Impenhorabilidade do bem de família com relação às pessoas solteiras, separadas e viúvas

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12/04/2015 às 23:17
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O presente artigo científico visa fazer uma interpretação teleológica da lei n. 8.009/90, com a edição da Súmula 364 STJ, que estendeu a impenhorabilidade ao patrimônio das pessoas solteiras, separadas e viúvas.

 

 

 

 

 

RESUMO:

O objeto do presente artigo científico é o estudo do instituto do Bem de Família em nosso ordenamento jurídico, com enfoque na interpretação da Lei n. 8.009/90, a qual assegura não só o direito do devedor, mas também da família do indivíduo que passa por dificuldades financeiras a ter uma vida digna, sem privação de sua moradia. Visa-se também, esclarecer o tema proposto através de uma ampla aplicação da Lei n. 8.009/90, conferindo-lhe abrangência além da proteção à família coletiva, para incluir aqueles entes que a integram de forma individual ou dela são remanescentes. Adotando interpretação teleológica da lei, o STJ a editou a Súmula 364, que estendeu a impenhorabilidade ao patrimônio das pessoas solteiras, separadas e viúvas. Para tanto foi utilizado o método indutivo, identificando-se as partes do fenômeno, chegando-se a uma conclusão geral acerca da aplicação extensiva da Lei 8009/90.

 

PALAVRAS-CHAVE: Bem de Família. Lei n. 8.009/90. Impenhorabilidade. Pessoas solteiras, separadas e viúvas.

ABSTRACT: The object of present scientific article is the study of institute of the family asset under the brazilian legal system, with emphasis in interpretation of the law  n. 8.009/90, as not only ensures the debtor’s legal right but as the individual’s family has financial problem for to lead a worthy life without deprivation of his room. It’s worth clarifying once more that the proposed topic has a large law enforcement n. 8.009/90. The Precedent 604 STJ goes from the immunity of single’s, separated’s and widow’s patrimony.

KEYWORDS: Family Asset. Law n. 8.009/90. Immunity. Singles, separateds and widows peoples.

SUMÁRIO:

Introdução; 1 Considerações sobre o Bem de Família; 1.1 Origem Histórica; 1.2 Conceito e Natureza Jurídica; 2 Classificação do Bem de Família; 2.1 Bem de Família Voluntário; 2.2 Bem de Família Legal; 3 A impenhorabilidade do Bem de Família como exceção ao Princípio da Responsabilidade Patrimonial; 4 A interpretação teleológica da Lei n. 8.009/90; 5 Extensão da impenhorabilidade do Bem de Família às pessoas solteiras, separadas e viúvas; Considerações Finais; Referências.

 

INTRODUÇÃO

O objetivo desta pesquisa é analisar a possibilidade de conferir uma ampla interpretação ao conceito do Bem de Família com base na lei, doutrina e jurisprudência brasileira. Em suma, tal instituto tem por finalidade precípua assegurar o patrimônio mínimo a todo ser humano, sob a égide dos princípios da dignidade da pessoa humana, do direito à moradia e da proteção à família.

Atualmente, o bem de família no Brasil é dividido em dois regimes: voluntário e legal, sendo o primeiro regido pelo Código Civil em seus artigos 1.711 à 1.722, e o último pela Lei n. 8.009/90.

Pesquisa-se neste trabalho, a extensão do conceito do Bem de Família em nosso ordenamento pátrio, após a edição da súmula 364 do STJ, com foco na seguinte indagação: a impenhorabilidade do Bem de Família alcança também as pessoas solteiras, separadas e viúvas?

Para tanto, o trabalho foi dividido nos seguintes itens: Considerações sobre o Bem de Família; Origem Histórica; Conceito e Natureza Jurídica; Classificação do Bem de Família; Bem de Família Voluntário; Bem de Família Legal; A impenhorabilidade do Bem de Família como exceção ao Princípio da Responsabilidade Patrimonial; A interpretação teleológica da Lei n. 8.009/90; Extensão da impenhorabilidade do Bem de Família às pessoas solteiras, separadas e viúvas.

