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Mitigando os riscos do decisionismo judicial no neoconstitucionalismo

19/10/2015 às 13:23
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Os problemas oriundos da perspectiva neoconstitucional exigem que se encontrem maneiras de minimizar ou reverter os efeitos negativos que podem ser gerados nesse quadro de valorização desmedida das normas constitucionais.

1 INTRODUÇÃO             

Na esteira das redefinições que a moderna teoria neoconstitucional tem proporcionado, busca-se focar a problemática relativa ao subjetivismo judicial, derivado da concepção progressista propensa a incutir no Poder Judiciário um dever além da singela aplicação do silogismo judicial na resolução dos casos concretos.

E maiores poderes, num ordenamento constitucional impregnado de cláusulas abertas capazes de permitir mais de uma interpretação, implica maior responsabilidade, de sorte que o presente artigo intentará, justamente, fornecer alguns parâmetros para abrandar os riscos oriundos de um exercício jurisdicional mal conduzido.


2 DESENVOLVIMENTO

A remodelação da função jurisdicional, que modifica o papel do juiz ao torná-lo um dos protagonistas do processo de criação do direito e concede-lhe o mister de aferir o sentido de cláusulas abertas e optar entre possíveis soluções, merece, certamente, ser aplaudida. Não se pode, entretanto, resvalar em devaneios e acreditar que tais mudanças paradigmáticas representam verdadeira panaceia.

O neoconstitucionalismo e seu produto, a constitucionalização do Direito, não são sem riscos. Longe disso, eles encerram alguns problemas, e é um deles, em especial, que se pretende destacar: os riscos do decisionismo judicial, o qual advém da compreensão do Direito a partir da Constituição, documento repleto de normas genéricas e abstratas de baixa densidade normativa, que podem ser objeto de múltiplas interpretações.

 A constitucionalização do ordenamento, em sua acepção atrelada ao efeito irradiante das normas constitucionais sobre todo o ordenamento jurídico, tem seus pontos positivos. De fato, o enaltecimento dos princípios, ao aproximar o Direito da Moral, propicia a realização dos postulados maiores da justiça e da dignidade, afastando o tecnicismo frio das regras e conferindo ao sistema jurídico maior flexibilidade e dinamismo. Nessa esteira:

O neoprocessualismo  procura construir técnicas processuais voltadas à promoção do direito fundamental à adequada, efetiva e célere tutela jurisdicional. Para tanto, é indispensável enfrentar o problema do fetichismo das formas. O apego exagerado à forma cria obstáculos não razoáveis à utilização do processo como mecanismo de promoção direitos fundamentais (CAMBI, 2011, p. 116).

Tal fenômeno se vincula ao pragmatismo e ao moralismo jurídico, que se contrapõem ao positivismo clássico e constituem fortes fatores de impulsão ao ativismo judiciário, na medida em que o fundamentalismo axiológico eleva a ideia de que existe uma ordem de valores fundamentais que o ordenamento jurídico deve respaldar, sob a rédea de magistrados capazes de guiar o direito positivo a serviço de diretrizes primordialmente principiológicas. Reforça Ramos (2010, p. 135 e 137):

Para tanto, deve se valer das ambiguidades, contradições e insuficiências de que os textos normativos são permeados e, principalmente, do controle de constitucionalidade, que lhe permite recusar validade a atos legislativos a partir de parâmetros normativos altamente flexíveis e que se prestam a manipulações argumentativas de toda a espécie. Não é preciso muito esforço para perceber (e a jurisprudência de valores apenas confirma isto) que a atração exercida pelo idealismo axiológico fatalmente conduz, em algum momento e com maior ou menor elastério, ao rompimento das barreiras que o direito positivo, constitucional e infraconstitucional, impõe aos órgãos oficialmente incumbidos de sua aplicação [...] Se no positivismo clássico a interpretação se submete à vontade do legislador, a consequência do pragmatismo e do moralismo jurídico é o ativismo subjetivista do intérprete aplicador; amplo e explícito no primeiro caso, circunscrito e implícito, no segundo.

No entanto, “nem tudo são flores”. A necessidade de interpretar a lei a partir do texto constitucional eleva o risco de subjetividade das decisões judiciais, o que é, em tese, compreensível quando se priorizam as normas constitucionais – de textura aberta e vaga – em face do restante da legislação.

