Violência doméstica contra a mulher: um estudo de caso e seus reflexos jurídicos

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08/02/2015 às 22:54
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A Lei Maria criou mecanismos que se propõe coibir a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, neste trabalho, buscou-se através de estudos empíricos, os reflexos jurídicos atenienses ao combate este tipo de violência.

Notas Introdutórias

O Brasil possui uma população estimada em 203 milhões de habitantes[1], destes, 103,6 milhões de mulheres, cidadãs que conquistam cada vez mais espaço no cenário social, político e econômico. E as mudanças nas relações de família e trabalho passam por fatores como a redução do número de filhos e inserção na área profissional. Mas, em meio a tantos papeis que a mulher assume nesses novos tempos um, infelizmente, ainda aparece com bastante frequência nas manchetes: os de vítima de violência sofrida no âmbito familiar.

Na sociedade nordestina e, em especial, seridoense, foram construídos ditados populares do tipo: “em briga de marido e mulher ninguém mete a colher” ou “tem mulher que gosta de apanhar”, essas construções, que povoaram a “sabedoria popular”, em uma cultura forte, machista e tradicionalista, maquiaram por muito tempo um sofrimento que fora, até o advento da Lei 11.340/2006, silenciado, sufocado, por esta manifestação cultural.

A Lei Maria da Penha surgiu para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, sendo denominada desta forma, em homenagem a Maria da Penha Fernandes, que é à mulher por trás da Lei, um símbolo vivo de tudo aquilo que a normativa trabalhada pretende proteger.

Para compreender como se pratica essa proteção por parte do Estado, em uma primeira oportunidade, busca-se enveredar por uma revisão bibliográfica onde se delineia sobre o tema, explorando os entendimentos das várias doutrinas sobre a Lei, em prol de compreender, as várias formas de compreensão acerca da temática. Em outro momento, parte a pesquisa para uma aplicação prática da Lei, tomando por base a comarca de Jardim do Seridó/RN no período de 2012 a junho 2014. Esse lapso temporal foi escolhido por ser nesse período que a referida Lei passou a ter suas formas de violências físicas leve, considerada pública incondicionada pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Neste passo, constrói-se uma catalogação de todas as ocorrências atendidas pelos policiais que estão lotados na 2ª Companhia de Polícia Militar (2ª CPM), perseguindo o caminho da notitia criminis, da Polícia Militar para a delegacia de polícia, dessa para a Vara Única da Comarca e, por último, para o centro de referência psicossocial da Secretaria Municipal de Assistência Social.

Neste momento, a pesquisa passa a ganhar viés empírico, não só pela vivência de oito anos de profissional de segurança pública do autor, mas, pelos dados obtidos a partir dos órgãos estudados. Munidos da catalogação de dados da pesquisa de campo, passa-se a construir tabelas e gráficos no intuito de melhor trabalhar as informações colhidas, ao tempo em que, aplica-as didaticamente, buscando construir ou entender não só a proteção oferecida pelo Estado à mulher vítima de violência doméstica e familiar, mas, mostrar de onde e como essa violência é gestada e praticada.

Munidos dos dados obtidos, busca-se compreender se afinal, a Lei Maria da Penha na comarca de Jardim do Seridó possui ou não eficácia jurídica? Se a mesma está inserida em um contexto o qual solidifica a eficácia social almejada pela norma em estudo? Partindo destas indagações, ainda norteados pelos dados colhidos nas pesquisas de campo, procura-se entender se os órgãos de segurança pública oferece estrutura mínima adequada para atendimento das vítimas de violência doméstica, ou o Estado, com o seu ius puniendi está sendo omisso, facilitando para que haja mais práticas de violência doméstica previstas na referida Lei?

Em meio a tantas perguntas, o presente estudo busca realizar um estudo teórico-empírico da proteção da mulher vítima de violência doméstica e familiar, ao mesmo tempo em que desenvolve a construção de uma visão crítica acerca da Lei 11.340/2006 e da proteção oferecida pelo Estado àqueles vítimas. Com isso, o trabalho revela-se importante para constatar de que forma a doutrina e jurisprudência estão adequando a normativa às situações práticas, notadamente, nos últimos anos no Município de Jardim do Seridó/RN.

A proteção legal perante a violência doméstica contra a mulher

A Lei Maria da Penha surgiu no intuito de criar mecanismos que buscam coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, arraigada na cultura ocidental, que ainda cultiva a mulher como inferior ao homem. Nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil, dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; e vem estabelecer medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar.

De todos os preconceitos despertados pela figura feminina, os mais universais e intensos estão ligados à sua sexualidade. A ciência também discriminou a mulher, pelo menos até bem pouco tempo. No século XIX Gustave Le Bom, um dos fundadores da psicologia social, afirmou que uma mulher inteligente é algo tão raro quanto um gorila de duas cabeças. Charles Darwin, embora reconhecendo algumas qualidades femininas, como a intuição, as definia como virtudes características das raças inferiores. Todavia, é na moral sexual da mulher que a cultura machista concentra mais intensamente a carga de discriminação, gerando desigualdade.[2] (ERNLUND; MARTINS. 2014. p. 152).

Nos ensinamentos de Rogério Sanchis[3], tais objetivos não estão ligados diretamente com o Direito Penal Brasileiro, conforme apresenta o artigo 1º da referida lei em comento, que se propõe a cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher.[4]

Já no magistério de Renato Brasileiro de Lima[5], a Lei 11.340/2006 teve como principal objetivo compensar desigualdades históricas entre os gêneros masculino e feminino, conforme já expostos em breves linhas supra, de modo a estimular a inserção e inclusão desse grupo socialmente vulnerável nos espaços sociais, buscando promover a tão desejada isonomia constitucional entre homens e mulheres.

Na busca de atingir tais objetivos, qual seja, a promoção da igualdade entre os sexos, o Brasil pautou sua política interna através de dois eixo. Um deles foi o do combate à discriminação contra a mulher, e o outro, adoção de políticas compensatórias capazes de acelerar a igualdade de gênero.

Essas ações afirmativas podem ser diagnosticadas como um conjunto de ações fomentadas pelo governo brasileiro, pautadas sobre programas em níveis nacionais que traduzem as políticas especiais, que tiveram razão de existir alicerçadas no intuito de reduzir ou minimizar os efeitos intoleráveis da discriminação em razão de gênero, raça, sexo, religião, deficiência física, ou outro fator de desigualdade.

TELLES e MELO (2003, p. 13)[6] apresenta a definição da expressão violência doméstica, em poucas palavras, “[...] como sendo aquela que ocorre dentro de casa, nas relações entre as pessoas da família, entre homens e mulheres, pais/mães e filhos, entre jovens e pessoas idosas”.

Diante da tal definição, pode-se afirmar que, independentemente da faixa etária das pessoas que sofrem espancamentos, humilhações e ofensas nas relações descritas, às mulheres são o alvo principal de tais práticas. Continuando as palavras de TELLES e MELO:

A própria expressão “violência contra a mulher” foi assim concebida por ser praticada contra pessoa do sexo feminino, apenas e simplesmente pela sua condição de mulher. Essa expressão significa a intimidação da mulher pelo homem, que desempenha o papel de seu agressor, seu dominador e seu disciplinador.[7] (TELES; MELO. 2003. p. 19.)

 Além disso, os fatores causadores da violência doméstica são compreendidos a partir da definição do fenômeno relacionado ao gênero, os quais surgem como uma estratégia de manutenção da hierarquia social, com predominância do masculino, o macho alfa, sobre o feminino. Daí porque, ainda na ideia de Telles e Melo, o conceito de violência de gênero deve ser entendido como uma relação de poder de dominação do homem e de submissão da mulher. E os papéis impostos aos homens e às mulheres, construídos no decorrer da história, reforça a formação ideológica patriarcal da sociedade brasileira, a qual fomenta a violência entre os sexos por ela formada, mas, que, tal violência, não é fruto da natureza de seus hormônios e sim, do processo de socialização dos indivíduos que a constroem e mantém, ou seja, não é a natureza a responsável pelos padrões e limites sociais que determinam comportamentos agressivos aos homens e dóceis e submissos às mulheres.

SOUZA e KÜMPEL (2007. p. 70)[8] também afirmam que, apesar da Lei 11.340/2006 ser titulada como combate de violência doméstica e familiar contra a mulher, às novas relações de família de fato, fundamentadas em laços sólidos de afinidade e afeto faz com que o legislador permite-se incluir uma extensão interpretativa, que induz aos homossexuais serem incluídos nessa proteção tipificada no parágrafo único do art. 4º e continuam: “[...] diante do amplo aspecto da lei até relações protegidas pelo biodireito passam a ser tuteladas, de maneira que, se o transexual fizer cirurgia modificativa de sexo, passar a ser considerado mulher no registro civil e terá efetiva proteção”.

Com todo o exposto, a Lei 11.340/2006 foi concebida, na lição LIMA (2014. p. 883)[9] para tutelar a mulher que se encontra em uma situação de vulnerabilidade no âmbito de uma relação doméstica, familiar ou íntima de afeto, é nesse sentido que seus dispositivos deverão ser interpretados, atentando o operador sobremaneira às peculiares condições das mulheres em situação de violência doméstica e familiar.

