqui estudado perfunctoriamente uma avaliação da razoabilidade e da proporcionalidade pelas quais tem se apresentado, reiteradamente, posicionamentos jurídicos nacionais em favor de uma pretensa defesa social. São desnecessárias maiores elucubrações para tal consciência coletiva. O que se impõe, talvez, é uma revisão da concepção daquilo que queremos enquanto defesa da sociedade e de nós mesmos. E isso exige celeridade. Até porque, o Carnaval está aí, e, na machinha do trio, desta vez, só não vai quem (ainda) não foi preso.
REFERÊNCIAS
BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. São Paulo: RT, 1999, p.38-39.
CARVALHO, T. F. de. O “Direito Penal Do Inimigo” e o “Direito Penal Do Homo Sacer Da Baixada”: Exclusão e Vitimação No Campo Penal Brasileiro. [20--]. Disponível em: <https://www.ihj.org.br/pdfs/Artigo_Thiago_Fabres.pdf>. Acesso em 03 mar. 2014.
COSTA, J. F. Violência e psicanálise. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2ª edição, 1986.
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002.
PIERANGELI, José Henrique; ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Manual de Direito Penal Brasileiro - Volume 1: Parte Geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 111-112.