Por conseguinte, muitos juízes passam a deparar com uma atípica situação. Encantados com os recentes estudos sobre o neoconstitucionalismo e suas derivações, confiam eles ser possível fazer, no exercício de sua função, o que bem entenderem, desde que o objetivo seja a busca pela concretização de princípios constitucionalmente preconizados. Emerge um decisionismo judicial messiânico, que introduz nos magistrados a crença de que se capacitam para julgar como queiram. Nesse diapasão, comenta Daniel Sarmento (2007, p.144) que:

Acontece que muitos juízes, deslumbrados diante dos princípios e da possibilidade de, através deles, buscarem a justiça – ou o que entendem por justiça –, passaram a negligenciar do seu dever de fundamentar racionalmente os seus julgamentos. Esta “euforia” com os princípios abriu um espaço muito maior para o decisionismo judicial. Um decisionismo travestido sob as vestes do politicamente correto, orgulhoso com os seus jargões grandiloquentes e com a sua retórica inflamada, mas sempre um decisionismo. Os princípios constitucionais, neste quadro, converteram-se em verdadeiras “varinhas de condão”: com eles, o julgador de plantão consegue fazer quase tudo o que quiser.

O resultado é o abandono de uma sólida fundamentação racional. Frente a uma vasta gama de conceitos indeterminados ou de disposições de fluido conteúdo, podem-se, em tese, surgir infinitas interpretações, o que culmina por afetar importantes valores do Estado Democrático de Direito, como a justiça e a segurança. Ensina Barroso (2009, p. 392):

O uso abusivo da discricionariedade judicial na solução de casos difíceis pode ser extremamente problemático para a tutela de valores como segurança e justiça, além de poder comprometer a legitimidade democrática da função judicial. Princípios como dignidade da pessoa humana, razoabilidade e solidariedade não são cheques em branco para o exercício de escolhas pessoais e idiossincráticas. Os parâmetros da atuação judicial, mesmo quando colhidos fora do sistema estritamente normativo, devem corresponder ao sentimento social e estar sujeitos a um controle intersubjetivo de racionalidade e legitimidade.

Isso tudo é porta aberta para decisões judiciais perigosamente subjetivas, dependentes do alvedrio do magistrado do momento. Prática desvirtuada que, se consumada, viola a democracia e a separação dos Poderes, já que juízes não eleitos passam a exarar suas decisões com lastro em seus valores e sentimentos pessoais, deixando em segundo plano as opções normalmente mais criteriosas do legislador.

Cabe questionar: revestem-se os magistrados de legitimidade democrática para suprir tarefas originariamente delegadas aos outros Poderes? Cabe a eles imiscuir-se no jogo político? Deve o Judiciário abandonar seu neutro papel de “boca da lei” e envolver-se nos projetos de transformação social? Quais os limites da atuação desse Poder frente ao princípio constitucional da separação dos Poderes? Como controlar tamanhas possibilidades de atuação?

Indaga-se, pois, se tal proatividade converte o juiz em legislador, de modo a igualar-se, neste ponto, a função jurisdicional à legislativa. Não há espaço para elucidar todas essas interrogações, mas é importante dizer, para que se frise a complexidade do tema ora trabalhado, que tachar de “antidemocrática” a elevação do Judiciário sobre o Legislativo nem sempre denota um comentário razoável, porquanto o ativismo judicial, de modo algum, simboliza irrestritamente a superioridade do primeiro sobre o segundo, mas sim um aspecto do bem equilibrado sistema de controle recíprocos, a saber, o checks and balances (CAPPELLETTI, 1993).

Não se pode deixar de ressaltar que a constitucionalização do Direito, em sua acepção ligada ao efeito expansivo das normas constitucionais, cujas regras e princípios banham todo o sistema jurídico, tem efeitos mais benéficos que deletérios. A aplicabilidade direta e imediata da Constituição a diversas circunstâncias, a declaração de inconstitucionalidade das normas incompatíveis com a Constituição e a interpretação das normas infraconstitucionais conforme o Texto Maior, resultado da nova hermenêutica constitucional, alimentam as promessas de realização dos direitos fundamentais, inerentes às potencialidades do modelo de Estado constitucionalmente delineado.

Sem embargo, é inequívoco que a constitucionalização exacerbada pode gerar consequências negativas, tanto de natureza política, consignada no esvaziamento do poder pelas maiorias, dado o engessamento da legislação ordinária, como de natureza metodológica, em razão do decisionismo judicial analisado.

Essa primeira consequência traz ínsita a inferência de que constitucionalizar em excesso pode ser antidemocrático, por retirar do povo o direito de decidir sobre seu próprio destino. Com efeito, constitucionalizar uma matéria implica subtraí-la do debate legislativo, inclinado, em tese, à representação popular. Isso dificulta o governo da maioria, que não poderá manifestar-se através do processo legislativo ordinário, mas sim por meio de emendas constitucionais, não facilmente manejáveis em um país como o Brasil, em que avultam os limites materiais ao poder de reforma.