Por isso, os dispositivos constantes da Lei Maria da Penha devem ser interpretados em favor daquela pessoa que mereceu maior proteção do legislador, a mulher vítima de violência em uma relação doméstica, familiar ou íntima de afeto, e não em sentido contrário.

Interessante explorar a situação de afeto criada pelo namoro e que é protegida pela Lei aventada. Nestes casos, segundo o Superior Tribunal de Justiça (STJ)[10], através do ministro Jorge Mussi, manifesta-se uma relação íntima de afeto que independe de coabitação. Portanto, agressões e ameaças de namorado contra a namorada, mesmo que o relacionamento tenha terminado, mas, que ocorram em decorrência dele, caracteriza violência doméstica contra a mulher.

Desta forma, está caracterizada, para essas situações, a relação íntima de afeto entre as partes, ainda que apenas como namorados, pois o dispositivo legal não exige coabitação para configuração da violência doméstica contra a mulher. Neste sentido, se pronunciou em recente julgado o Superior Tribunal de Justiça através do REsp 1416580 / RJ - 2013/0370910-1[11]:

RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL PENAL. CRIMES DE LESÃO CORPORAL PRATICADOS CONTRA NAMORADA DO RÉU E CONTRA SENHORA QUE A ACUDIU. NAMORO. RELAÇÃO ÍNTIMA DE AFETO. CARACTERIZAÇÃO. INCIDÊNCIA DA LEI MARIA DA PENHA. ART. 5.º, INCISO III, E ART. 14 DA LEI Nº. 11.340/06. [...] 1. Hipótese em que, tanto o Juízo singular quanto o Tribunal a quo, concluíram que havia, à época dos fatos, uma relação de namoro entre o agressor e a primeira vítima; e, ainda, que a agressão se deu no contexto da relação íntima existente entre eles. Trata-se, portanto, de fatos incontestes, já apurados pelas instâncias ordinárias, razão pela qual não há falar em incidência da Súmula n.º 07 desta Corte. 2. O entendimento prevalente neste Superior Tribunal de Justiça é de que "O namoro é uma relação íntima de afeto que independe de coabitação; portanto, a agressão do namorado contra a namorada, ainda que tenha cessado o relacionamento, mas que ocorra em decorrência dele, caracteriza violência doméstica (...)”. 3. A situação de vulnerabilidade e fragilidade da mulher, envolvida em relacionamento íntimo de afeto, nas circunstâncias descritas pela lei de regência, se revela ipso facto. Com efeito, a presunção de hipossuficiência da mulher, a implicar a necessidade de o Estado oferecer proteção especial para reequilibrar a desproporcionalidade existente, constitui-se em pressuposto de validade da própria lei. Vale ressaltar que, em nenhum momento, o legislador condicionou esse tratamento diferenciado à demonstração dessa presunção, que, aliás, é ínsita à condição da mulher na sociedade hodierna. 4. As denúncias de agressões, em razão do gênero, que porventura ocorram nesse contexto, devem ser processadas e julgadas pelos Juizados de Violência Doméstica e Familiar [...]. (BRASÍLIA/DF, Superior Tribunal de Justiça. REsp 1416580 / RJ - 2013/0370910-1, Relatora: Ministra: Laurita Vaz, 2013).

Em concordância com a jurisprudência supratranscrita, se ressalta que nas relações de namoro, devido à situação de afeto, se aplica a Lei Maria da Penha, pois, não só as palavras da Ministra VAZ (2009)[12], transcrita acima, conduz nesse sentido, como da doutrinadora Maria Berenice Dias[13] quando, em poucas linhas, propõe que é obrigatório que a ação ou omissão ocorra na unidade doméstica ou familiar ou em razão de qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação. Modo expresso ressalva a Lei, que não há necessidade de vítima e agressor viverem sob o mesmo teto para a configuração da violência como doméstica ou familiar. Basta que agressor e agredida mantenham, ou já tenham mantido, um vinculo de natureza familiar.

A Lei Maria da Penha na comarca de Jardim do Seridó/RN: breve panorama do atendimento às mulheres vítimas de violência doméstica

Após a implantação da Lei n. 11.340/2006, as forças de segurança pública, e em especial, a autoridade policial, em observância ao art. 12 da referida Lei, tiveram que se adequar para atender mulheres vítimas de violência doméstica. Na 2ª Companhia de Polícia Militar, bem como, na Delegacia Distrital da Polícia Civil de Jardim do Seridó/RN, locus dessa pesquisa, infelizmente, não houve adequações a esse respeito. Constata-se esse fato, pois, apesar da letra da lei apresentar que em todos os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, feito o registro da ocorrência, deverá a autoridade policial adotar, de imediato, os procedimentos de oitiva da vítima; colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato e de suas circunstâncias; ouvir o agressor e as testemunhas; entre tantas outras listadas no dispositivo legal; devido à falta de efetivo e de um delegado titular na comarca, tais procedimentos ficam bastante prejudicados, o que torna difícil aplicar a normativa legal aos casos estudados. Este fato força, portanto, a polícia administrativa realizar uma triagem, ao atender as ocorrências, para identificar e remeter a 3ª Delegacia Regional, sediada na cidade de Caicó/RN, os fatos que se apresentem mais graves e exijam uma resposta mais contundente do Estado.

Nesta feita, quanto ao atendimento de mulheres vítimas de violência doméstica pela autoridade policial na comarca de Jardim do Seridó/RN, apresenta-se com um grave problema, haja vista que não conta com um delegado de polícia titular na delegacia, como a Lei Maria da Penha reserva o Capítulo II para direcionar os procedimentos que a autoridade policial deve executar no tocante a ocorrências dessas naturezas, a Polícia Militar, que é acionada quando há ocorrências dessa natureza, procede, em praxe, com os seguintes nortes operacionais descritos pelos apontamentos de Renato Brasileiro de Lima[14]:

Em seu art. 12, a Lei nº 11.340/06 elenca uma série de providências que devem ser adotadas pela autoridade policial tão logo tome conhecimento de uma hipótese de violência doméstica e familiar contra a mulher. Trata-se de rol exemplificativo. Algumas são de caráter obrigatório, como, por exemplo, a oitiva da vítima, lavratura do boletim de ocorrência e atermação da representação; outras, no entanto, têm sua realização condicionada à discricionariedade da autoridade policial, que deve determinar sua realização de acordo com as peculiaridades do caso concreto. Exemplificando, se o crime não deixar vestígios, não haverá necessidade de se proceder ao exame de corpo de delito. (LIMA. 2014. p. 900).

No atendimento à mulher em situação de violência doméstica e familiar, a Polícia Militar garante proteção à vítima, comunicando, de imediato, a 3ª Delegacia Regional de Polícia Civil os fatos ocorridos, se houver lesão corporal[15] ou remete para a delegacia distrital, que conta com um agente de polícia, que confecciona um Boletim de Ocorrência (BO) e o envia para a autoridade policial para instaurar um procedimento de persecução penal, quando entende necessário, ou remete os autos ao Ministério Público para que sejam tomadas as medidas legais pertinentes.

A própria Polícia Militar conduz a vítima ao hospital ou Instituto Médico Legal para que sejam lavrados exames de corpo de delito e, no caso de risco de vida, assegurar a retirada de seus pertences do local da ocorrência ou do domicílio familiar. Via de regra, a notitia criminis chega ao conhecimento da autoridade policial por meio da Polícia Militar. Assim, para as ocorrências que são registradas com uso de agressões físicas, a comunicação de ocorrência é realizada pela Polícia Militar, de imediato, no plantão da 3ª delegacia regional de polícia. Já os casos que envolvem outras das formas de violência doméstica tipificada no art. 7º da Lei Maria da Penha[16] que não a violência física, é confeccionada uma Ficha de Ocorrência (FO), pela própria Polícia Militar, onde, tal registro deve conter a representação[17] da vítima reduzida a termo, nos crimes de ação pública condicionada. É importante frisar que nos crimes de ação pública incondicionada[18], não se faz necessário reduzir a termo a representação da vítima, uma vez que a ação penal não depende da representação da ofendida.

Assim, apesar das previsões supramencionadas para serem observadas no momento de atender a ocorrências envolvendo violência doméstica e familiar contra a mulher, tais procedimentos, na comarca em estudo, só são seguidos quando a ação é pública incondicionada, pois, só nessas ocorrências, a autoridade policial tem conhecimento, no decorrer da flagrância do ocorrido.

Nos casos que a ação é pública condicionada à representação da vítima, a própria Ficha de Ocorrência confeccionada pela Polícia Militar, funciona como meio de notícia do crime para a Polícia Judiciária que, em posse desses dados, instaura o devido inquérito policial.

Nas ocorrências que tratam de ações públicas incondicionadas, a vítima é convidada a se manifestar sobre o pedido das medidas protetivas de urgência, sendo que, quando solicitadas, serão encaminhadas pela autoridade policial ao juiz, com a comunicação de ocorrência, os depoimentos e o boletim de antecedentes do agressor, conforme ensinamento do inciso III do art. 12 da Lei.

