O novo marco legal de acesso ao patrimônio genético e aos conhecimentos tradicionais associados

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O artigo analisa os principais aspectos do Projeto de Lei (PL 7735/2014) que pretende substituir o atual marco legal de acesso ao patrimônio genético da biodiversidade brasileira e aos conhecimentos tradicionais a ele associados.

No dia 10.02.2015, a Câmara dos Deputados aprovou o substitutivo ao Projeto de Lei no 7735/2014. O texto, que agora tramita no Senado Federal em regime de urgência constitucional, tem por objetivo substituir o marco legal de acesso patrimônio genético da biodiversidade brasileira e aos conhecimentos tradicionais a eles associados. A legislação atual havia sido instituída em 2000 pela medida provisória 2.052/2000, que foi sucessivamente reeditada até se perenizar  por meio da medida provisória 2.186-16/2001. 

 Não obstante a nomenclatura pouco intuitiva que se convencionou usar para tratar do tema, o acesso ao patrimônio genético da biodiversidade nada mais é do que a realização de pesquisa e desenvolvimento de produtos ou processos com plantas, animais, microrganismos ou quaisquer outros organismos vivos. Diferentemente do que pode parecer à primeira vista, o acesso ao patrimônio genético não envolve necessariamente alteração genética ou uso de técnicas avançadas de engenharia. Na verdade, na maioria dos casos isso não ocorre. Da simples produção de um shampoo à elaboração de uma barrinha de cereal, tudo pode envolver acesso e utilização do patrimônio genético ou de conhecimentos tradicionais a ele associados.

Por isso mesmo, tanto o marco legal atual como aquele em tramitação no Congresso Nacional tem o potencial de impactar os mais diversos segmentos da economia, como é o caso da agricultura ou de indústrias cosméticas, farmacêuticas, químicas, de alimentos, dentre outras. A palavra impactar é aqui utilizada de forma neutra, no sentido de acarretar consequências, e não como indicativo de algo positivo ou negativo. Na verdade, com realidades tão distintas entre os diversos segmentos afetados, apenas uma análise criteriosa de cada um permitirá que esse juízo de valor seja feito de forma segura. No atual estágio das discussões, ainda há tempo – ainda que curto - para que essa avaliação seja feita e que mudanças no texto que eventualmente se façam necessárias sejam buscadas.

As discussões sobre a necessidade de alteração do marco legal que rege o tema são antigas. Pelo menos um projeto de lei foi apresentado no passado  e esquecido nos escaninhos do Congresso Nacional. Uma consulta pública também foi feita sobre o tema em 2007 . O assunto voltou a ganhar força a partir da assinatura do Protocolo de Nagoya, ocorrida em 2010, e teve seu impulso definitivo a partir do ano de 2013, quando a sociedade civil e o Ministério do Meio Ambiente passaram a trabalhar na elaboração de um novo projeto que conseguisse captar toda a experiência vivenciada pelo país nesses anos de aplicação da medida provisória 2.186-16/2001 e aperfeiçoar a regulação sobre o tema. O resultado desse trabalho foi o Projeto de Lei no 7735/2014, que foi submetido pela Presidência da República ao Congresso em junho de 2014, em regime de urgência constitucional, e acabou sendo recentemente aprovado pela Câmara com algumas alterações.

 Todo o trabalho de construção do marco foi permeado pelo consenso de que o sistema atual não atingia os objetivos centrais pretendidos pelo legislador ao regular essa matéria, quais sejam: promover a conservação e uso sustentável da biodiversidade e garantir a justa e equitativa repartição dos benefícios decorrentes de seu acesso e utilização . Durante os trabalhos, havia também a concordância de que isso não ocorria porque o regramento da medida provisória 2.186-16/2001 é excessivamente burocrático e pouco claro, o que levava os interessados em acessar e utilizar o patrimônio genético ou os conhecimentos tradicionais para pesquisa ou desenvolvimento de produtos a não fazê-lo ou a optar por uma atuação à margem da lei. Com isso o país perdia oportunidade de inovar e de gerar incentivos para a conservação da biodiversidade. 

Com o objetivo de superar essas dificuldades, o projeto de lei aprovado na Câmara pretende realizar uma completa reformulação da lógica que rege o sistema de acesso atualmente. As principais mudanças trazidas podem ser resumidas nos tópicos abaixo:

a)  Substituição de um sistema de autorização prévia pelo cadastro eletrônico de atividades

O projeto elimina a exigência geral de autorização prévia do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN) para a realização de acesso. Essa exigência passa a ser uma exceção que poderá ser aplicada apenas nas seguintes hipóteses: i) acesso por pessoa jurídica sediada no exterior não associada a instituição nacional; ii) remessa para o exterior com a finalidade de acesso por pessoa jurídica sediada no exterior não associada a instituição nacional; iii)  acesso ao patrimônio genético ou ao conhecimento tradicional associado em área indispensável à segurança nacional, que se dará após anuência do Conselho de Defesa Nacional; e iv) acesso ao patrimônio genético ou ao conhecimento tradicional associado em águas jurisdicionais brasileiras, na plataforma continental e na zona econômica exclusiva, que se dará após anuência da autoridade marítima.