Quanto à metodologia empregada no artigo científico, este se realizou pela base lógica Indutiva[3], e foram utilizadas as Técnicas do Referente[4], da Categoria[5], do Conceito Operacional[6] e da Pesquisa Bibliográfica[7], apoiada na doutrina e na  jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.

 

1. CONSIDERAÇÕES SOBRE O BEM DE FAMÍLIA

1.1 ORIGEM HISTÓRICA

Conforme o ilustre jurista Álvaro Villaça Azevedo, a notícia mais antiga que se tem do instituto bem de família é a de que este teve origem nos Estados Unidos, mais especificamente na Lei do Estado do Texas, em 1839, época em que o aquele sofria grande crise econômica. Referida lei, anos mais tarde, concretizou a lei Homestead Exemptio Act,  a qual serviu como base para o Código Civil brasileiro de 1916.

A Homestead Exemptio Act, foi editada com o principal objetivo de livrar as famílias de qualquer execução judicial.

Acerca da lei em tela, colhe-se do escólio de Álvaro Villaça Azevedo:

“[…]livrando de qualquer execução judicial 50 acres de terra ou um terreno na cidade, compreendendo a habitação e melhoramentos de valor não superior a 500 dólares, todos os móveis e utensílios de cozinha, desde que o valor não excedesse de 200 dólares, todos os instrumentos aratórios, até o valor de 50 dólares, além de utilidades, instrumentos, e livros destinados ao comércio ou ao exercício profissional do devedor ou qualquer cidadão, cinco vacas leiteiras, uma parelha de bois ou um cavalo, 20 porcos e todas as provisões necessárias a um ano de consumo.[8]

Ante a reconhecida importância da Homestead Exemptio Act, posteriormente a lei foi estendida não somente dentro dos Estados Unidos, mas em diversos países do mundo, inclusive no Brasil, com a instituição da Lei n. 8.009 de 29 de março de 1990 que instituiu o Bem de Família.

 

1.2 CONCEITO E NATUREZA JURÍDICA

O bem de família, estabelecido pela Lei n. 8.009/90, mais precisamente no seu art. 1º, pode ser definido como “o imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, isento de penhora e qualquer dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam proprietários e neles residam”[9].

Conforme entendimento do ilustre doutrinador Álvaro Villaça Azevedo, [...] a violação do lar é a quebra da última proteção humana, o aniquilamento de uma família é a incineração do próprio amor: amor da casa, amor da rua, amor de um semelhante por outro; em uma palavra: amor[10].

A constituição do bem de família tem por escopo a proteção da moradia utilizada como sede da família, garantindo ao grupo familiar que ela permanecerá salvaguardada das contingências econômicas que possa sofrer, valorizando e enfatizando o fim social da habitação e protegendo a família que é o pilar da sociedade.

Assim, concluiu acerca da impenhorabilidade, o professor Álvaro Villaça que:

“Em qualquer dessas circunstâncias, estaremos em face do bem de família, sempre impenhorável, enquanto durar a residência. Com a mudança da residência, cessa a impenhorabilidade do bem de família anterior, criando-se nova impenhorabilidade quanto aos bens sujeitos à nova residência[11].”

Portanto, diante do corolário acima mencionado, a natureza jurídica do instituto em causa é a de um patrimônio com destinação específica, pois o bem de família serve para garantir o abrigo de família, com o objetivo de resguardar o mínimo de dignidade de sobrevivência da pessoa humana.

 

2 CLASSIFICAÇÃO DO BEM DE FAMÍLIA

 

2.1 BEM DE FAMÍLIA VOLUNTÁRIO

Bem de família voluntário, como o nome já diz, é aquele que se constitui por atitude voluntária do proprietário, como um ato de cautela para proteger o instituidor e sua família de expropriações futuras.

O art. 1.711 do Código Civil prevê a possibilidade de os cônjuges ou entidade familiar indicarem parte de seu patrimônio para instituir bem de família, bem como também possibilita que seja instituído em favor de terceiros por meio de escritura pública, testamento registrado no Cartório de Registro de Imóveis (art. 1.714 CC), ou doação.