A autoridade judiciária, em observância ao art. 18 da Lei, ao analisar o expediente com as medidas protetivas, deve, em um prazo de 48 horas, determinar o afastamento do agressor do lar, a suspensão da posse ou restrição do porte de armas, a proibição de aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor (medida cautelar mais adotada), contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação, entre tantas outras; se assim o entender, podendo as mesmas ser concedidas de imediato.

É essencial, ao atender ocorrências desta natureza, que o policial militar, ao confeccionar a Ficha de Ocorrência, explique e mantenha a vítima informada sobre as garantias e as proteções que a Lei testada oferece a mesma. Com essa atitude, a vítima de violência doméstica fica mais segura ao buscar socorro nos mecanismos estaduais de proteção, bem como, poderá fiscalizar, caso seja diferida uma das medidas de proteção acima mencionada, o seu cumprimento e sua eficácia.

As medidas protetivas de urgência, como o próprio nome sugere, tem caráter eminentemente emergencial. Sua razão de existir, se faz na busca de garantir a integridade física da mulher durante a persecução penal e, em um segundo momento, acelerar os procedimentos da Lei, através de medidas drásticas como, a retirada do agressor, que muitas das vezes, como apresentado na pesquisa abaixo, são companheiros, esposos, filhos; do convívio da família, inclusive, com uma barreira legal para o contato com a vítima.

Com a concessão das medidas protetivas de urgência, o agressor, já notificado através de um termo de afastamento assinado, em muitas das vezes, na sede da comarca, perante um serventuário da justiça e dos agentes da polícia administrativa, fica ciente e impedido de praticar as condutas determinadas na notificação, sob pena de incorrer em crime de desobediência à decisão judicial. Desta forma, o juiz a qualquer tempo poderá decretar a prisão do agressor, conforme prevê a Lei n. 11.340/2006 em seu artigo 20: “Em qualquer fase do inquérito policial ou da instrução criminal, caberá a prisão preventiva do agressor, decretada pelo juiz, de ofício, a requerimento do Ministério Público ou mediante representação da autoridade policial.”

Discorrendo sobre o tema, AMARAL (2001)[19], afirma em seu magistério que o crime de desobediência[20] não se perfaz apenas pelo não cumprimento de uma ordem judicial, tem que haver, cumulativamente, a inexistência de previsão de sanção específica em caso de seu descumprimento. Desta forma, para o aludido autor, nos casos das medidas protetivas de urgência previstas pela Lei 11.340/2006, as mesmas, em seu bojo, apontam sanções próprias e preventivas para o caso de seu descumprimento pelo agressor doméstico.

Nestes argumentos, e em conformidade com as palavras expressadas em notas abaixo de Bitencourt, as medidas protetivas de urgência não podem ser tipificadas como crime de desobediência, pois, salta aos olhos que elas não são apenas uma tímida ordem legal, mas, promovem uma sanção imposta pela própria Lei, conforme descreve seu art. 10 em parágrafo único que, aplica-se o disposto no caput deste artigo ao descumprimento de medida protetiva de urgência deferida. Não pode, portanto, o aplicador da sanção, escorar-se nas ordens genéricas do art. 330 do Código Penal Brasileiro, para penalizar o infrator que descumpriu tais medidas. Interessante perceber que, dependendo do caso, pode o juiz de direito decretar a temida prisão preventiva, conforme informa a jurisprudência pátria, para aqueles que insistem em descumprir tais medidas.

HABEAS CORPUS. LEI MARIA DA PENHA. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER. MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA DESCUMPRIDAS. PRISÃO PREVENTIVA DECRETADA CORRETAMENTE. NECESSIDADE DE SALVAGUARDAR A ORDEM PÚBLICA. MANDAMUS CONHECIDO E DENEGADO. É legal a decisão que, no contexto da violência doméstica e familiar contra a mulher, decreta a prisão preventiva para garantir a ordem pública e a execução das medidas protetivas de urgência, quando estas são deliberadamente descumpridas pelo agressor (arts. 312 e 313, III, do CPP, e 20 da Lei 11.340/06).[21] (Santa Catarina, Tribunal de Justiça, Habeas Corpus Nº. 20140155164 SC 2014.015516-4 (Acórdão). Relator: Des. Sérgio Rizelo, 2014).

Com os argumentos transcritos, fica claro a importância dos policiais e/os serventuários da justiça, explicarem ao agressor quando a assinatura do mandado judicial que homologa as medidas protetivas de urgência, o qual, geralmente, traz em seu corpo os mandados judiciais cumulados. Não só para que o mesmo não cometa tais infrações, sob pena de ter que ser submetido a uma medida drástica como a prisão preventiva, com também, que seja ofertada a comunicação a equipe multidisciplinar que irá acompanhar esse agressor doméstico, em sua jornada de conscientização e recuperação para a vida familiar.

Desta feita, o descumprimento das Medidas Protetivas de Urgência pelo agressor, de forma voluntária e injustificada, gera consequências penalizantes de forma proporcional e gradativa, afastando o delito de desobediência, por ser manifestamente atípico, mas, promovendo a aplicação das sanções previstas na Lei, inclusive, com a possibilidade real de encarceramento provisório.

Para chegar a tais Medidas Protetivas de Urgência, tem-se que, primeiramente, o fato chegar até a delegacia, onde, deve ser apurado o crime em comento. Para tanto, a autoridade policial deve despachar, na própria comunicação de ocorrência, que geralmente, é uma FO, e posteriormente, inicia-se a persecução penal, mais especificamente, o inquérito policial, dando início à ação penal.

Após as investigações pertinentes para a apuração dos fatos, é realizada a conclusão do inquérito policial, o qual é remetido, pela equipe investigadora, para a autoridade policial. O delegado, então, em meio a robustez das provas elencadas pelo inquérito, decide pelo indiciamento ou não do acusado. Após essa etapa, deve a autoridade policial produzir um relatório fundamentado, onde deverá constar um resumo do ocorrido e das circunstancias do fato e remete o inquérito ao titular da ação penal que é o Ministério Público. Este então realiza a denúncia ou solicita o arquivamento, momento em que o inquérito deve ou não ser convertido em um processo.

Vale destacar que, como bem observa AMARAL (2011)[22], apesar da doutrina e jurisprudência manter-se titubeando a respeito do cabimento ou não de fiança para os casos de violência doméstica, não existe nenhuma proibição legal para se vedar a concessão da fiança pela Autoridade Policial. Todavia, mesmo o legislador ao editar a Lei nº 12.403/2011 ter buscado vedar a concessão de fiança pelo Delegado de Polícia estritamente nos casos em que a infração penal viesse automaticamente acompanhada do descumprimento de medidas protetivas de urgência, o novel Art. 313, III, do CPP não diz que será decretada a prisão preventiva nos casos de violência doméstica. O que há textualmente neste dispositivo é que para garantir a execução das medidas protetivas de urgência será decretada a prisão preventiva.

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Assim, diante do descumprimento das medidas protetivas de urgência promovidas pelo agressor doméstico, defende Amaral que: “[...] se esse descumprimento caracterizar infração penal, neste último delito será inadmitida a concessão de fiança pela Autoridade Policial, por ser caso de prisão preventiva. Devendo o Delegado representar ao Juiz neste sentido.”[23]

Ainda no raciocínio do autor supra, se não estiver as Medidas Protetivas de Urgência em vigência para o agressor, é afastada automaticamente a aplicação da prisão preventiva pelo fato de garantir a execução das medidas protetivas de urgência (art.313, III, CPP). Com o afastamento desta norma, por conexão, é afastada também a previsão da vedação da fiança quando presentes os motivos que autorizam a decretação da prisão preventiva, presentes no art. 324, inciso IV do CPP. Desta forma, não sendo o caso processual de garantir a execução das medidas protetivas de urgência, nem se tratando de infração penal cuja pena privativa de liberdade máxima não seja superior a quatro, é, sim, direito do acusado de lhe ser arbitrada fiança, devendo o Delegado de Polícia fixá-la.

Pelos argumentos apresentados, fica nítido que, cada procedimento envolvendo violência doméstica contra a mulher é único, e depende de vários fatores para sua conclusão. Apesar da Lei determinar prazos razoáveis para a conclusão do inquérito policial[24], tais prazos depende de fatores exoprocedimentais que podem prolongar, acima do limite legal, o período para apuração dos delitos. Desta forma, em concordância com já apresentado acima, é possível entrever a complexidade que envolve a Lei Maria da Penha e as dificuldades na aplicação dos procedimentos da mesma.

Da pesquisa aos dados empíricos

O objetivo central dessa pesquisa consistiu em mapear os casos de violência doméstica contra a mulher, que foram atendidos pela polícia militar da 2ª CPM / 6º BPM e aqueles que se encontravam no Fórum Des. Oscar Siqueira em Jardim do Seridó/RN, durante os anos 2002 a julho 2014. Para tanto, foi realizada uma pesquisa do tipo exploratório-descritiva que se classificou, de acordo com seu delineamento, em pesquisa documental.

