Um aspecto bastante interessante da interpretação da Lei 8.429/92 (Lei de Improbidade Administrativa - LIA) foi recentemente enfrentado pelo Superior Tribunal de Justiça. Trata-se do nível de abrangência de uma sanção específica aplicável ao comitente de ato ímprobo: a perda da função pública.
De início, cumpre sublinhar que a pena de “perda da função pública” foi prevista no próprio texto da Constituição de 1988, cujo § 4º do seu art. 37 estabelece expressamente que “Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.”
Em obediência ao comando constitucional, o legislador subalterno editou a Lei 8.429/92 com a previsão dessa penalidade. Fê-la constar como sanção cominável aos agentes que incorram na prática de improbidade em quaisquer de suas modalidades (atos que importam enriquecimento ilícito, atos que causam prejuízo ao erário, atos que atentam contra os princípios da Administração Pública, previstos, respectivamente, nos arts. 9º, 10 e 11).
É nessa perspectiva que devemos examinar o art. 12 da LIA (grifos meus):
Art. 12. Independentemente das sanções penais, civis e administrativas previstas na legislação específica, está o responsável pelo ato de improbidade sujeito às seguintes cominações, que podem ser aplicadas isolada ou cumulativamente, de acordo com a gravidade do fato:
I - na hipótese do art. 9°, perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio, ressarcimento integral do dano, quando houver, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos de oito a dez anos, pagamento de multa civil de até três vezes o valor do acréscimo patrimonial e proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de dez anos;
II - na hipótese do art. 10, ressarcimento integral do dano, perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio, se concorrer esta circunstância, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos de cinco a oito anos, pagamento de multa civil de até duas vezes o valor do dano e proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de cinco anos;
III - na hipótese do art. 11, ressarcimento integral do dano, se houver, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos de três a cinco anos, pagamento de multa civil de até cem vezes o valor da remuneração percebida pelo agente e proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de três anos.
Parágrafo único. Na fixação das penas previstas nesta lei o juiz levará em conta a extensão do dano causado, assim como o proveito patrimonial obtido pelo agente.
O art. 12 do diploma legal, portanto, estabelece as penas que hão de ser aplicadas em caso de prática comprovada de ato de improbidade. E determina que, na dosimetria de fixação das penalidades, cabe ao magistrado considerar a extensão do dano causado, bem assim o proveito patrimonial obtido pelo agente ímprobo.
Mas não fica claro a abrangência de cada uma das penas. E nem poderia ser diferente. A lei, que tem caráter genérico, dir-se-ia geral e abstrato, não se pode desincumbir de minúcias, tarefa que compete precipuamente ao Poder Judiciário no exame dos casos concretos.
Foi o que sucedeu quando do julgamento, pelo STJ, do REsp 1.069.603/RO. Nesse precedente, a Segunda Turma do Tribunal deparou-se com demanda por meio da qual um médico, residente no estado de Rondônia, fora condenado pela prática de ato de improbidade consistente na acumulação ilegal de cargos públicos. Constou nos autos que o profissional da saúde havia acumulado o exercício simultâneo de três cargos de médico com horários incompatíveis. Assim agindo, a conduta do agente implicou vulnerou o teor do art. 37, XVI, c, da CF/88:
Art. 37 omissis
XVI - é vedada a acumulação remunerada de cargos públicos, exceto, quando houver compatibilidade de horários, observado em qualquer caso o disposto no inciso XI:
a) a de dois cargos de professor;
b) a de um cargo de professor com outro técnico ou científico;
c) a de dois cargos privativos de médico;
c) a de dois cargos ou empregos privativos de profissionais de saúde, com profissões regulamentadas;
Além disso, o médico condenado também desrespeitou o art. 118 da Lei 8.112/90, que estabelece o regime jurídico da acumulação lícita de cargos no serviço público federal:
Art. 118. Ressalvados os casos previstos na Constituição, é vedada a acumulação remunerada de cargos públicos.
§ 1º A proibição de acumular estende-se a cargos, empregos e funções em autarquias, fundações públicas, empresas públicas, sociedades de economia mista da União, do Distrito Federal, dos Estados, dos Territórios e dos Municípios.
§ 2º A acumulação de cargos, ainda que lícita, fica condicionada à comprovação da compatibilidade de horários.
§ 3º Considera-se acumulação proibida a percepção de vencimento de cargo ou emprego público efetivo com proventos da inatividade, salvo quando os cargos de que decorram essas remunerações forem acumuláveis na atividade.