Quando instituído em favor de terceiro, é necessária, no entanto, a expressa aceitação dos beneficiários. A necessidade da concordância decorre do fato de o bem de família se destinar ao domicílio familiar, pois quem recebe um imóvel como bem de família precisa morar nele (Arts. 1.712 e 1.717, ambos do CC).

Assim o imóvel instituído ficará livre dos efeitos expropriatórios decorrentes de processos judiciais/administrativos para execução de dívidas futuras, não dispondo a impenhorabilidade de efeito retroativo (art. 1.715 CC).

Conclui-se que, através do mencionado dispositivo, o legislador quis proteger a entidade familiar, assegurando o direito à moradia ao disciplinar que as dívidas adquiridas após a instituição do bem de família não o atingirão, ou seja, com a eficácia constitutiva, a sua publicidade gerará efeito.

Por fim, ressaltando que o bem de família constituído de forma voluntária é considerado impenhorável e inalienável, o bem de família poderá ser extinto pela morte de um dos cônjuges, caso o sobrevivente requeira a extinção, ou se ambos os cônjuges e a maioria dos filhos morrerem (art. 1.722 CC).

 

2.2 BEM DE FAMÍLIA LEGAL

De forma análoga ao que ocorreu com relação ao bem de família estabelecido no Código Civil, o bem de família legal, também denominado por alguns autores como involuntário ou comum, foi instituído pela Lei n. 8.009 de 29 de março de 1990, com o objetivo de assegurar a impenhorabilidade do bem de família, ou seja, o mínimo necessário à sobrevivência da célula familiar.

Acerca do mínimo vital, Ana Marta Zilveti esclarece que

“[…] é um direito instrumental, um direito complementar do devedor, que serve à conservação de outros direitos e valores primordiais, como a dignidade e a personalidade da pessoa humana. Trata-se, sobretudo, de garantir a dignidade do devedor de boa-fé que lutou sua vida inteira para adquirir patrimônio suficiente ao seu amparo e ao de sua família[12]”.

 

O presente instituto nasceu com o propósito de ampliar e tornar mais eficaz a proteção à família, posto que muitos não têm condições econômicas ou acesso às informações necessárias para assegurar o domicílio em que habita.

De acordo com o art. 5º da Lei n. 8.009/90, a proteção é assegurada ao casal ou entidade familiar que, residindo em um único imóvel de sua propriedade, faz com que o bem seja preservado, tornando-o impenhorável.

Porém, o Superior Tribunal de Justiça já se manifestou no sentido de que não é necessário o grupo familiar residir no único imóvel de sua propriedade.

Nesta senda, colhe-se da jurisprudência do STJ:

“CIVIL E PROCESSO CIVIL. AFASTAMENTO DA SÚMULA 7/STJ. DESNECESSIDADE DE O IMÓVEL SER A RESIDÊNCIA DO DEVEDOR PARA DEFINI-LO COMO BEM DE FAMÍLIA. RETORNO DOS AUTOS AO TRIBUNAL DE ORIGEM PARA EXAMINAR OS REQUISITOS NECESSÁRIOS À CONFIGURAÇÃO DO BEM DE FAMÍLIA. 1. É pacífico o entendimento desta Corte de que "não descaracteriza automaticamente o instituto do bem de família, previsto na Lei 8.009/1990, a constatação de que o grupo familiar não reside no único imóvel de sua propriedade" (AgRg no REsp 404.742/RS, Rel. Min. Herman Benjamin, DJe 19/12/2008). 8.009 REsp 404.742/RS2. O bem de família, tal como estabelecido em nosso sistema pela Lei 8.009/90, surgiu em razão da necessidade de aumento da proteção legal à célula familiar, em momento de grande atribulação econômica decorrente do malogro de sucessivos planos governamentais. A norma é de ordem pública, de cunho eminentemente social, e tem por escopo resguardar o direito à residência ao devedor e a sua família, assegurando-lhes condições dignas de moradia, indispensáveis à manutenção e à sobrevivência da célula familiar.8.0093. Agravo regimental provido, com a determinação de retorno dos autos à Corte a quo a fim de que prossiga no exame dos requisitos necessários à configuração do bem de família. (REsp 901881 SP 2006/0248878-5, Relator: Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Data de Julgamento: 17/03/2011, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 22/03/2011)[13]” .