Nos locais pesquisados, realizaram-se um mapeamento dos registros de ocorrência, processos, sentenças judiciais e relatórios de acompanhamento psicossocial, envolvendo mulheres vítimas de violência doméstica, dos crimes previstos na Lei n. 11.340/2006, referentes ao período de janeiro de 2012 a junho de 2014.

A Lei Maria da Penha em números na comarca de Jardim do Seridó/RN

De início, serão apresentados os dados das fichas de ocorrências confeccionadas pela polícia militar, referente a atendimento de fatos que envolvam a Lei e, posteriormente, inquéritos policiais (IP´s) da delegacia de polícia de Jardim do Seridó/RN, demonstrando o número total de FO´s registradas durante no período de janeiro de 2012 e junho 2014. Dentre estas, foram contabilizadas as FO´s envolvendo mulheres vítimas de violência doméstica em que os acusados eram homens e, por fim, a quantidade de IPs que foram instaurados para a apuração dos crimes previstos na Lei Maria da Penha, conforme Tabela 1.

Tabela 1. Total de comunicações de ocorrências e inquéritos instaurados nos anos de 2012 a junho de 2014.

Ano

Nº. de Ocorrências Registradas na comarca de Jardim do Seridó/RN

Nº. de ocorrências/ mulher vítima

de violência doméstica

Nº. de inquéritos instaurados/

Lei n. 11.340/06

2012

428

28

6

2013

325

30

7

Jun/2014

185

10

2

Fonte: 2ª CPM de Polícia Militar e Delegacia Distrital da Comarca de Jardim do Seridó (RN).

Munidos da leitura da Tabela 1, permite-se acentuar que uma quantidade considerável de número de ocorrências envolvendo violência doméstica não fora instaurada, o que ocorreu período temporal estudado.

Em 2012, de um total de 428 ocorrências atendidas pela polícia militar, 28 destas trataram de violência doméstica e familiar contra a mulher, o que corresponde a 6,54% das infrações. Deste total, foram instauradas em inquéritos policiais, contra 6 infrações, enquanto 22 destas não foram instauradas, o que contabiliza que em apenas 21,43% das ocorrências envolvendo violência doméstica contra a mulher neste ano, foram instaurados persecução penal.

Em 2013, das 235 ocorrências registradas, 30 tratavam de violência doméstica contra a mulher, um percentual de 12,76% das ocorrências. Todavia, apenas 7 delas passaram por persecução penal , ou seja, 23,33% das ocorrências foram apuradas por inquéritos policiais, contra 22 que não foram, ou seja, 76,67% não refletiram em apuração pela polícia judiciária.

Em 2014, das 185 ocorrências registradas pela polícia militar até o mês de junho, 10 tratavam de violência doméstica contra a mulher, o que corresponde a 5,40% das ocorrências atendidas. Todavia, das 10 apenas duas foram instaurados inquéritos policiais. Isto significa que as ocorrências que não foram instauradas não resultaram em investigações. Portanto, os crimes nelas denunciados não foram apurados e, consequentemente, não houve seguimento na persecução penal.

Dessa forma, fica explícito o aumento de registros de ocorrências de um ano para o outro (2012-2013), uma vez que somente em 2013 foram 6,22% de registros a mais que no ano anterior. Já o mês de junho de 2014, está havendo uma queda significativa da prática de tais delitos, haja vista que no mesmo período de 2012 tinham sido registradas 12 ocorrências de Maria da Penha e no ano de 2013, foram registradas 17 ocorrências envolvendo a violência intrafamiliar.

As Tabelas 1 e 2 evidenciam que no ano de 2013 houve um número maior de registros de ocorrência envolvendo mulheres vítimas de violência doméstica comparada ao ano anterior e ao posterior. Contudo, o número de inquéritos instaurados foi menor que em 2012 e em 2014. Em outros termos, a mulher vítima de violência deu o primeiro passo na busca de proteção legal, denunciando a violência sofrida, contudo interrompeu por algum motivo, visto que em sua maioria, os inquéritos não foram instaurados. Portanto, da violência denunciada regrediu-se à violência silenciada.

Tabela 2. Percentual de ROs que foram instaurados em inquéritos policiais e ROs que não foram instaurados inquéritos no período de 2012 a junho de 2014.

Ano

Percentual de ROs instauradas em Inquéritos policiais

Percentual de ROs não instauradas em inquéritos policiais

2012

21,43

78,57

2013

23,33

76,67

Jun/2014

20

80

Fonte: 2ª CPM de Polícia Militar e Delegacia Distrital da Comarca de Jardim do Seridó (RN).

Dissertando acerca do fenômeno apresentado na pesquisa sobre a pequena quantidade de inquéritos instaurados com base na violência doméstica contra a mulher, vale a observação realizada por CARNEIRO e FRAGA[25], que apresentam em brilhantes palavras que a evidência da falta de inquéritos pode auxiliar em importantes pistas no desvendamento dos motivos pelos quais os agressores voltam a praticar a violência doméstica contra a mulher, uma vez que muitos casos não são esclarecidos, não chegam nem mesmo a ser investigados, em grande parte pela renúncia das próprias vítimas.

Isso, ainda segundo as autoras acima, ainda revela implicações importantes para uma reflexão acerca dos fatores geradores de mais violência, como também um suporte maior para procurar entender o porquê de as vítimas desistirem que seus agressores sejam responsabilizados pelos crimes que praticaram.

É fundamental entender que, salvo, nos casos em que estiver extinta a punibilidade do autor ou quando ficar evidente que o crime não existiu, o delegado de polícia, como autoridade policial tratada no Código de Processo Penal Brasileiro, tem a obrigação, por força da Lei, de instaurar o inquérito policial, todas às vezes que tomar conhecimento de um crime, fato que na pesquisa houve essa comunicação, inclusive, por registro de ocorrência da polícia militar, não podendo dele dispor, por força do princípio da indisponibilidade da persecução penal, presente implicitamente no art. 17 do referido diploma legal.

Desta forma, em consonância com a ação julgada no dia 09 de fevereiro de 2012 pelos Ministros do STF, decidindo pela procedência da ação ajuizada pelo Procurador Geral da República quanto aos artigos 12, inc. I, 16 e 41 da Lei Maria da Penha, por maioria dos votos, vencido o Presidente, Ministro Cezar Peluso, conforme segue a decisão[26]

O Tribunal, por maioria e nos termos do voto do Relator, julgou procedente a ação direta para, dando interpretação conforme aos artigos 12, inciso I, e 16, ambos da Lei nº 11.340/2006, assentar a natureza incondicionada da ação penal em caso de crime de lesão, pouco importando a extensão desta, praticado contra a mulher no ambiente doméstico, contra o voto do Senhor Ministro Cezar Peluso (Presidente). Falaram, pelo Ministério Público Federal (ADI 4424), o Dr.  Roberto Monteiro Gurgel Santos, Procurador-Geral   da   República; pela Advocacia-Geral da União, a Dra. Grace Maria Fernandes Mendonça, Secretária-Geral de Contencioso; pelo interessado (ADC 19), Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, o Dr.  Ophir Cavalcante Júnior e, pelo interessado (ADI  4424), Congresso Nacional, o Dr. Alberto Cascais, Advogado-Geral do Senado. (BRASÍLIA/DF. Supremo Tribunal Federal. ADI Nº 4,424. Relator: Ministro Cezar Peluso, 2012).

 Neste sentido, a ação penal pública que envolve a forma de violência que causa lesão física, mesmo de forma leve, desde então, não será mais condicionada à representação da vítima, significando que a vítima não precisa declarar o seu desejo de processar o agressor. Já nas demais formas de violência listadas no art. 7, como: psicológica, sexual, patrimonial ou moral, entre outras; há sim a necessidade de representação da vítima, o que deixa uma pista acerca do motivo de poucos inquéritos policiais em comparação a infringência da lei Maria da Penha.

Pode-se afirmar empiricamente que muitos são os fatores que levam a esse fim, como, por exemplo, os registros de ocorrência em que as vítimas acionam a polícia militar ou vão até a delegacia, efetuam o registro, mas ao mesmo tempo preferem ou não desejam representar contra seus agressores. Após a instauração do inquérito policial, a partir dos crimes em que caberia a representação da vítima, observa-se que, no percurso da instrução do procedimento, as mesmas vítimas desistiram da representação anteriormente realizada.

Uma questão que ainda saltas aos olhos referente a discussão jurídica doutrinária referente ao tema, diz respeito a impossibilidade de renúncia da vítima de violência doméstica contra a mulher, quando na fase de inquérito policial, só podendo ser feita perante o juiz. 

Reza a Lei Maria da Penha em seu art. 16, que nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público.

No magistério de AMARAL (2014)[27], renúncia e retratação são institutos jurídicos que não se confundem em Direito. A renúncia à representação deve ser entendida como a vontade manifestada pela suposta ofendida de não representar em desfavor de seu apontado agressor nos crimes em que a representação é condição de procedibilidade para a instauração de ação penal. Mas conserva a interessada o direito de representar dentro do semestre decadencial previsto no CPP e no CP.

