RESUMO A responsabilidade civil como gerador de obrigação de reparar um dano causado por uma pessoa à outra, possui suas exceções nas excludentes do nexo causal ou ilicitude, sendo causas que isentam o autor da responsabilidade de reparar. A principal delas e mais comum, legitima defesa, apresenta em suas espécies uma peculiar definição de comportamento que, mesmo encarada como legítima defesa, não excluirá a responsabilidade de reparar o dano causado. Neste trabalho, abordaremos essa em destaque.
Palavras-chave: Responsabilidade Civil. Legitima Defesa Putativa. Excludentes. Isenção da responsabilidade civil
1 INTRODUÇÃO
A responsabilidade civil surgiu na necessidade de reparar danos decorrentes de condutas ilícitas por parte de pessoas em ofensas a outras. Com a evolução dos estudos da responsabilidade civil, notou-se que determinadas condutas, por se tratarem de exclusão de nexo causal, não ensejariam na efetiva necessidade de reparação do dano por conta do autor ao suposto ofendido. Sendo assim, o legislador se viu na necessidade de criar mecanismos para “defender” a atuação legítima do autor que por consequência viria a gerar um dano o outro — dano este, considerado, até então, uma espécie legítima e necessária, como último e inevitável meio.
Neste trabalho abordaremos uma exceção dentro de um dos gêneros mais comuns de exclusão da responsabilidade civil (legítima defesa), a espécie legitima defesa putativa, pela qual, como trataremos, não excluirá a responsabilidade.
2. BREVE RELATOS HISTÓRICOS
O dano como fato gerador da responsabilidade civil como é hoje, sempre existiu e, por consequência, a necessidade de se obter uma fórmula que fizesse com que a vítima desses danos pudesse ter mitigado os efeitos danosos dessa ação ou omissão por parte do autor da conduta volitiva e ilícita. Nesse contexto surge a ideia de responsabilizar esse autor, entretanto, a responsabilidade civil atual sofreu profundas modificações ao longo dos tempos.
A origem desse instituto nos remete ao Direito Romano que se fundava basicamente na ideia de vingança pessoal contra o autor da conduta ilícita, posteriormente, surgiu a figura do Estado como sendo uma espécie de autorizador dessas penas pessoais. Com a evolução do instituto da Responsabilidade Civil, a própria lei passou a tabelar, quantificar o quantum para a indenização, regulando o caso concreto. Percebe-se, então, que a obrigação de mitigar os efeitos danosos de uma ação ou omissão ilícita sempre existiram, entretanto, a forma dessa reparação é que sofreu profundas transformações ao longo dos tempos, em virtude da modernização da sociedade e as mais diversas possibilidades fatídicas do comportamento humano.
Antigamente, a ideia de reparação do dano era pautada na culpa por parte do autor da conduta geradora do dano, atualmente podemos dizer que a ideia de obrigatoriedade dessa culpa em sentido amplo foi superada, tendo em vista o surgimento da ideia da responsabilidade objetiva, onde não é necessário a culpa do autor, mas presume-se, em virtude dos riscos da atividade, que a conduta, por si só, já enseja a obrigação de reparar o dano.
Nesse contexto, verifica-se que a responsabilidade civil deixa de assumir uma postura estritamente reparadora e passa a assumir uma postura mais protetiva, de caráter preventivo, possibilitando a não ocorrência do dano e consequentemente maior segurança a sociedade atual.
Seguindo essa nova visão moderna da teoria objetiva ou teoria dos riscos, onde a culpa se torna prescindível diante da caracterização do fato gerador da responsabilidade civil, o Código Civil de 2002 tratou de acrescentar a responsabilidade objetiva, não deixando o caráter predominante subjetivista, mas mostrando uma evolução no que concerne a desconsideração da culpa como elemento indispensável, como vemos a seguir em seu artigo 927:
“Art 927.Haverá obrigação de reparar o dano, independente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem”.