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Com a edição da súmula 205 do STJ[14],a penhora incidente sobre o bem de família que houver ocorrido penhorado antes da promulgação da Lei 8.009/90 dever-se-á ser desconstituída, por força da incidência imediata da lei, devido à retroatividade da norma de ordem pública.

Tal instituto legal tem maior aplicabilidade prática, posto que não requer a intricada série de exigências do bem de família voluntário, bem como pode ser invocado a qualquer tempo ou grau de jurisdição por se tratar de norma de ordem pública, tendo um caráter eminentemente processual.

Acerca do bem de família ser configurado como ordem pública, o STJ se manifestou:

“PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. PRELIMINAR. ART. 535, II, DO CPC. OMISSÃO. INEXISTÊNCIA. ART. 512 DO CPC. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. AUSÊNCIA. IMÓVEL RESIDENCIAL. BEM DE FAMÍLIA. MATÉRIA DE ORDEM PÚBLICA. CONHECIMENTO A QUALQUER TEMPO E GRAU DE JURISDIÇÃO. IMÓVEL DOADO AOS FILHOS DO EXECUTADO EM USUFRUTO DA EX-CÔNJUGE. FRAUDE À EXECUÇÃO AFASTADA.535 II CPC 512 CPC 1. Não foi omisso o acórdão recorrido quanto à alegada supressão de instância, pois a Corte local entendeu que a tese da impenhorabilidade do bem de família é matéria de ordem pública, suscitável a qualquer tempo e grau de jurisdição. Violação do art. 535 do CPC afastada.535CPC2. A impenhorabilidade do bem de família é matéria de ordem pública que não pode, nem mesmo, ser objeto de renúncia por parte do devedor executado, já que o interesse tutelado pelo ordenamento jurídico não é do devedor, mas da entidade familiar, que detém, com a Carta Política de 1988, estatura constitucional. Precedentes. Ausência de contrariedade ao art. 512 do CPC. Carta Política 512 CPC 3. O fato de o recorrido já não residir no imóvel não afasta sua impenhorabilidade absoluta, já que foi transferido, no caso, para seus filhos com usufruto de sua ex-esposa. Como a lei objetiva tutelar a entidade familiar e não a pessoa do devedor, não importa que no imóvel já não mais resida o executado. 4. Se o imóvel é absolutamente impenhorável e jamais poderia ser constrito pela execução fiscal, conclui-se que a doação do bem aos filhos do executado com usufruto pela ex-esposa não pode ser considerado fraude à execução, pois não há a possibilidade dessa vir a ser frustrada em face da aludida alienação.5. Recurso especial não provido. (1059805 RS 2008/0113325-0, Relator: Ministro CASTRO MEIRA, Data de Julgamento: 26/08/2008, T2 - SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJe 02/10/2008)[15].

 

Seguindo esta mesma diretriz, o Egrégio TJRS se posicionou:

“EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. BEM DE FAMÍLIA. CARACTERIZAÇÃO. IMPENHORABILIDADE. LEI N. 8.009/90. MATÉRIA DE ORDEM PÚBLICA.8.009Impenhorabilidade do bem de família. Matéria de ordem pública que pode ser conhecida a qualquer tempo, até mesmo ex officio. A garantia dada pela Lei n. 8.009/90 exige demonstração inequívoca da destinação residencial do bem, assim como a prova de tratar-se do único imóvel pertencente à entidade familiar, ônus de que não se desincumbiu a parte embargante. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO ACOLHIDOS SEM EFEITO INFRINGENTE. (70046172516 RS , Relator: José Luiz Reis de Azambuja, Data de Julgamento: 15/03/2012, Décima Quarta Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 05/04/2012)[16]”.

 

Convém mencionar, que além do imóvel, os bens que guarnecem a residência também são resguardados pela norma, não havendo uma limitação do valor ou extensão, preservando ainda mais a dignidade do devedor e seus familiares.

Desta forma, constata-se que o direito à moradia é um direito social. Todavia, a ausência deste direito implica uma grave ofensa à própria dignidade da pessoa humana, o que leva à conclusão de que, neste caso, o direito social pode ser equiparado ao direito fundamental.