A retratação significa recuar, na representação já oferecida. Sendo possível a retratação da retratação também dentro do semestre decadencial legal.
O art. 16 da Lei n. 11.340/2006, como se observa, não cuidou da retratação, mas, sim, da renúncia à representação. A jurisprudência brasileira vem tratando do tema da seguinte forma[28]:

APELAÇÃO CRIMINAL - AMEAÇA - CRIME DE AÇÃO PENAL PUPLICA CONDICIONADA A REPRESENTAÇÃO - AUDIÊNCIA DO ART. 16, DA LEI MARIA DA PENHA - INOCORRÊNCIA - NULIDADE. Nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata a lei 11.340/2006, é imprescindível a realização da audiência de retratação da vítima, antes do recebimento da denúncia, cabendo ao juiz garantir a sua realização, sob pena de ferir de morte o devido processo legal (art. 5º, LIV, da CR/1988). V.V.: A realização da audiência prevista no art. 16 da Lei Maria da Penha não é ato obrigatório, devendo a mesma ser designada apenas quando houver alguma manifestação da vítima no sentido de desistir no prosseguimento do feito. (Belo Horizonte/MG. APR: 10378110014776001. Relator: Cássio Salomé, 2013).

Assim se extrai dos ensinamentos de LIMA[29] que, nos procedimentos praticados à luz da Lei 11.340/2006 que dependem de representação, não se faz obrigatória à designação de audiência para se manifestar em retratar-se ou renunciar do seu direito protegido pela norma. Também não se faz como condictio sine qua non para a abertura da ação penal para tais delitos. Essa audiência prevista no art. 16 da Lei Maria da Penha, só deve ser designada quando houver, perante a autoridade policial ou pelo parquet, uma manifestação segura da vítima no intuito de retratar-se da representação oferecida para o ajuizamento da ação penal contra o autor da violência doméstica, com a condição de não ter oferecida a denúncia. 

Desta forma, a dependência econômica perante o agressor, a fragilidade emocional, a falta de apoio na família e a reprovação na sociedade onde vive, entre tantos outros; mostram–se, através da pesquisa empírica ora apresentada, que são motivos para a não instauração do inquérito policial em face à dependência da representação da vítima nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher. 

Outros fatores extraídos das pesquisas de campo realizada na confecção deste trabalho são as ocorrências nas quais, as mulheres usufruem da proteção da Lei lhes oferecem para usar o Estado contra o seu companheiro; o que motiva, após “passar a raiva”, a não representação da mesma para o inquérito policial, apenas, promovendo um “susto” no homem para resolver, momentaneamente, um problema que, na maioria das vezes, são de ordem conjugal. Faz-se essa afirmação, devido à frequência em que muitas mulheres, após ter uma desavença com o seu companheiro, esposo ou até mesmo filho, possuidoras de uma família desestruturada, geralmente, regada ao álcool e outras drogas, acionam a polícia, para que a mesma atue respaldada na Lei Maria da Penha, mas, ao chegar a delegacia, as mesmas desistem de representar, ficando nítido, para os profissionais de segurança pública que, aquela manifestação de ação, não passou de uma forma de utilizar o estado para resolver um assunto que em longe passa pelas formas de violência doméstica e familiar contra a mulher.

Cabe salientar que, infelizmente, as instituições policiais ainda não estão preparadas para atender, com maior eficiência, os casos envolvendo violência doméstica contra a mulher nos moldes que preconiza a Lei Maria da Penha, uma vez que suas bases em Jardim do Seridó/RN e Ouro Branco/RN possuem muitos problemas estruturais, materiais e de pessoal, bem como carecem de investimentos na qualificação dos agentes para atender um público específico e não contam com uma equipe multidisciplinar.

Assim, as mulheres vítimas de violência doméstica, apesar de encontrar na denúncia o último recurso para resolver seus gritos de socorro perante a violência sofrida, não encontram o apoio previsto em lei nestas instituições. A grande maioria das mulheres não queria denunciar seus companheiros, mas como não conseguiram auxílio de outra forma, recorreram à Lei.

As mulheres vítimas de violência doméstica precisam, quando passam a sofrer de tais delitos, ainda no período pré-processual, de um apoio psicossocial, não só para si, mais também, para o seus companheiros e toda a sua família, circunstancia que, infelizmente, não acontece empiricamente. Já o profissional policial necessita de aporte, qualificação e meios para realizar os encaminhamentos necessários dessas vítimas para projetos, entidades, programas, enfim, para o atendimento em rede, o qual é preconizado na Lei Maria da Penha, o que muitas vezes não se efetiva na prática.

Sem esse suporte, a vítima não só se sente abandonada à própria sorte, como a mercê de novas agressões. A denúncia que a mesma realizou contra o seu agressor, ao invés de lhe proteger, fazendo gerar uma medida protetiva de urgência e um acompanhamento de toda a família por uma equipe multidisciplinar, promove é um efeito negativo. Essa denúncia acaba por produzir medo, culpa e sofrimento a mulher que, sem respaldo do Estado, fica insegura sem saber se o agressor irá cometer nova agressão, agora que ele passou “ter mais motivos” para agredi-la.

Da mesma forma, mesmo que houvesse a aplicação de uma medida protetiva de urgência como afastamento do agressor do lar, o Estado não possui agentes suficientes para fiscalizar tais medidas, o que, em muitos casos, promovem ainda mais medo entre as vítimas que se sentem largadas pelo ente que deveria protegê-la.

Neste momento, as vítimas que já se encontram fragilizadas emocionalmente, passam a sofrer uma verdadeira coação dos seus agressores para que desista da representação no momento do registro de ocorrência, ou a falsa promessa que tudo aquilo vai mudar devido a violência ter sido um “momento de fraqueza do agressor que não irá mais acontecer”. Desta forma, essas manifestação são suficientes para que a vítima desista da representação, motivo pelo qual explica, o alto número de registros policiais e, na mesma proporção, as renúncias das vítimas em prosseguir com o processo.

Após essa análise, analisou-se os crimes mais praticados relacionados à violência doméstica. Dentre os crimes em foco, os que mais ocorreram foram agressão física, ameaça, injúria, descumprimento de medida protetiva, vias de fato, cárcere privado, homicídio tentado e consumado bem como abuso sexual, desde janeiro de 2012 até junho 2014.

Assim tem-se que a agressão física está no topo das ocorrências envolvendo violência doméstica contra a mulher na comarca de Jardim do Seridó/RN no período pesquisado. Com uma frequência de 25 ocorrências, essa forma de agressão, responde por 36,74% das infrações envolvendo as tipificações dessa Lei, apesar de ser um tipo que exige ação pública incondicionada, nem todas elas se converteram em processo judicial, já que, segundo a pesquisa, apenas 15 processos envolvendo essa Lei foram impetrados na comarca. Em segundo lugar, com 11 ocorrências, apresenta-se a ameaça, o que corresponde a 16,18%, seguida por injúria e vias de fato com 9 ocorrências individuais, respondendo por 13,23% cada; já o descumprimento de medida protetiva, aparece em quarto lugar com 5 ocorrência, o que corresponde por 7,35%; em quinto, cárcere privado e homicídio tentado, com 3 ocorrências, o que corresponde por 4,41% cada; em sexto, responde abuso sexual, com 2 ocorrências, com 2,94%; e em última, mas, o mais notório, é o homicídio consumado, com uma ocorrência, respondendo por 2,63%. 

Na sequência, elaborou-se a Tabela 3 com os comparativos das ocorrências registradas pela polícia militar referente ao atendimento de ocorrências com a natureza de violência doméstica contra a mulher, juntamente a quantidade de ocorrências que efetivamente tornaram-se inquéritos policiais.

Tabela 3. Comparação das ocorrências atendidas pela Polícia Militar acerca da Lei Maria da Penha e as quais transformaram em inquéritos policiais.

Período

Nº. de Ocorrências Registadas pela PM

Nº. de Inquéritos Policiais instaurados pela Autoridade Policial

Jan/2012 a jun/2014

68

15

Fonte: 2ª CPM de Polícia Militar e Delegacia da comarca de Jardim do Seridó (RN).

Por todo exposto, tem-se que, muitas das ocorrências envolvendo violência doméstica contra a mulher, não geram o devido inquérito policial. Tais circunstâncias, como mostra a Tabela 3, de acordo com a pesquisa, ocorre por vários motivos. Entre os mais notórios são a desistência da mulher, quando cabível, e a falta de aparelhamento do Estado para atendimento desse tipo de ocorrência.

Durante a pesquisa, em momento nenhum, a delegacia distrital contou com um delegado titular. O déficit apresentado fez com que, por completa falta de efetivo, fossem filtradas as ocorrências de “maiores relevância e clamor popular” para que pudessem ser instauradas as persecuções penais. Sem efetivo e sem meios para trabalhar, já que a delegacia também não conta com qualquer viatura, para os dois agentes que se revezam em expedientes, poderem realizar as diligências cabíveis ao caso, promove-se, segundo a pesquisa, um verdadeiro silêncio forçado daquelas que o Estado, através da Lei, deveria proteger.