No outro viés temos situações que excluem a responsabilidade pois as condutas são executadas sob o manto das excludentes de ilicitude. As excludentes de ilicitude reais excluem a ilicitude da conduta e por consequência também excluem a responsabilidade civil, sendo assim, a sentença absolutória que absolve o réu em virtude de alguma excludente de ilicitude exclui a possibilidade da vítima entrar com ação civil ex-delicto pedindo responsabilização na esfera cível.
Antes de tudo, entendamos o que seja a ilicitude:
3. ILICITUDE NO DIREITO BRASILEIRO
No Direito brasileiro, temos a ilicitude (ou ilicito penal) como crime ou delito, ou seja, descumprimento de um dever jurídico impostas por normas de direito público, que, em sua violação, sujeita o descumpridor a uma pena.
Nas palavras de Sanches²: Por ilicitude (ou antijuricidade) entende-se a relação de contrariedade entre o fato típico e o ordenamento jurídico como um todo, inexistindo qualquer norma permitindo, fomentando ou detrminando a conduta típica. Presume-se que toda conduta tiíca seja antijuríica, até prova em contrário Existem fatos jurídicos, mas não típicos, como por exemplo, a fuga de um preso, sem violência, grave ameaçã ou dano ao patrimîonio público.
O ilicito penal é um fator de desvirtuação do indivíduo que veio a cometêlo, levando-se a tomar caminhos longínquos da boa convivência harmoniosa moral social. Aqui, a ilicitude é contrária ao dever jurídico, resultando em violação as suas imposições (o que acarreta na violação de direito de outrem), vindo a causar, por consequência, lesão a bem alheio juridicamente tutelado.
Em razão de infinitas possibilidades de atuação humana, notou-se, em determinado ponto da existência humana, que existiam situaçoes que, de fato, legitimava a conduta de parecer estar cometendo um ilicito penal, mas, tê-lo como meio necessário para evitar a consumação de um outro, até então, as expressas no artigo 23 do Código Penal, sem desconsiderar, porém, a existência de justificantes fora do art. 23 (rol exemplificativo), v.g., o aborto permitido (art. 128), imunidades nos crimes contra a honra (art 142).
4. LEGITIMA DEFESA COMO EXCLUDENTE DA RESPONSABILIDADE CIVIL
As excludentes da responsabilidade civil são situações jurídicas em que a lei aparta ao agente o dever jurídico da reparação do dano. Cabe destacar, nesse sentido que as causas que excluem a responsabilidade civil são:
a
) Estado de necessidade b) Legítima defesa c) Exercício regular do direito d) Estrito cumprimento do dever legal e) Caso fortuíto ou de força maior f) Culpa exclusiva da vítima g) Fato de terceiro
Lembrando que os itens elencados de “a” até “d” são hipóteses de exclusão de ilicitude, enquanto as três últimas constitutem exclusão do nexo causal.
4.1 Legítima Defesa
Para Sanches³ “trata-se de uma reação contra uma agressão injusta, independentemente de esta ser evitável ou não”. Não obstante, afirma, sobre o tema, Bettiol4, que a legítima defesa “na verdade corresponde a uma exigência natural, a um instinto que leva o agredido a repelir a agressão a um seu bem tutelado, mediante a lesão de um bem do agressor”, exibindo assim o caráter primitivo, instintivo e natural do ser humano como reação. Torna-se, por conseguinte, inexigível da raça humana conduta contrária.
Podemos, ainda, dividir três tipos de condutas humanas caracterizadora da legitimidade, sendo a legítima defesa gênero, e estas, espécies: real; sucessiva; recíproca e, a qual nos interessa, putativa.
Legitima defesa real ocorre quando a própria vítima defende-se de maneira moderada de agressão injusta, atual ou iminente, v.g, João está ferindo bem tutelado por Pedro, e este, por si próprio, defende o bem, de maneira proporcional a agressão.