 

3. A IMPENHORABILIDADE DO BEM DE FAMÍLIA COMO EXCEÇÃO AO PRINCÍPIO DA RESPONSABILIDADE PATRIMONIAL QUE REGE OS PROCESSOS DE EXECUÇÃO

O princípio da responsabilidade patrimonial do devedor está previsto no art. 591 do CPC, que dispõe que: “O devedor responde, para o cumprimento de suas obrigações, com todos os seus bens presentes e futuros, salvo as restrições estabelecidas em lei” será exceção.

Portanto, regra geral, segundo o princípio mencionado, a totalidade do patrimônio do devedor serviria como garantia de suas obrigações.

Sintetiza com perfeição, Araken de Assis:

“Nesse sentido, o art. 591 representa norma fundamental do processo executivo. Ele reza que ‘o devedor responde, para o cumprimento de suas obrigações, com todos os seus bens presentes e futuros, salvo as restrições estabelecidas em lei’. Em sua ilusória singeleza, o dispositivo parece abrigar comando neutro e genérico: a maioria dos atos executivos opera, efetivamente, sobre o patrimônio do devedor, ressalvados os bens impenhoráveis. [...][17]

Contudo, a aplicação deste princípio não é absoluta. Exemplo disso são as limitações previstas no art. 648 do CPC, que complementa o art. 591 parte final: “não estão sujeitos à execução os bens que a lei considera impenhoráveis ou inalienáveis”, dentre os quais aqueles arrolados nos artigos 649 e 650 do CPC.

Além destes bens mencionados no Digesto Processual, há que se ressaltar a exceção constante da Lei do Bem de Família, como se verá adiante.

 

4. A INTERPRETAÇÃO TELEOLÓGICA DA LEI N. 8.009/90

Interpretação teleológica nada mais é do que a interpretação da norma sob a ótica da finalidade para qual foi criada.

Portanto, a interpretação da regra da impenhorabilidade do bem de família deve ser pautada pela finalidade que a norteia, isto é, a manutenção da garantia de moradia, respeitando o princípio constitucional da pessoa humana[18].

Desse modo, o direito à moradia é reconhecido como um direito social à pessoa humana, quer como pressuposto do direito à integridade física, quer como elemento da estrutura moral do sujeito[19].

Se a moradia é direito constitucionalmente garantido ao indivíduo, com muito mais razão deve ser protegido o direito habitacional da entidade familiar, seja nos moldes tradicionais, seja às pessoas solteiras, separadas ou viúvas.

Maria Berenice Dias, em sua obra, reconhece a evolução da doutrina e da jurisprudência, ampliando o alcance do instituto:

“Apesar de a expressão “bem de família” dar a entender que o instituto se destina à proteção da entidade familiar, passou a justiça a reconhecer que é um instrumento de proteção à pessoa do devedor, tendo ele ou não família, morando ou não sozinho[20]”.

Nesse sentido, o Ministro do STJ, Humberto Gomes de Barros, discorreu que:

“A interpretação teleológica do Art. 1º, da Lei 8.009/90, revela que a norma não se limita ao resguardo da família. Seu escopo definitivo é a proteção de um direito fundamental da pessoa humana: o direito à moradia. Se assim ocorre, não faz sentido proteger quem vive em grupo e abandonar o indivíduo que sofre o mais doloroso dos sentimentos: a solidão. - É impenhorável, por efeito do preceito contido no Art. 1º da Lei 8.009/90, o imóvel em que reside, sozinho, o devedor celibatário. (REsp 182.223-SP, Corte Especial, DJ de 07/04/2003)[21].

Nesta diretriz, foi publicada a súmula 364 do STJ para estender a impenhorabilidade do bem de família aos devedores solteiros, separados e viúvos.

 

4.1. EXTENSÃO DA IMPENHORABILIDADE DO BEM DE FAMÍLIA ÀS PESSOAS SOLTEIRAS, SEPARADAS E VIÚVAS

A Lei n. 8.009/90 dispõe em seu art. 1º que “o imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida […]”.