O problema é que o Tribunal Regional Federal da 1ª Região, ao julgar a apelação do condenado, exarou acórdão por meio do qual reformou a sentença condenatória, de tal arte a afastar a pena de perda do cargo público que o médico ocupava no Ministério do Exército. Ou seja, para o TRF1, a expressão “perda da função pública” não abrangeria a perda do “cargo público”.
Postos esses elementos, fica fácil entender que a vexata quaestio do recurso especial apropriava-se da seguinte dúvida: a sanção de perda da função pública, tal como prevista na Lei de Improbidade Administrativa, fica limitada à proibição do exercício da função desempenhada ou implica a perda correlata do cargo público exercido pelo agente ímprobo?
Como se percebe, o TRF1 optou por uma interpretação mais contida do dispositivo, entendendo que a perda era tão só da função, não abrangendo a perda do cargo. Felizmente, não foi o posicionamento encampado no Tribunal Superior.
Julgando o recurso especial interposto pelo Ministério Público Federal, a Segunda Turma do STJ acabou por rever o decidido na instância a quo. Eis a ementa do acórdão:
PROCESSO CIVIL. ADMINISTRATIVO. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. ART. 12 DA LEI N. 8.429/1992. PENA DE PERDA DA FUNÇÃO PÚBLICA. CONTROVÉRSIA A RESPEITO DOS SEUS EFEITOS.
1. Não se discute nos autos a caracterização de ato de improbidade em razão da acumulação ilegal de cargos públicos.
2. Recurso especial no qual se discute se a sanção de perda da função pública se limita à proibição do exercício da função até então desempenhada pelo agente ímprobo, ou acarreta a perda do direito de ocupar o cargo público por meio do qual a desempenhava.
3. O art. 12 da Lei n. 8.429/1992, quanto à sanção de perda da função pública, refere-se à extinção do vínculo jurídico entre o agente ímprobo e a Administração Pública, de tal sorte que, se o caso de improbidade se referir a servidor público, ele perderá o direito de ocupar o cargo público, o qual lhe proporcionava desempenhar a função pública correlata, que não mais poderá exercer.
Recurso especial provido para cassar o acórdão recorrido e restabelecer a sentença. (STJ, Segunda Turma, REsp 1.069.603/RO, Rel. Min. Humberto Martins, j. 11/11/2014, p. DJe 21/11/2014).
O aresto acima deixa claro que a pena de perda da função pública, inscrita no art. 12 da LIA, não está limitada à uma visão restritiva. Antes o contrário, deve ser entendida em sentido amplo, de maneira que sua extensão punitiva abrange igualmente a perda do direito de ocupar o cargo público.
Ora, esse é uma conclusão acertada. Não se pode descurar que a menção no texto constitucional à punição de atos de improbidade vai ao encontro do sentimento constitucional que defende a punição de todos aqueles que malferem o interesse público (tomado na sua acepção de interesse da coletividade). Seria, para dizer o mínimo, ineficaz a punição, se prevalecesse o posicionamento conservador do TRF1. Tal geraria o absurdo de um agente comprovadamente ímprobo ficar proibido de desempenhar sua função por um prazo estipulado, ao final do qual poderia retornar ao exercício do cargo público do qual se utilizou para violar a lei. Caso vingasse essa interpretação, no caso concreto, teríamos de aceitar que o médico que enriqueceu ilicitamente às custas do erário pudesse voltar ao seu cargo no Ministério do Exército.
Portanto, nos marcos do que ficou decidido pelo STJ, a sanção de perda da função pública, prevista no art. 12 da Lei 8.429/92, deve ser compreendida como uma ordem constitucional para a extinção do vínculo jurídico porventura existente entre o agente ímprobo e a Administração Pública. Assim, a expressão “perda da função pública”, na verdade, deve ser lida na LIA como “perda do direito de ocupar o cargo público”, sempre que o servidor público condenado for ocupante de cargo de provimento efetivo do qual se valeu para a prática do ato de improbidade.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. T2 - Segunda Turma. Recurso Especial nº 1.069.603, Rel. Min. Humberto Martins, j. 11/11/2014, p. 21/11/2014. Recorrente: Ministério Público Federal. Recorrido: René Humberto Ferrel Camacho. Disponível em:www.stj.jus.br. Acesso em: 31 de jan. 2015.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em: 31 de jan. 2015.
BRASIL. Lei 8.112, de 11 de dezembro de 1990. Disponível em:www.planalto.gov.br. Acesso em: 31 de jan. 2015.
BRASIL. Lei 8.429, de 2 de junho de 1992. Disponível em:www.planalto.gov.br. Acesso em: 31 de jan. 2015.