Porém, isso não significa uma renúncia completa ao controle das atividades de acesso e remessa. A antiga exigência de autorização prévia para o desenvolvimento dessas atividades, agora restrita às hipóteses acima, foi substituída por um sistema de cadastro eletrônico que será feito pelo próprio usuário e com base no qual se obterá um atestado que permitirá o seu desenvolvimento. Com isso se pretende desburocratizar o acesso e a remessa, incentivando a pesquisa e desenvolvimento com espécies da biodiversidade brasileira e gerando benefícios a serem repartidos e promovendo a conservação e uso sustentável da biodiversidade.

b) Tabelamento da repartição de benefícios

Os benefícios a serem repartidos pelo acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicional associado passam a ser tabelados, podendo se dar na modalidade monetária e não monetária, sendo que na hipótese de acesso a patrimônio genético, a opção por uma dessas modalidade fica a critério do usuário.

 Em se tratando de acesso ao patrimônio genético, caso a opção seja pela via monetária, deverá ser pago o valor de 1% sobre a receita líquida advinda da comercialização de produtos acabados ou do material reprodutivo, valor muito superior à média atualmente praticada no Brasil, conforme valores indicados no estudo realizado por Larissa Schimidt e disponível para consulta no próprio site do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético . Segundo o projeto, esse montante pode ser reduzido por meio de acordo setorial para até 0,1%, mas até que isso ocorra o montante previsto em lei deverá ser aplicado. A experiência com a negociação dos acordos setoriais relacionados à implementação do sistema de logística reversa previsto na Política Nacional de Resíduos Sólidos recomenda cautela sobre esse ponto, pois, como se sabe, são negociações complexas que tendem a perdurar por longos períodos. Se a escolha para a repartição de benefícios for pela via não monetária, o usuário receberá um desconto no valor a ser desembolsado, já que deverá investir na ação não monetária no mínimo 0,75% do percentual que seria aplicável caso escolhesse o pagamento monetário, a depender da forma de repartição não monetária por ele escolhida . 

Quando se tratar de acesso ao conhecimento tradicional, haverá duas situações distintas: a do conhecimento de origem identificada (ou seja, quando se sabe quem é o provedor) e a do conhecimento de origem não identificada, também chamado de difuso. No primeiro caso, o projeto permite a livre negociação entre provedor e o usuário, mas exige que um mínimo  equivalente à metade do valor tabelado para a repartição monetária seja pago, na modalidade monetária, obrigatoriamente, a um Fundo gerido pela União. Esse recurso  tem por escopo remunerar eventuais codetentores do mesmo conhecimento, cuja existência passa a ser presumida de forma absoluta. No segundo caso (acesso a conhecimento tradicional associado de origem não identificada), o pagamento deve se dar necessariamente na forma monetária, incidindo o percentual previsto para o acesso ao patrimônio genético acima indicado, que deve ser também recolhido ao Fundo. Aparentemente, a intenção deste projeto de lei ao prever tratamento e pagamentos diferenciados ao conhecimento tradicional associado identificável, ao difuso e prever mecanismo de remunerar co-detentores, é garantir reconhecimento aos conhecimentos tradicionais, bem como maior segurança jurídica aos usuários, limitando possíveis questionamentos de co-detentores.  

Ainda com relação a conhecimento tradicional, importante notar que o projeto da Câmara previu que na hipótese de o usuário acessar simultaneamente patrimônio genético e conhecimento tradicional associado, não estará obrigado a pagar o percentual de repartição de benefícios fixado em dobro, pois é expressamente previsto que a repartição de benefícios pelo acesso a CTA dispensará o pagamento de repartição de benefícios pelo acesso ao patrimônio genético.

Trata-se, como se percebe, de uma completa mudança do sistema atual, que preconiza a livre negociação entre provedor e usuário. A partir dessa nova lógica, o regime de repartição de benefícios se aproximará a um sistema tradicional de arrecadação de tributos, com a fixação de alíquota, definição de base de cálculo e arrecadação feita pela União, salvo em situações específicas.

c) Elemento principal de agregação de valor

O marco legal projetado instituiu um novo requisito para que a obrigação de repartir benefícios seja exigível. Nem todo acesso ou utilização do patrimônio genético ou do conhecimento tradicional acarretará para o usuário tal dever. Para tanto, será necessário que o produto por ele explorado tenha esse patrimônio ou conhecimento como um dos seus elementos principais de agregação de valor. E o que seriam tais elementos? Segundo o projeto, são aqueles cuja presença no produto acabado seja determinante para a existência das características funcionais ou para a formação do apelo mercadológico do produto. Apesar da aparente clareza da norma, antevemos inúmeras controvérsias que podem surgir na interpretação desses conceitos e que precisam  ser sanadas por meio de regulamentos, quando vigente o projeto de lei, mas que aqui não serão discutidas por extrapolar os objetivos desse trabalho.