A redação, no primeiro momento, pode levar o intérprete da lei a pensar que o imóvel residencial só é protegido pela lei se servir de domicílio para uma família, nos moldes tradicionais.

No entanto, à respeito das regras jurídicas, o respeitado Norberto Bobbio leciona que:

“[...] as normas jurídicas nunca existem isoladamente, mas sempre em um contexto de normas com relações particulares entre si [...] Esse contexto de normas costuma ser chamado de “ordenamento[22]”.

Diante desse preceito, diversos doutrinadores pregam que a impenhorabilidade deve ser estendida às pessoas solteiras, separadas e viúvas.

Discorrendo sobre a constituição do bem de família legal, CREDIE assegura:

“A Lei n. 8.009, vazada em normas cogentes ou de observância obrigatória, exclui da penhora qualquer imóvel residencial onde viva a família, seja ela constituída pelo casamento ou não, bastando para tanto a união estável de homem e mulher, more uxório, ou o parentesco, e que algum integrante desse grupo tenha domínio ou posse do bem, ainda que residente singular[23]”.

Quanto às famílias monoparentais e em situação de união estável, o art. 226, caput,§ 3º e 4º da Constituição Federal discorrem que:

“A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado” […].

“§ 3º. “Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”.

“§ 4º. Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes”.

Logo, observa-se que a Lei Soberana reconhece a união estável e a família monoparental como entidades familiares, equiparando-as às famílias tradicionais.

Desta forma, pode-se concluir que a Lei n. 8.009/90, abrange também as uniões estáveis e as famílias monoparentais.

A respeito, o STJ ponderou:

“PROCESSO CIVIL. EXECUÇÃO. PENHORA. BEM DE FAMÍLIA. SEPARAÇÃO DO CASAL POSTERIOR. PENHORA INCIDENTE SOBRE IMÓVEL QUE O CÔNJUGE VEIO A RESIDIR. EXCLUSÃO. MÁ-FÉ NÃO-DEMONSTRADA. RECURSO IMPROVIDO.1. A impenhorabilidade do bem de família, prevista no art. 1º, da Lei n.º 8.009/90, visa resguardar não somente o casal, mas a própria entidade familiar.1º8.0092. A entidade familiar, deduzido dos arts. 1º da Lei 8.009/90 e 226, § 4º da CF/88, agasalha, segundo a aplicação da interpretação teleológica, a pessoa que, como na hipótese, é separada e vive sozinha, devendo o manto da impenhorabilidade, dessarte, proteger os bens móveis guarnecedores de sua residência. Precedente: (REsp 205170/SP, DJ 07.02.2000).1º8.009226§ 4ºCF/883. Com efeito, no caso de separação dos cônjuges, a entidade familiar, para efeitos de impenhorabilidade de bem, não se extingue, ao revés, surge uma duplicidade da entidade, composta pelos ex-cônjuges: varão e virago.4. Deveras, ainda que já tenha sido beneficiado o devedor, com a exclusão da penhora sobre bem que acabou por incorporar ao patrimônio do ex-cônjuge, não lhe retira o direito de invocar a proteção legal quando um novo lar é constituído [...].(STJ, REsp 963.370/SC, 1ª Turma, rel. Min. Luiz Fux, j. 15.04.2008)[24]”.

Ainda, no mesmo sentido:

“CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. LOCAÇÃO. BEM DE FAMÍLIA. MÓVEIS GUARNECEDORES DA RESIDÊNCIA. IMPENHORABILIDADE. LOCATÁRIA⁄EXECUTADA QUE MORA SOZINHA. ENTIDADE FAMILIAR. CARACTERIZAÇÃO. INTERPRETAÇÃO TELEOLÓGICA. LEI 8.009⁄90, ART. 1º E CONSTITUIÇÃO FEDERAL, ART. 226, § 4º. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.