Na Tabela 4, vem estampado a síntese do que Rogério Sanchis defende, afirmando que a Lei Maria da Penha é tudo, menos uma Lei Penal Especial. Pelos dados coletados nos órgãos constituídos para atendimento de mulheres em situação de vulnerabilidade e vítimas de violência doméstica, em um universo de 15 ações penais que tramitaram pela vara única da comarca de Jardim do Seridó/RN, apenas 1, ou seja, 6,66% delas chegaram a uma sentença penal condenatória. Todas as demais, para o período estudado, mesmo após o julgamento da ADIN 4.424 DF/2012 na qual o STF entendeu que agressão física nos crimes que envolvem violência doméstica contra a mulher, deverão ser consideradas de ação pública incondicionada, no final do processo, vemos que há um preferência dos operadores do direito para preservar a família, buscando soluções alternativas, do que aplicar uma sanção penal para aquele que infringe a Lei 11.340/2006.

Este fato fica claro quando se ver que a demanda por atendimento de mulheres vítimas de violência doméstica no Centro de Referência Psicossocial foi acima dos registros das ações penais. Esse fenômeno foi verificado, pois além das sentenças judiciais tentarem manter a união familiar, as próprias vítimas solicitam a suspensão do processo em juízo na busca de “salvar” sua vida conjugal.

Tabela 4. Comparação das ocorrências atendidas pela Polícia Militar acerca da Lei Maria da Penha e as quais transformaram em inquéritos policiais.

Período

Nº. de Ações Penais impetradas na vara única da comarca

Nº. Sentenças Penais Condenatórias

Nº. de Atendimentos por Equipe Multidisciplinar

2012 a jun/2014

15

01

16

Fonte: SAJ/P65 – Sistema de Automação do Judiciário referente a Vara Única de Jardim do Seridó/RN e Senso confeccionado pelo Centro de Referência em Atendimento Psicossocial da mesma comarca.

Pelos dados apesentados na Tabela supra, vemos que das 15 ações penais impetradas envolvendo violência doméstica contra a mulher na comarca de Jardim do Seridó/RN, a única que chegou a uma condenação penal, só existiu devido o crime ter sido de homicídio consumado, o que fez com que a competência do Tribunal do Júri atrai-se o julgamento da lide.

Outro dado identificado pela pesquisa foi a demanda de atendimento psicossocial a vítimas de violência doméstica na comarca é maior do que aqueles encaminhadas pela vara única da comarca. Na pesquisa, foram identificadas 14 vítimas que foram encaminhadas pelo judiciário para acompanhamento multidisciplinar no Centro de Referência Especializado em Assistência Social da Secretaria Municipal de Ação Social do município de Jardim do Seridó/RN. Todavia, no mesmo período da pesquisa, dos 16 atendimentos que foram realizados, 2 deles não foram originados de sentenças judiciais. Podemos extrair de tais dados o fato de que as mulheres vítimas preferem, em situações singulares, manter a violência silenciada para o direito penal, buscando socorro para seu sofrimento em órgãos especializados em atendimento psicossocial, preservando assim, a sua imagem conjugal perante a sociedade e submetendo-se aos devaneios do seu companheiro, pois, em muitos dos casos, são eles que provem o sustento do lar.

Pelos dados catalogados, contatou-se que em 28 casos, há indivíduos em união estável como infratores da violência doméstica contra a mulher. Em seguida, temos 16 casos em que os agressores eram esposos das vítimas, posteriormente, tem-se os filhos respondendo por 12 casos, irmãos com 6 casos e outros, entre agregados e família extensa com outros 6 casos.

As famílias formadas por união estável heterossexual, respondem por 36,76% das ocorrências registradas sob a Lei Maria da Penha na comarca de Jardim do Seridó/RN no período de janeiro de 2012 a junho 2014. Já as famílias formadas pelo instituto do casamento tiveram incidência de 23,53%; os filhos das vítimas, respondem por 17,65%; enquanto os irmãos e outros (incluindo a família extensa), responderam por 8,82% cada.

Pelo exposto, percebe-se que as famílias formadas por união estável foram as que mais infringiram a Lei, apesar de Carlos Roberto Gonçalves[30], defender em seu magistério que o direito brasileiro promove “[...] à família moderna um tratamento mais consentâneo à realidade social, atendendo-se às necessidades da prole e de afeição entre os cônjuges ou companheiros e aos elevados interesses da sociedade”. Apresentando uma característica de Estado Mínimo sob a construção da família, o que, segundo os dados da pesquisa aqui apresentados, dar azo para uma maior incidência da prática de violência doméstica contra a mulher, justamente, nos laços familiares sob a égide da união estável, que, por ser instituto menos solene que o casamento, se apresenta como de menor responsabilidade para aqueles que tem a construção de suas famílias de acordo com os seus regramentos.

Todavia, ainda alicerçados nos dados levantados pela pesquisa aventada, se tem que a nova família[31], formada por laços não tão solenes como o do casamento, construída por indivíduos de pouca instrução educacional e escassos alicerces valorativos de convivência familiar, não temem pelo fim do relacionamento, deixando-o mais “descartável” seus convívios afetivos, se comparado ao relacionamento matrimonial, que por ser solene, “deve satisfação à sociedade”. Forma-se, desta forma, um nicho propício a desencadear, de maneira mais nítida e também, mais violenta, a agressão de gênero no seio familiar. 

Dado importante foi à alta quantidade de filhos que infringiram a Lei Maria da Penha junto à sua genitora. Dos dados coletados, 17,65% dos casos foram dessa linhagem. Ao observar os históricos das ocorrências, em todos eles, tais violências foram motivadas por álcool ou drogas, em especial, o uso do entorpecente conhecido como crack. Assim, não só as relações conjugais estão sendo destruídas por essa “endemia”, mas, o próprio e mais sagrados dos amores, que é o materno. Se entender que a mãe só vai denunciar o filho quando todos os outros meios estiverem sido esgotados, esse percentual, que são dados estatísticos oficiais, deveriam subir ainda mais se o Estado promovesse outros meios para se chegar a uma solução a violência doméstica contra a mulher, que não o uso da força coercitiva, já que a mãe, a luz de nossa experiência empírica, prefere sofrer, até não ter mais forças, do que ver seu filho no cárcere.

A Tabela 5 mostra as porcentagens acerca do laço familiar da vítima com os acusados.

Tabela 5 Percentual da relação de parentesco dos infratores com as vítimas de violência doméstica contra a mulher

Período

Companheiros

Esposos

Filhos

Irmãos

Outros

jan/2012 a jun/2014

41,18%

23,53%

17,65%0

8,82%

8,82%

Fonte: 2ª CPM de Polícia Militar de Jardim do Seridó (RN).

Pelos dados exibidos na Tabela 5, ver-se que os companheiros estão no topo como os maiores infratores das normas estabelecidas pela Lei. Dado importante, a ser registrado, especialmente, nos casos dos companheiros, são os fatores que contribuem como estopim para a violência doméstica e familiar contra a mulher. Nessa classe, com grande incidência, foram catalogados nos históricos das ocorrências um machismo exacerbado do violentador com sua vítima. Muitos daqueles que vivem em união estável e praticam violência contra sua companheira, o faz por fato de entender que a mulher é seu objeto de satisfação e desejo e que, geralmente, não aceitam que elas opinem e, tão pouco, permitem ser contrariados. Caso isso ocorra, como macho superior, responde com agressões a mulher pelo simples fato de que não aceitam opiniões contrárias, que para eles, configura uma “ofensa dirigida aos mesmos em sua casa”.

Já no tocante à violência praticada pelos esposos, tem-se nos históricos que os mesmos os fazem por motivos extraconjugais e “educacionais”. Na maioria avassaladora dos casos, foram apresentadas famílias que estavam passando por conturbações conjugais e, em regra, já não tinham mais lealdade matrimonial entre ambos, o que proporciona uma violência que é reflexo da relação de “mentiras” com a qual convivem, já que muitos dos esposos que foram autuados na Lei, já possuem concubinas paralelo a relação matrimonial. Em contrapartida, outra parcela dessa classe, realizou a violência como forma de estratégia pedagógica, para que sua mulher aprenda a maneira correta que ele deseja que ela se comporte no lar, como esposa correta e mãe, buscando afirmar seus valores através da violência, expondo a característica da cultural e da sociedade brasileira, descrita por DaMatta conforme citação neste trabalho, que apresenta uma sociedade machista onde a mulher sempre foi rotulada como a responsável pelo lar.

Uma classe que chama a atenção na pesquisa são os filhos como agressores. Os motivos que levam aos mesmos a agredir sua genitora, que foi a regra na pesquisa, foram vítimas de álcool e drogas que, para manter o seu vício, passam a furtar objetos de casa e quando suas mães procuram apaziguar a situação, são agredidas, na grande maioria, fisicamente. Desta forma, para essa classe, bebidas alcóolicas e as drogas atuam como um gatilho que os agressores pratiquem as diversas formas de violência contra as mulheres.