d) Centralização dos recursos

O projeto prevê que os pagamentos feitos a título de repartição de benefícios na modalidade monetária, com exceção dos pagamentos pelo acesso a conhecimento tradicional identificável, que serão realizados diretamente ao provedor, deverão ser destinados a um fundo por ele criado, o Fundo Nacional para a Repartição de Benefícios – FNRB.  Caberá ao Poder Executivo dispor em regulamento sobre a composição, organização e funcionamento do Comitê Gestor do FNRB. 

e) Isenção da obrigação de repartir benefícios.

Cria-se uma isenção da obrigação de pagamento de repartição de benefícios para entidades que desenvolvem e exploram produtos intermediários, ou seja, produtos cuja natureza é a utilização em cadeia produtiva, na condição de insumo, excipiente e matéria-prima, para o desenvolvimento de outro produto intermediário ou de produto acabado. É o caso, por exemplo, de empresas especializadas na fabricação de insumos para a indústria cosmética ou farmacêutica. A repartição de benefícios será feita exclusivamente pela empresa que fabrica o produto acabado, destinado ao consumidor final, valendo-se do produto intermediário.

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Isso não significa que as entidades desenvolvedoras de produtos intermediários estarão isentas de qualquer controle com base na nova legislação. Elas estarão sujeitas ao dever de cadastrar suas atividades de acesso ou remessa, como qualquer outra, garantindo-se com isso a rastreabilidade das amostras utilizadas para o desenvolvimento de produtos. Portanto, a isenção se restringe ao dever de repartir benefícios e às obrigações a ele correlatas.

Também ficam isentas da obrigação de repartição de benefícios, independentemente do produto que desenvolver ou explorador (ou seja, mesmo em se tratando de produto acabado), as microempresas, as empresas de pequeno porte e os microempreendedores individuais, conforme disposto na Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006, bem como os agricultores tradicionais e suas cooperativas, com receita bruta anual igual ou inferior ao limite máximo estabelecido no inciso II do art. 3º da Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006.

f) Racionalização das sanções e anistia das multas aplicadas

O projeto busca racionalizar as sanções passíveis de aplicação em caso de descumprimento do regime instituído, especialmente em se tratando de multa. Nesse sentido, reduz a multa máxima prevista de 50 milhões (regime atual) para 10 milhões de reais. Trata-se de medida que busca compatibilizar a pena com o tipo de lesão ou perigo de lesão passível de ser gerada em razão do descumprimento das normas.

Há também a possibilidade de extinção da exigibilidade de sanções aplicadas em razão do cometimento de algumas infrações previstas na legislação atualmente em vigor. É o caso, por exemplo, de eventual acesso ao patrimônio genético sem autorização. Para algumas infrações não há possibilidade de completa extinção da exigibilidade, mas se permite a redução das multas eventualmente aplicadas em até 90%. Além disso, esse saldo remanescente poderá ser convertido em obrigação de executar uma das modalidades de repartição de benefícios não monetária.

As previsões em questão devem servir como incentivo para o ingresso de inúmeros usuários no sistema, pois, como se sabe, em suas operações fiscalizatórias o IBAMA aplicou mais de 200 milhões de reais em multas por suposto descumprimento da legislação vigente .
Para se valer desses benefícios, será necessário que o usuário assine termo de compromisso no qual se comprometa a: realizar cadastro ou obter autorização de acesso ou remessa de patrimônio genético ou de conhecimento tradicional associado; notificar produto ou processo; e repartir os benefícios obtidos na forma da lei e de forma retroativa.  

Como se vê, o marco legal projetado reformula por completo o atual sistema e por isso, se aprovado, demandará adaptação de todas as entidades que realizam pesquisa e desenvolvimento de espécies da biodiversidade brasileira, sejam elas empresas, universidades, centros de pesquisa, etc. Como tramita em regime de urgência constitucional, o texto tende a caminhar rapidamente no Senado Federal e se for aprovado sem alterações seguirá diretamente para a sanção presidencial. Assim, a expectativa é que até o fim do ano  o Brasil passe a ter um novo marco legal regendo o assunto, marco este que deverá ser adequadamente compreendido não apenas para que as necessárias regulamentações sejam feitas, como também para que seja devidamente cumprido, evitando-se situações como as ocorridas no passado em que milhões de reais em multas foram aplicados em razão de violação das normas vigentes.    

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Sobre os autores
João Emmanuel Cordeiro Lima

Advogado. Sócio do escritório Nascimento e Mourão. Mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela PUC/SP. Professor Palestrante da FGV/SP. Membro do Instituto de Relações Governamentais.

Anita Pissolito Campos

Mestre em Direito Civil pela Universidade de São Paulo

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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