1 - O conceito de entidade familiar, deduzido dos arts. 1º da Lei 8.009⁄90 e 226, § 4º da CF⁄88, agasalha, segundo a aplicação da interpretação teleológica, a pessoa que, como na hipótese, é separada e vive sozinha, devendo o manto da impenhorabilidade, dessarte, proteger os bens móveis guarnecedores de sua residência.2 - Recurso especial conhecido e provido.(REsp 205170⁄SP, Rel. Ministro  GILSON DIPP, QUINTA TURMA, julgado em 07.12.1999, DJ 07.02.2000 p. 173)

 

EXECUÇÃO. IMPENHORABILIDADE. IMÓVEL RESIDENCIAL. DEVEDOR SEPARADO JUDICIALMENTE QUE MORA SOZINHO.

- Com a separação judicial, cada ex-cônjuge constitui uma nova entidade familiar, passando a ser sujeito da proteção jurídica prevista na Lei nº 8.009, de 29.03.90. Recurso especial não conhecido. (REsp 218377⁄ES, Rel. Ministro  BARROS MONTEIRO, QUARTA TURMA, julgado em 20.06.2000, DJ 11.09.2000 p. 255)[25]”.

Há, também, nos tribunais vários julgados na mesma diretriz, entendendo que a lei de impenhorabilidade tutela o imóvel do devedor solteiro, viúva e divorciado.

Sobre a proteção do patrimônio dos solteiros, Álvaro Villaça, assevera que:

“Entendo diferentemente desse posicionamento contrário à proteção do solteiro ou do que vive solitariamente. Eles não podem ser alijados da proteção da lei, porque cada pessoa, ainda que vivendo sozinha, deve ser considerada como família, em sentido mais restrito, já que o homem, for a da sociedade, deve buscar um ninho, um lar, para proteger-se das violências, das agruras e dos revezes que existem na sociedade[26]”.

Exemplificativamente, seguem precedentes do STJ que tratam da impenhorabilidade do bem de família nas mais diversas entidades familiares. Vejamos:

Do devedor solteiro:

“EXECUÇÃO. BEM DE FAMÍLIA. AO IMOVEL QUE SERVE DE MORADA AS EMBARGANTES, IRMÃS E SOLTEIRAS, ESTENDE-SE A IMPENHORABILIDADE DE QUE TRATA A LEI 8.009/90.(57606 MG 1994/0037157-8, Relator: Ministro FONTES DE ALENCAR, Data de Julgamento: 10/04/1995, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJ 15.05.1995 p. 13410RSTJ vol. 81 p. 306)[27]

Da viúva sem filhos:

“Bem de família. Lei nº 8.009/90. Precedentes da Corte. 1. O estado civil de viúva não retira o bem da proteção da Lei nº 8.009/90, ainda mais neste feito, em que consta dos autos que a embargante reside no imóvel com os filhos. 2. Recurso especial não conhecido.(276004 SP 2000/0089924-0, Relator: Ministro CARLOS ALBERTO MENEZES DIREITO, Data de Julgamento: 19/03/2001, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJ 07.05.2001 p. 140 JBCC vol. 191 p. 215 RSTJ vol. 153 p. 140)[28]

De pessoa separada judicialmente:

“EXECUÇÃO. IMPENHORABILIDADE. IMÓVEL RESIDENCIAL. DEVEDOR SEPARADO JUDICIALMENTE QUE MORA SOZINHO. - Com a separação judicial, cada ex-cônjuge constitui uma nova entidade familiar, passando a ser sujeito da proteção jurídica prevista na Lei nº 8.009, de 29.03.90. Recurso especial não conhecido.(218377 ES 1999/0050307-4, Relator: Ministro BARROS MONTEIRO, Data de Julgamento: 19/06/2000, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJ 11.09.2000 p. 255LEXSTJ vol. 136 p. 111RDR vol. 18 p. 355RSTJ vol. 143 p. 385)[29]”.

Desse modo, denota-se que o legislador, ao utilizar a expressão “entidade familiar” não se referiu somente à família coletiva, mas também àqueles entes que a integram ou dela são remanescentes.

Destaque-se, nessa ocasião, julgamento da 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, em 19.08.1999, sendo Relator o Min. Luiz Vicente Cernicchiaro[30], que concluiu:

“[...] a Lei 8.009/90 não está dirigida a número de pessoas. Ao contrário – à pessoa. Solteira, casada, viúva, desquitada, divorciada, pouco importa. O sentido social da normal busca garantir um teto para cada pessoa. Só essa finalidade, data venia, põe sobre a mesa a exata extensão da lei. Caso contrário, sacrificar-se-á a interpretação teleológica para prevalecer a insuficiente interpretação literal”.