Legítima defesa sucessiva foi criada para que o agresso inicial também tenha o direito de resposta, direito de defender-se quando o agredido criar excesso na sua defesa, v.g, Pedro (primeiro agressor) atinge João (primeiro agredido) com uma paulada nas costas, João, por sua vez, visualizando que Pedro é bem mais fraco, quebra 5 tábuas em cima de Pedro, criando explicitamente excesso na respulsa da agressão, e concedendo o direito a legítima defessa sucessiva para Pedro (primeiro agressor e agora na figura de agredido).
Legítima defesa recíproca para alguns doutrinadores é um ponto ilusionário, longe de aplicação e de conceituação aceitável. É como se pudessemos responder a possibilidade de existir uma legítima defesa de legítima defesa. Para a maioria, essa possibilidade está descartada, já que os doutrinadores entendem que é ilegítimo que isso aconteça, uma vez que os dois participantes não são considerados defensores e sim, ambos, agressores recíprocos.
Contudo, existem espécies que são chamadas de descriminantes putativas, que são aquelas em que o agente crê que está agindo sob o manto de alguma excludente de ilicitude, mas é algo fantasiado. Equivocado, supõe, nas circunstancias , existir ou agir nos limites de uma descriminante ou, ainda, também iludido, supõe presente os pressupostos fáticos da justificante. Quando isso acontece, estamos diante de um erro de tipo ou de proibição, no Direito Penal, quando o agente age impelido por supor que se encontra justificado por alguma excludente de ilicitude, ou seja, por alguma descriminante putativa, a ilicitude do fato é excluida na esfera penal.
Sendo assim, teremos então a:
5. LEGÍTIMA DEFESA PUTATIVA COMO CAUSA DE RESPONSABILIDADE CIVIL
Legítima defesa putativa é a também denominada legítima defesa ficta. A situação de perigo existe tão somente no imaginário daquele que supõe repelir legitimamente um injusto. Constitui descriminante putativa ou seja, o agente "supõe a ocorrência de uma excludente de criminalidade que, se existisse, tornaria sua ação legítima".6 Por conseguinte, a ação do que se supõe agredido é revestida de antijuridicidade, em divergência daquele que age em legítima defesa real. Afirma Jescheck7 que "o fato praticado sob a suposição errônea de uma causa de justificação continua, pois, sendo um fato doloso"8.
Por agressão traz Bitencourt que “define-se a agressão como a conduta humana que lesa ou põe em perigo um bem ou interesse juridicamente tutelado”(grifos do autor).
Sendo assim, percebe-se que a legítima defesa exclui a antijuricidade da ação de quem repele a agressão injusta. Por outro lado, na putativa, por se tratar de erro sobre a situação fática (erro de tipo), pode ser motivo justificante através da eliminação da culpabilidade do agente ou causa de diminuição de pena, conforme expõe Bittencourt9:
“A legítima defesa putativa supõe que o agente atue na sincera e íntima convicção da necessidade (grifo do autor) de repelir essa agressão imaginária (legítima defesa subjetiva). [...] No entanto, se esse erro, nas circunstâncias, era inevitável, exculpará o autor; se era evitável diminuirá a pena, na medida de sua evitabilidade.”
Posto isso, quando o erro for inevitável, não podendo exigir-se do indivídio conduta diverso, caracteriza-se a exclusão da culpa do autor e, se evitável, o injusto ficto atua como causa de diminuição de pena.
Alguns intelectos podem ser levados a acreditar que a exclusão da culpa penal acarreta na exclusão da culpa civil, ou seja, na exclusão da responsabilidade de indenizar, entretanto, a responsabilidade civil e penal não se confundem, mesmo a responsabilidade penal sendo excluída, ainda permanecem os efeitos desse ato perante a esfera cível. Ensejando assim responsabilização em face dos danos
ocorridos à vítima.
A breve explicão se dá pelo fato de que a responsabilidade penal dirige-se a bem jurídicos tutelados (vida, liberdade, etc), enquanto a responsabilidade civil recai de forma especial sobre o patrimônico, seja ele do responsável pelo dano, a quem terá o dever de indenizar, seja quem sofreu dano em seus patrimônios ou lesão a sua moral, honra, estética, etc.
