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A união estável de dois anos estabelecida na Medida Provisória nº 664/2014

21/03/2015 às 15:02

Resumo:


  • A união estável é reconhecida como entidade familiar pela Constituição Federal e pelo Código Civil, sendo caracterizada pela convivência duradoura, pública e contínua de um homem e uma mulher.

  • A Medida Provisória nº 664 de 2014 estabeleceu critérios temporais para a concessão de pensão por morte, exigindo dois anos de união estável ou casamento. Essa medida gerou questionamentos sobre sua constitucionalidade e sua necessidade, podendo impactar negativamente viúvos e viúvas.

  • A utilização de medidas provisórias no Brasil, como a MP nº 664/2014, tem sido criticada por trazer insegurança jurídica e por ser adotada em situações que não se enquadram em relevância e urgência, o que pode comprometer a democracia e os direitos dos cidadãos.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

A Medida Provisória nº 664 de 2014 trouxe a necessidade de convivência de dois anos para a aquisição do direito à dependência econômica no caso de morte do companheiro. Tal preceito constante da referida medida traz inúmeros problemas jurídicos.

1 Breves considerações sobre a união estável

A união estável não se confunde com um namoro moderno, uma relação passageira e fugaz. A união estável traz a convivência do homem e da mulher sob o mesmo teto, ou não, como se esposa e marido fossem.

Não possuindo nenhuma relação com o concubinato, puro ou impuro, ou qualquer tipo de relação adulterina, a união estável é reconhecida como entidade familiar, nos termos do artigo 226, § 3º, da Constituição Federal. Vejamos:

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

§ 1º. O casamento é civil e gratuita a celebração.

§ 2º. O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.

§ 3º. Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.

Uma vez que a Constituição Federal reconheceu a união estável como entidade familiar, a Lei nº 9.278, de 10 de maio de 1996, ao regular o § 3º do dispositivo constitucional acima transcrito, tratou de disciplinar o que é entidade familiar, a qual se traduz na convivência duradoura, pública e contínua de um homem e uma mulher, estabelecida com o objetivo de constituição de família.

Contudo, resta inegável que a Lei nº 9.278/96 não estabeleceu o conceito de convivência duradoura, de modo que não cabe ao intérprete fazê-lo.

Sob outro ângulo, o Código Civil traz o Título III – Da União Estável, que dispõe, no seu artigo 1.723, que é reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura, e estabelecida com o objetivo de constituição de família.

Ora, mais uma vez, o legislador não trouxe a definição de convivência duradoura, mas fez questão de acrescentar que essa união deveria ser estabelecida com o objetivo de constituição de família.

Sob a nossa ótica, o reconhecimento como entidade familiar trata-se de garantia constitucional, sob pena de ferir o princípio da proibição de retrocesso social.

Contudo, a Presidente da República, aos 30 de dezembro de 2014, editou a Medida Provisória nº 664, que altera alguns dispositivos da Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991 (a qual dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social), inclusive no aspecto que diz respeito à pensão por morte. Referida medida provisória estabeleceu o critério de dois anos de união estável ou casamento para que o (a) companheiro (a) passasse a integrar o rol de dependentes nos casos de morte natural, estando a morte por acidente excluída dessa exigência.


2 Do critério temporal estabelecido na Medida Provisória nº 664 de 2014

Parece-nos esdrúxulo o mencionado critério temporal para a concessão de pensão por morte. Isso porque, com apenas um dia de casados ou em união estável, o casal já tomou a decisão de estabelecer um vínculo afetivo que leva a uma plena comunhão de vida, renunciando a várias outras coisas para ficarem juntos e, inclusive, com efeito nos direitos sucessórios e meação (de acordo com o regime de bens escolhido, e, no caso da união estável, a comunhão parcial de bens), de modo que se torna ilógica a exigência do critério temporal de dois anos para o direito de pensão do cônjuge sobrevivente no caso de morte natural.

Aliás, não é preciso haver uma doença preexistente ao casamento para que a morte natural ocorra em menos de dois anos. Todos nós sabemos que existem inúmeras enfermidades que levam a óbito em questão de dias ou meses.