Assim, com a diversidade de posicionamentos adotados pelo Egrégio Superior Tribunal de Justiça, surgiu a necessidade da edição da súmula 364[31], com o objetivo de pacificar e garantir a aplicabilidade do entendimento do STJ com relação à matéria tratada em todos os graus de jurisdição.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Dois regimes permeiam a aplicação da proteção ao bem de família no arcabouço legal brasileiro: o voluntário e o legal.

Com o advento da lei n. 8.009/90, o instituto do bem de família legal passou a ter maior abrangência, levando os tribunais a estender sua aplicação às pessoas vivendo em união estável, às famílias monoparentais, às pessoas solteiras, viúvas e divorciadas, comprovando que a proteção da moradia da família não se trata mera aplicação de um dispositivo legal, mas de um esforço dos juristas a fim de garantir a efetivação dos princípios constitucionais fundamentais, beneficiando os destinatários da lei com a faculdade viver dignamente.

Convém salientar, o desfecho de ZILVETI:

O Brasil lidera verdadeira revolução silenciosa, impulsionada pelos tribunais, que vêm realizando o direito em sua concretude e atribuindo à lei o seu sentido social, deixando de lado a visão extremamente positivista e literal a que está acostumada a tradição jurídica brasileira[32].

Destarte, o Estado, através do Poder Judiciário, provou que é imprescindível garantir a todo ser humano, um mínimo de bens materiais para sua sobrevivência, ou seja, patrimônio mínimo, capaz de assegurar sua existência digna, uma vez que ao regular as mudanças da sociedade, assegurou a todos uma vida digna e tranquila, bem como, valorizou o amor, ética, respeito, sem perder vista ao princípio da dignidade da pessoa humana e do direito fundamental alusivo à moradia e a proteção da família.

 

REFERÊNCIAS

ASSIS, Araken de. Manual da execução. 13 ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Revistas dos Tribunais, 2010

AZEVEDO, Álvaro Villaça. Bem de família: com comentários à Lei 8.009/90. 6 ed. São Paulo: Atlas, 2012.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: ˂http://www.planalto.gov.br˃. Acessado em 26/10/2012.

BRASIL. Lei n. 8009 (1990). Dispõe sobre a impenhorabilidade do bem de família. Disponível em: ˂http://www.planalto.gov.br˃. Acessado em 26/10/2012.

BRASIL. Lei n. 10.406 (2002). Institui o Código Civil. Disponível em: ˂http://www.planalto.gov.br˃. Acessado em 26/10/2012.

BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 10 ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1999.

CREDIE, Ricardo Arcoverde. Bem de família: Teoria e Prática. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 8 ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.

FERREIRA, Gecivaldo Vasconcelos. A impenhorabilidade do imóvel residencial do devedor. Jus Navigandi, Teresina-PI, 18.07.2005. disponível em http://jus.com.br/revista/texto/7019 Acesso em 10 outubro 2012.

GAGLIANO, Pablo Stolze; FILHO, Rodolfo Pamplona. Novo curso de direito civil: direito de família. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2012. Vol. VI

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro. 9 ed. São Paulo: Saraiva, 2012. Vol. VI

JÚNIOR, Humberto Theodoro. Curso de direito processual civil. 47 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012. Vol II.

PASOLD, Cesar Luis. Metodologia da pesquisa jurídica: teoria e prática. 11 ed. Florianópolis: Conceito editorial/Milleniuum, 2008.

ZILVETI, Ana Marta Cattani de Barros. Novas tendências do bem de família. São Paulo: QuartierLatin, 2006.

 

 

 

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Sobre o autor
Sirio Vieira dos Santos Filho

Graduado em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí (2013), pós-graduando em Direito Público pela Escola Superior da Magistratura do Estado de Santa Catarina.

Informações sobre o texto

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Mais informações

Artigo científico publicado para a Graduação em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí - UNIVALI (2013).

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