Diante da notícia sobre o pacote anticorrupção divulgado pelo Governo, me lembro imediatamente da famosa anedota, onde o caipira, assustado com os aparelhos utilizados pelo engenheiro para marcar uma trilha, afirma: “aqui nóis usa um burro, por onde ele for, segue a trilha”. E, quando o engenheiro pergunta o que fazem quando falta o burro, responde: “ai nóis chama o engenheiro”. No Brasil (de Pindorama, como diria Lênio), na falta do burro, se chama a lei. Substitui-se educação por imposição, como se a ausência de moral fosse algo rapidamente resolvido, em gabinetes do Legislativo/Executivo, ou em sentenças do Judiciário. Pelo contrário, moral é social, é pessoal, é interrelacional, é complexidade da qual nos utilizamos para mascarar nossas próprias falhas. Quem são os corruptos? Os pais que educam filhos através de exemplos diários como estacionarem em vagas de deficiente ou filas dupla, causando caos em saídas de escolas? O respeitado cidadão de bem, bom pai de família, que “só tomou um cálice” antes de pegar seu veículo? O coitado do empresário que, “se não sonegar, não consegue funcionar”, ou, quem sabe, aquele que “só publicou as fotos da namorada porque é um menino”? Enfim, acreditar que em uma sociedade que se orgulha do famoso “jeitinho brasileiro”, uma lei venha a acabar/combater a corrupção, é o mesmo que acreditar em fadas... basta fazer o pirlimpimpim que o problema estará resolvido (vale lembrar: ‘jeitinho” nada mais é do que um “contorno à regra”, e, isso, em uma interpretação leve, quase eufemística). O que se precisa é educação. Mas isso é outro tema.
Aqui, cumpre ressaltar que o pacote, como anunciado, viola garantias fundamentais do cidadão. Por exemplo, propõe projeto de lei que permita perda de caráter cível independentemente de aferição de responsabilidade cível ou criminal, ou desfecho de ações civis e penais! Ora, quer dizer que o Estado, devedor maior do contribuinte, com precatórios vergonhosamente atrasados, pode confiscar antes de ter certeza? Vai devolver depois, caso provada a inocência do indivíduo? Em quantos anos?
Entretanto, a violação de princípios básicos de uma Democracia de Direito é que realmente chama a atenção, pois absolutamente inadmissível que se declare uma perda sem que esteja, esta, atrelada a um ato de responsabilidade de alguém, responsabilidade, esta, declarada em sentença judicial – ou seja, um processo judicial com decisão transitada em julgado é o único caminho legítimo, em nosso sistema punitivo, a legitimar a perda de bens e valores de um acusado.
Quanto à alienação antecipada de bens como forma de preservação dos valores por eles representados, mera falácia. Primeiro, o CNJ há muito já regulou a matéria neste sentido, e desde então o Poder Judiciário tem adotado tal prática; segundo, o que se constata é que os bens são vendidos por valores 50% inferiores ao preço de mercado, depreciação esta que apenas o passar de muitos anos poderia produzir. Melhor seria, portanto, que ao invés de se preocupar com a venda do que não lhe pertence, o sistema punitivo passa-se a se preocupar com o “tempo razoável do processo”, que, até hoje, é letra morta em nossa Constituição.
Enfim, se o combate à corrupção se iniciar pelo desprezo às normas de garantia duramente conquistadas por nossos constituintes originários, não há o que se combater.