Talvez a preocupação da Presidência da República tenha sido com aqueles casos em que uma mulher jovem se casa, ou se une a um idoso à beira da morte para receber sua pensão por morte após o falecimento. Considerando a jovialidade da mulher, os cofres da Previdência Social teriam de pagar-lhe benefício para o resto da vida. Contudo, parece-nos que houve uma visão míope do problema, e que deixará à míngua milhares e milhares de mulheres e homens viúvos.

É verdade que, atualmente, as mulheres passaram a integrar o mercado de trabalho. E também é sabido que algumas ganham até mais que os homens, de modo que muitas não precisam de pensão por morte para sobrevivência no caso de falecimento do esposo. No caso dos homens, em geral acontece a mesma situação, já que eles, na maioria das vezes, trabalham e são os responsáveis pelo sustento do lar. No entanto, não podemos ter uma visão voltada para os bem-sucedidos e deixar no esquecimento aqueles que estão desempregados por ocasião do óbito, aqueles que não possuem uma profissão e dependem do cônjuge para arcar com as despesas da casa, aqueles que reúnem os valores recebidos a título de salário pelo casal e juntos pagam as despesas da casa, como aluguel, luz, água, telefone e alimentação.

Desse modo, quando pensamos que a Previdência Social tem por princípio a solidariedade social, notamos que a adoção do critério temporal de dois anos para a concessão de pensão por morte cujo óbito decorreu naturalmente não se coaduna com o pilar do Direito Social, que é a solidariedade social. Nesse sentido, Noa Piatã Bassfeld Gnata (2014, p. 55) leciona:

A confluência entre os indivíduos e o todo permite a leitura da solidariedade social com fim de realização democrática da sociedade e constitui elemento fundamental de partida do Direito Social, em superação da lógica do indivíduo e das afirmações teóricas de separação entre público e privado. A solidariedade social passa a ser núcleo de irradiação constitucional de todo o direito, pois o Direito Social é estrutura distinta da localizada superfície dos direitos sociais trabalhistas e previdenciários.

Em outro aspecto, cumpre observar que a adoção de um critério temporal mínimo de reconhecimento da união estável contraria a nossa legislação civil, pois a Constituição Federal e o Código Civil disciplinaram a matéria de união estável e estabeleceram a convivência duradoura, não fixando, em nenhum momento, o lapso temporal mínimo de convívio para que se configurasse a existência de uma união estável.

Estamos, portanto, diante de uma antinomia! Trata-se, in casu, de antinomia de Direito Interno, já que o critério hierárquico entra em conflito com o critério da especialidade, ambos previstos na Constituição Federal. É uma antinomia real, a qual só pode ser resolvida com a aplicação dos artigos 4º e 5º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) – Decreto-lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942 –, que dispõe:

Art. 4º. Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.

Art. 5º. Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.

Na verdade, a adoção desse critério temporal denota um verdadeiro retrocesso, visto que, por vezes, levará a inúmeras injustiças, principalmente no Direito Sucessório. Afinal, os ramos do Direito se integram, e, por isso, certamente, haverá a adoção desse critério temporal em outros segmentos, sobretudo pela jurisprudência. Isso fica mais evidente quando pensamos no Direito Público Subjetivo, conforme ensina Rodrigo de Oliveira Kauffman (2011, p. 149):

Essa insegurança de trabalhar em uma área incerta forçou os juristas a transplantar rapidamente a lógica dedutiva e fechada do discurso antigo do direito civil. As relações havidas entre direito privado e direito público, entretanto, são mais íntimas do que usualmente se pensa. Conceitos fundamentais do direito constitucional, por exemplo, nasceram de institutos tradicionais do direito privado. Assim, “direitos fundamentais” é uma derivação, na teoria moderna do direito público, do conceito de “direito público subjetivo” – conceito criado por Jellinek em 1905, quando da publicação de seu sistema de direito público subjetivo – que, por sua vez, advém da velha noção de “direito subjetivo”.