Se o ato praticado em legítima defesa for excessivo, no que vem a ser excesso, torna-se-á contrário ao direito. Porém, pode o agente alegar e provar que o excesso resultou de alguma situação legítima que o levou a tal (distúrbio, terror, medo, pânico), para tentar se livrar da aplicação penal. De outro modo, no âmbito civil, o excesso da legítima defesa, por negligência ou imprudência, configura as situações dos artigos. 927, p. único; 929 e 930..
“Art. 927 (...) Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.
Art. 929. Se a pessoa lesada, ou o dono da coisa, no caso do inciso II do art. 188, não forem culpados do perigo, assistir-lhes-á direito à indenização do prejuízo que sofreram.
Art. 930. No caso do inciso II do art. 188, se o perigo ocorrer por culpa de terceiro, contra este terá o autor do dano ação regressiva para haver a importância que tiver ressarcido ao lesado.
Parágrafo único. A mesma ação competirá contra aquele em defesa de quem se causou o dano (art. 188, inciso I).”
Também leciona Andreas von Tuhr que “comete un acto ilícito quien actúa en un estado supuesto (putativo) de legítima defensa o, por juzgar la agresión más grave de lo que era, usa un medio de defensa demasiado fuerte (exceso en la legítima defensa). Por consiguiente, queda expuesto él mismo a la legítima defensa de la parte contraria y responde por el daño, a no ser que se hallase en erro excusable respecto de los requisitos de la legítima defensa’.
Conclui-se, então, que da legítima defesa putativa, não tão somente os excessos da legítima defesa, mas o próprio erro de tipo, acarreta responsabilidade ao agente em indenizar quem da defesa sofreu. Entendimento já explicado no sentido de que o erro de tipo e os excessos não excluem a responsabilidade, tendo em vista que na putativa, o agente acreditava estar em determinada situação, enquanto aquele que sofrera do dano, não tinha previsão nenhuma de atuação contra o agente, tornando-se viável a responsabilidade em reparar.
Segundo o prof. Pablo Stolze, a legítima defesa putativa não isenta o seu autor da obrigação de indenizar, pois defesa que, mesmo aparentemente legítima, não exclui o caráter ilícito da conduta, interferindo apenas na culpabilidade penal. Ou seja, a conduta não deixa de ser ilícita, gerando apenas o reconhecimento de uma causa excludente da culpabilidade, influindo, portanto, somente na esfera penal. No cível, a vítima será ressarcida integralmente pelo dano sofrido pelo agente.
Acertado posicionamento do Código Civil em responsabilizar aquele que veio a causar dano a outrem em quaisquer aspectos, fundado apenas nas hipóteses do erro de tipo. Não deixando abandonado o lesionado, por conta das figuras abstratas que podem abordar a convivência humana. Notam-se aqui, com tudo isso e de forte modo, as diferenças explícitas no que tange a responsabilidade penal e civil. Todas voltadas a tutelar bens jurídicos específicos.
Isso demonstra, além de tudo, a evolução do Direito na busca da regulamentação do comportamento humano, comportamento esse que visa, acima de tudo, o bem-estar social, boa convivência e a paz.
Referências
3 SANCHES CUNHA, Rogério. Código Penal Para Concursos, 6ª ed. Editora JusPODIVM, 2013, p. 74
4 BETTIOL, Giuseppe. Direito Penal. Trad. Paulo José da Costa Jr. e Alberto Silva Franco. 2ª ed. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1977. v. 1. p. 417
5 FARIAS, Érico, http://fariaselima.blogspot.com.br/2010/10/direito-penaldescomplicado-o-instituto.html#comment-form
6 Bitencourt, Cezar Roberto, Tratado de Direito Penal, Parte Geral I. São Paulo, 15ª edição, Saraiva, 2010.
7 JESCHECK, H. H.
8 COÊLHO, Bruna Fernandes. Legítima defesa putativa como causa de justificação exculpante. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 15, n. 2686, 8 nov. 2010. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/17781>.
9 BITENCOURT, Cezar Roberto. Loc. cit