Quanto as últimas duas classes, irmãos e outros, foram catalogadas ocorrências envolvendo as mesmas, em regra por, no caso da primeira, problemas envolvendo sucessões hereditárias, e na segunda, por abranger a família extensa, foram casos isolados que sua peculiaridade não permite realizar um diagnóstico geral.

Outro dado interessante refere-se a faixa e renda das vítimas de violência doméstica na comarca no período estudado. A grande incidência das ocorrências envolveram vítimas de baixa renda[32]. Atribui-se a isso o fato de essas famílias possuírem um grau de instrução menor e não terem vergonha de se expor perante a sociedade. Desta forma, elas buscam, com mais frequência, a ajuda do Estado no primeiro momento em que passam a sofrer violência doméstica. Já as vítimas de nível social mais elevado, não procuram, em um primeiro momento, o auxílio oferecido pela Lei Maria da Penha. Essas são mais resguardadas e mesmo sofrendo, preferem silenciar-se, em primeiras vistas, evitando se expor ao constrangimento de procurar ajuda policial para resolver “um problema de casa”. Percebe-se que essas últimas, demoram a buscar ajuda estatal com receio de como a sociedade, a qual ela está inserida, irá absorver o fato de a mesma viver sofrendo violência familiar, que para elas, em sua maioria, é caraterística de pessoas desinformadas. Aliado a esse receio, também está a questão da família extensa que, por vezes, impendem ou postergam a denúncia da vítima perante as forças policiais na esperança que aquela (violência) tenha sido um fato isolado ou que, através de uma boa conversa, tudo poderá se resolver e a família poderá ser salva. 

Além disso, fatores como a própria ignorância por parte do homem em relação ao caráter independente da mulher mostra-se como gatilho para o surgimento do cometimento de violência doméstica contra a mulher já que, muitos homens não aceitam independência financeira de sua mulher, o que recompensa essa desigualdade conjugal com sua superioridade física. Entretanto, é necessário ressaltar que esse preconceito cultural está presente em homens de todos os níveis sociais até mesmo em homens com nível de instrução mais elevado.

Desta forma, os dados apresentados nesse estudo revela a importância da Lei Maria da Penha como uma conquista da mulher no tocante ao espaço social, histórico e cultural. Ela apresenta-se, como um marco na luta feminina pela igualdade perante o homem, em todos os aspectos e ao longo dos tempos. Porém é importante observar que essa Lei, apesar de bastante avançada para a realidade social do país, encontra dificuldades em sua aplicação e efetivação frente à situação de violência enfrentada pela mulher vítima dentro de seu lar e pelos percalços estruturais que o próprio Estado sofre para dar efetividade à mesma.

Para entender-se a importância da Lei Maria da Penha para proteção de mulher vítima de violência doméstica no Brasil, nos ensinamento de DIAS (2007, p. 25)[33], no país, apenas 2% dos acusados por violência doméstica contra a mulher são condenados. De cada cem mulheres brasileiras assassinadas, setenta foram vítimas no âmbito de suas relações domésticas, evidenciando que, ao contrario dos homens, as mulheres perdem suas vidas no “espaço privado”. Os avanços da nova Lei são muitos e significativos.

Relatando-se a realidade da pesquisa, na comarca no período estudado, mesmo com toda a proteção oferecida pela Lei 11.340/2006, de todas as ocorrências policiais registradas contendo violência doméstica contra a mulher, que fixaram o número de 68 atendidas, apenas 15 foram submetidas à ação penal, o que corresponde a 22,06% das mesmas. Destas, apenas 1 teve sentença penal condenatória, o que corresponde a míseros 1,47%.

Com esses dados, pode-se concluir que, apesar de a Lei Maria da Penha ter sido pensada para proteger a mulher vítima de violência de gênero no âmbito familiar, a mesma não tem recebido, na comarca em estudo, a aplicação pretendida pelo legislador, não promovendo a prevenção pela qual foi criada.

Assim, temos que 76% dos crimes envolvendo violência físicas contra a mulher na comarca de Jardim do Seridó no período estudado, não foram realizadas qualquer maior intervenção do Estado, a não ser aquela de combate imediato, quando a vítima está sofrendo a violência e que aciona a polícia militar que tome uma medida de urgência para cessar a prática de tal violência.

Outra característica digna de nota refere-se à violência patrimonial prevista na Lei. Como a violência física é a mais vistosa, e que abrangente qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal, foi à única identificada na pesquisa na vara única da comarca em Estudo. Todavia, conforme magistério de DELGADO (2014)[34], nos processos de divórcios com partilhas de bens e de alimentos, são corriqueiros os crimes patrimoniais tipificados pela Lei 11.340/2006 praticados pelo cônjuge ou companheiro, em vias de separação, e que são despercebidos pelos prepostos das vítimas que não militam na advocacia criminal. Como a forma de violência patrimonial, é entendida pela Lei como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, valores e direitos ou recursos econômicos. Neste momento processual de partilha dos bens, nas varas da família ou na vara única alvo do estudo, não foram catalogadas ou arguidas tais condutas pelos advogados das divorciadas, mas, que, pelas palavras de Delgado, é prática corriqueira nas varas de Família pelo Brasil, o que apresenta-se como motivadora de nota.

 Os resultados demonstrados por este estudo apontam que, no período pesquisado de janeiro de 2012 e junho de 2014, houve uma alternância de denúncias dos crimes envolvendo violência doméstica contra a mulher, onde se registra um aumento de 2012 (28 casos) para 2013 (30 casos) e uma tendência de diminuição em 2014 (10 casos). Consequentemente, demonstra-se que, no período pesquisado, o percentual de instauração de inquéritos policiais envolvendo crimes previstos na Lei Maria da Penha manteve-se ínfimos aos atendimentos das demandas, já que no ano de 2012 foram seis inquéritos, em 2013 foram instaurados sete e em 2014 apenas dois.

Estes dados apresentados culminaram com a comprovação de que a trajetória da denúncia que é feita na pela polícia militar na delegacia de polícia, é interrompida no meio do caminho, e aquelas poucas que chegam até o julgamento, acabam na impunidade dos agressores, uma vez que só houve uma sentença com condenação no período analisado. Portanto, o caminho percorrido pela mulher vítima de violência doméstica, na busca da proteção legal, leva a um mapa de descaso e silenciamento de sua dor, sem que o Estado de forma cautelar e incisiva, bloqueia a agonia daquela que tem em sua próprio refugia, as chagas de sua família.

Notas Conclusivas

Observa-se que a Lei 11.340/2006 vem sendo utilizada pelos órgãos de proteção as cidadãs na comarca em estudo de forma habitual. Esse fato é constatado quando da apresentação de 68 ocorrências envolvendo a referida Lei no período estudado. Todavia, a proteção a qual ela se propõe, em muitos dos casos não foram observados, já que houve uma proteção imediata, com a retirada pela força policial do agressor do convívio com a vítima, mas, logo em seguida, o agressor volta ao seio do lar, considerando que apenas 15 ocorrências transformaram efetivamente em ações penais de um universo total de 68.

Também se mostra na pesquisa, a dificuldade apresentada pelo Estado do Rio Grande do Norte como um todo, e a comarca estudada em particular, para adequar seu poder de jus puniendi aos parâmetros previstos na Lei, no tocante aos infratores de violência doméstica e familiar. Durante todo o período pesquisado, não houve qualquer equipe treinada, nem por parte da polícia ostensiva, tampouco pela polícia judiciária, para oferecer um atendimento especializado às vítimas. Como foi constatado, apenas 25,06% das ocorrências envolvendo as formas de violências previstas na Lei, foram alvo de instauração de inquéritos policiais. Portanto, aparenta-se que muitas vítimas não procuram as forças policiais do Estado por saberem que, infelizmente, o próprio Estado não possui ferramentas adequadas para coibir, de forma definitiva e não apenas paliativa a dor e a opressão, que elas vivem em seus lares.

Com esses dados, passa-se a entender que a Lei Maria da Penha, por suas características peculiares, em especial, no tocante as medidas protetivas de urgência, apresenta-se como norma que tem viés mais preventivo que ostensivo. O problema destacado pelos dados colhidos na pesquisa foi o aumento da violência doméstica contra a mulher na comarca, se compararmos os anos de 2012 a 2013, já que pelo estudo, deveria haver uma diminuição da frequência das infringência da Lei e não o seu aumento.

Em um primeiro momento, observa-se a quantidade de ocorrências envolvendo mulheres vítimas de violência de gênero totalizaram 28 casos, em 2012, enquanto que, mesmo com a nova interpretação do STF, ADIN 4424/2012, trazendo a agressão física leve como ação pública incondicionada na Lei Maria da Penha, no ano de 2013 foram 30 ocorrências. Isso nos leva a questionar até que ponto o efeito preventivo proposto pela Lei Maria da Penha surtiu efeito na comarca de Jardim do Seridó/RN.