3 Da constitucionalidade da Medida Provisória nº 664 de 2014

No que tange à constitucionalidade da medida provisória aqui em discussão, cabe lembrar que esse instituto é regulado pelo artigo 62 da Constituição Federal, em substituição ao antigo decreto-lei previsto nas Constituições de 1937 e 1967, criado sob a influência do Direito Constitucional italiano, que permite a sua adoção em caso de extraordinária necessidade e urgência. Contudo, o sistema de governo italiano é o parlamentar, e, naquele país, o governo, ao adotar uma medida provisória, lá conhecida como “provimento provisório com força de lei”, o faz sob sua responsabilidade política. No caso de uma medida provisória não ser aprovada pelo Parlamento italiano, o governo cai, já que se trata de sua responsabilidade política.

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No Brasil, a medida provisória é adotada pelo Presidente da República, por meio de um ato pessoal e monocrático, e não prevê a responsabilidade política desse ente, de modo que o Poder Legislativo só é chamado a discuti-la em momento posterior, ou seja, quando a medida já produz efeitos jurídicos.

Vale lembrar as sábias palavras de Pedro Lenza (2014), que destaca que, no Brasil, as medidas provisórias trazem insegurança jurídica e configuram uma verdadeira “ditadura do Executivo”, governado por inescrupulosas “penadas”, em situações muitas vezes pouco urgentes e nada relevantes.

É importante ressaltar que a medida provisória deve ser editada nos casos de relevância e urgência, nos termos do artigo 62, caput, da Constituição Federal. Trata-se de pressuposto constitucional cumulativo, contudo, no caso da Medida Provisória nº 664 de 2014, tais requisitos não foram preenchidos cumulativamente, afinal, todos os benefícios previdenciários existentes possuem a respectiva fonte de custeio. Aliás, cumpre indagar: qual a urgência em tolher direitos dos viúvos e viúvas? Por qual razão interferir em caráter de urgência no Direito de Família, fixando o prazo de dois anos para o direito de pensão à (o) companheira (o) sobrevivente?

Nas palavras de Gilles Lipovetsky (2004, p. 100),

Ninguém negará que o mundo, do jeito que anda, provoca mais inquietação do que otimismo desenfreado: alarga-se o mais abismo entre o Primeiro e o Terceiro Mundo; aumentam as desigualdades sociais; as consciências ficam obcecadas pela insegurança de várias naturezas; o mercado globalizado diminuiu o poder que as democracias têm de regerem a si mesmas. Mas será que isso nos autoriza a diagnosticar um processo de “rebarbarização” do mundo, no qual a democracia não é mais que uma “pseudodemocracia” e um “espetáculo cerimonial”?


4 Conclusão

Diante do exposto neste breve estudo, não nos restam dúvidas de que estamos diante de uma “pseudodemocracia”, que, sob a justificativa de manter os pagamentos dos benefícios sociais em dia, se aproveita das falhas de nossa legislação, utilizando-se de medidas provisórias para tolher direitos e confundir os cidadãos, criando medidas que não são urgentes e muito menos necessárias, e pior, gerando antinomias e trazendo mais insegurança jurídica, uma vez que a solução ficará a critério do Judiciário.


Referências

GNATA, Noa Piatã Bassfeld. Solidariedade social previdenciária: interpretação constitucional e eficácia concreta. São Paulo: Ltr, 2014.

KAUFMANN, Rodrigo de Oliveira. Direitos humanos, direito constitucional e neopragmatismo. São Paulo: Almedina, 2011.

LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 18. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2014.

LIPOVESTSKY, Gilles. Os tempos hipermodernos. São Paulo: Barcarolla, 2004.

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Sobre a autora
Silvia Fernandes Chaves

Advogada, Doutoranda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC SP, Mestre em Direito da Sociedade da Informação e Especialista em Direito Civil pela FMU - Faculdades Metropolitanas Unidas. Professora Universitária. Autora da obra: A Vulnerabilidade e a Hipossuficiência do Consumidor nas Contratações Eletrônicas. Ed. Manole, São Paulo, 2015. <br> Escritório: Rua Batuíra, 941, Assunção, São Bernardo do Campo, CEP: 09861-550, PABX: (11) 4356-4277, (11) 99823-2074. Plataforma Lattes:http://lattes.cnpq.br/2942094889245141

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CHAVES, Silvia Fernandes. A união estável de dois anos estabelecida na Medida Provisória nº 664/2014. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4280, 21 mar. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/37342. Acesso em: 22 dez. 2024.

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