Desta forma, em termos absolutos, poderia se concluir que o efeito preventivo da Lei não está sendo observado na comarca em estudo, pois, ao invés de inibir o infringimento da Lei, houve um aumento de sua prática (dois casos a mais). Contudo, observa-se que não se pode concluir pela ineficiência da norma, mas sim pela sua eficiência, justamente pelo grau de confiança que transmite as vítimas, levando as mesmas a procurarem a ajuda do poder Policial e da tutela Judicial para auxiliá-las e fazer valer seus direitos frente aos agressores.

Por outro lado, deve-se destacar importante dado, qual seja, que durante todo o período da pesquisa, a delegacia distrital de Jardim do Seridó/RN, como também a de Ouro Branco/RN, cidades que totalizam 16.812 habitantes, as quais formam à comarca em estudo, não possuíam sequer um delegado titular. A primeira ainda conta com dois agentes que se revezavam em turnos de trabalho de 6 horas, enquanto a última, ao menos agentes de polícia existia.

Dados como esses são preocupantes no tocante a Lei Maria da Penha, já que a própria normativa, prevê um atendimento diferenciado com a implementação de atendimento policial especializado para as mulheres vítimas. Isso nos leva a questionar até que ponto o Estado estaria interessado em realmente promover um atendimento preventivo das situações de violência de gênero e até mesmo de coagir com as demais condutas criminosas em cidades de pequeno porte. Será que dentro das políticas públicas, a violência doméstica (bem como a violência em geral) não é facilitada pela ausência do poder estatal em cumprir seu jus puniendi? Ou até mais grave: será que esta ausência não é uma própria estratégia dos governos em demonstrar seu poder, ao mesmo tempo em que é ausente em políticas públicas como educação, saúde, assistência social, segurança pública etc., exercendo dominação e controle das classes sociais menos favorecidas.

Nas famílias pesquisadas que sofreram com violência doméstica e familiar, no tocante a agressão por parte de filhos e outros, um dado alarmante vem em números, que são as violências que tiveram como gatilho à epidemia de drogas ilícitas, que na pesquisa girou em torno de 17,64%, e em especial o crack, que vem ganhando músculos nas cidades interioranas do Rio Grande do Norte, provendo a destruição não só do caráter do usuário, mas, de toda a sua família. Essa droga aliada ao álcool, em parceria com às famílias desestruturadas, geralmente, com baixa escolaridade e que possuem laços frágeis, já que 41,18% dos casos viviam em união estável, formam o fomento para o maior índice de violência doméstica registrado na pesquisa. Assim, a proposta de intervenção mínima do Estado na família, tão disseminada nos acalorados debates acadêmicos não se apresentam eficaz, se tivermos como espelho uma família de pouca instrução.  

Vale destacar que a Lei trás os lugares que podem incidir a violência doméstica, sendo comum na pesquisa a do âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas; como também âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa, em que há relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação. Assim, infelizmente, em alguns casos catalogados ficou nítido o interesse da vítima em acusar ou prejudicar o agressor, dando azo à interpretação que a mesma estava utilizando da proteção que o Estado lhe oferece como forma de resposta da companheira ao agressor pelo malsucedido relacionamento por eles vivido.

A Lei Maria da Penha, apesar de todos os problemas apresentados na pesquisa, vem mostrando que, se fosse bem trabalhada, conforme há previsão legal, tem potencial para ser uma grande ferramenta de proteção da mulher vítima de violência doméstica e familiar, pois, é através dela, que as vítimas encontram uma caixa de ressonância legal para combater as violências que sofrem dentro do seu lar, e que na maioria das vezes, é silenciada pelo medo, pela vergonha, pela incerteza de que, ao buscar ajuda ao aparato legal na comarca em estudo, a vítima estar se blindando das violências sofridas ou está apenas nos dialetos populares aumentando seu sofrimento, dando motivos para que sofra mais violência.

No período em estudo, houve um total de 938 ocorrências registradas, em que 68 eram de violência doméstica contra a mulher, correspondendo a 7,25% das ocorrências, de onde se que denota que há um considerável percentual destes casos em Jardim do Seridó/RN.

Segundo os dados colhidos, infere-se que a Lei Maria da Penha não possui uma plena eficácia na comarca em estudo, pela ausência de recursos humanos especializados. Chega-se a essa conclusão pelo fato de que o Estado do Rio Grande do Norte conta com apenas três municípios com a estrutura judicial idealizada pela Lei Maria da Penha para oferecer suporte à vítima de violência doméstica contra a mulher, todos localizados na grande Natal. Os municípios de médio porte do Estado, que são cinco localidades dessa grandeza, se situam, em sua maioria (quatro), há menos de 70 quilômetros de um município já incluído no ordenamento judicial em questão, mais um, denominado Caicó localizado no Seridó, não possui uma vara especializada em violência doméstica e familiar, o que deixa deficitária a aplicação da Lei Maria da Penha na comarca de Jardim do Seridó que distante 40 quilômetros de Caicó, por não possuir nela, e tão pouco próximo da mesma, uma estrutura judicial especializada na aplicação da Lei.

Corroborando com essa deficiência, inexiste uma equipe de policiais civis para investigar e promover a instauração do inquérito policial, a eficácia jurídica da norma, perde sua capacidade de atuação por falta de condições mínimas de ser aplicada. Com isso há a minimização dos efeitos que lhe são inerentes a proteção integral da vítima perante seu agressor, já que apenas 22,06% das ocorrências envolvendo violência doméstica contra a mulher tornaram-se de fato inquéritos policiais na comarca em estudo, sendo que todas elas somente houve persecução penal pelo fato de ter sido registrado o flagrante da 3ª Delegacia Regional de Polícia Civil na cidade de Caicó/RN.

Assim, os órgãos de segurança pública que trabalham na comarca não possuem uma estrutura mínima para oferecer um atendimento digno às vítimas de violência doméstica contra a mulher. Desta forma, cresce a sensação de impunidade e com ela um aumento de registro de ocorrências, conforme se constataram nos anos de 2012 (28 casos) e 2013 (30 casos).

Com todo o exposto, entende-se que para melhor atender a mulher vítima de violência doméstica e familiar na comarca de Jardim do Seridó/RN, deve-se não se curvar as dificuldades, mas somar forças no sentido de trabalhar com material logístico e humano que é oferecido pelo Estado a comunidade para melhor oferecer segurança, conforto e esperança a mulher que tem em seu lar um algoz.

Para tanto, sugere-se que, para trabalhar de forma padronizada e integralizada, deve-se instituir um Gabinete de Gestão Integrada Municipal, com as ferramentas disponíveis para o combate da violência doméstica e familiar contra a mulher, promovendo o atendimento direto e mais especializado a vítima. Esta configuração permite driblar dificuldades, já que com o gabinete, o qual deve ser pensado com a integração da Polícia Militar, Polícia Civil, Guarda Municipal, Ministério Público, Juiz de Direito e chefe do Executivo Municipal; pode-se oferecer um atendimento a vítima com uma equipe multidisciplinar lotada na Secretaria Municipal de Assistência Social, ao tempo em que, a Autoridade Policial e/ou Ministério Público, poderá promover, alicerçadas nos registros de ocorrências fornecidos pela polícia ostensiva, a instauração do inquérito policial ou ministerial e a denúncia do acusado. Com essa medida, a vítima que outrora teria a sensação de ter seu direito tolhido pelo próprio Estado, passa a ser mais bem assistida, dentro das limitações impostas pelo próprio Estado, promovendo o bem estar da vítima e a verdadeira eficácia jurídica da Lei Maria da Penha na comarca, oferecendo proteção não só legal, mas, estrutural a vítima de violência doméstica contra a mulher. 

Inclusive, esta gestão integrada da segurança pública com o poderes executivos e judiciário não deveria apenas se limitar aos casos de violência doméstica, já que a sociedade encontra-se vítima de uma infinidade de crimes. Muitas vezes a falta de informação e incompetência de determinado órgão levam à burocratização que, incompreendida pela grande massa da população, geram um sentimento de impunidade e de inação por parte Estado. Portanto, defende-se aqui que esta conexão direta entre os órgãos responsáveis pela proteção e bem estar das vítimas de violência doméstica, podem culminar em uma maior eficiência e, desta forma, o modelo deste caso em particular sugere a necessidade de uma unificação (inclusive em espaço físico) para melhor apresentar uma resolução satisfatória destas carências, facilitando o acesso da vítima à justiça em sentido amplo. 

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Sobre o autor
Rilawilson José de Azevedo

Dr. Honoris Causa em Ciências Jurídicas pela Federação Brasileira de Ciências e Artes. Mestrando em Direito Público pela UNEATLANTICO. Licenciado e Bacharel em História pela UFRN e Bacharel em Direito pela UFRN. Pós graduando em Direito Administrativo. Policial Militar do Rio Grande do Norte e detentor de 19 curso de aperfeiçoamento em Segurança Pública oferecido pela Secretaria Nacional de Segurança Pública.

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Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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Artigo resultante do trabalho de conclusão do curso de Direito da UFRN/CERES/CAICÓ-RN.

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