Endossando a crítica ao potencial contramajoritário da jurisdição constitucional, que, mal conduzida, é capaz de vetar os limites conformativos do legislador, assinala Pires (2011, p. 37-38):

(...) levada ao extremo, essa excessiva ubiquidade da Constituição acaba conduzindo a uma constitucionalização total da vida. A legislação passa a ser mera continuação dos desígnios de um constituinte onisciente, que tudo previu; e o legislador, em vez de mover-se em um espaço de conformação, torna-se apenas o executor de decisões pré-concebidas. A Constituição, por sua vez, deixa de ser moldura para ser genoma: em lugar de demarcar o espaço legítimo do processo majoritário, a Carta passa a ser vista, ela própria, como resposta a todas as perguntas, de modo que todo o resto é mero desenvolvimento do que ali se determina. Essa é a Constituição-Verbo¸que tudo criou e à qual tudo se reconduz. Diante dela, o espaço do legislador é mínimo, se é que de fato existe.

De toda sorte, os problemas decorrentes da nova perspectiva sob a qual o neoconstitucionalismo trata a jurisdição, assentados, em especial e no que aqui nos interessa, nas consequências da intensa subjetividade das decisões, instam que se encontrem maneiras de minimizar ou reverter os efeitos negativos que podem ser gerados nesse quadro de valorização das normas abertas e imprecisas da Constituição.

Como se viu, as problemáticas oriundas do neoconstitucionalismo, consistentes, em resumo, nos riscos de avultarem decisões casuísticas ou contingencias, exigem que o estudioso do tema obtenha modos de enfrentar os graves danos que uma visão desarrazoada do constitucionalimo hodierno é capaz de infligir às instituições, porquanto o exercício apriorístico dos poderes imanentes à novel função jurisdicional pode converter-se em encargo muito caro a ser suportado pelo regime constituído.

No intuito de conferir legitimidade à função jurisdicional e evitar os abusos possíveis de serem produzidos por magistrados incautos – e não todos –  certos de seu potencial de discernir o justo e o injusto, doutrina e jurisprudência têm destacado o relevante papel que pode e deve assumir a argumentação jurídica, a qual corresponde, em suma, ao dever de os juízes atingirem uma fundamentação racional consistente no momento em que são proferidas suas decisões, ou seja, cuida-se de tarefa funcional ligada a um controle de justificação de julgados. Ensina Pupe da Nóbrega (2014, p. 29-31 e 45):

A teoria da argumentação jurídica pretende ter um importante papel na fundamentação das escolhas feitas pelo juiz quando da interpretação levada a cabo. (...) É inegável que nesse cenário que se desenha, o papel mais ativo exercido pelo Judiciário deverá trazer consigo um ônus argumentativo que o conforme com a separação de poderes e com a democracia, justamente pra que os juízes não sejam vistos como “fora de controle” (...) Em vez de silogismos subsequentes uns aos outros por inferências necessárias, “é o esforço da persuasão e do convencimento que estruturam e servem de base às construções jurídico-decisórias”. É mais na esfera do razoável e do adequado do que na esfera do puramente lógico que a metódica atual passa a ser visualizada. Assim sendo, o principal objeto de análise da legitimidade de um provimento jurisdicional será, exatamente, o discurso jurídico que a alicerça.

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Não são os juízes senhores da razão. Decisão destituída de razoáveis argumentos é decisão abusiva, que viola o Estado Democrático ao macular a credibilidade funcional que o Judiciário precisa possuir. Impende, assim, que os magistrados decidam de modo racional e consequente, estabelecendo, com base em sólidos argumentos, o conteúdo de normas abertas e convencendo, mediante sua dialética, que certos valores sem conceito determinado exigem, em dado caso, prioritária proteção.

O Poder Judiciário não é soberano para estabelecer, a seu capricho, o conteúdo de sentido das disposições criadas pelo legislador constituinte ou ordinário. Se, por exemplo, houve escolha dentre várias possíveis, há de haver bons motivos para as recusas e para a aceitação, pois, “no plano moral, já não se aceita, sem objeção profunda, que qualquer decisão emanada da autoridade competente seja legítima. Cada vez mais se exige sua justificação racional e moral, vale dizer, sua justiça intrínseca” (BARROSO, 2009, p. 340-341).

A legitimação da função jurisdicional dá-se pela razoabilidade da decisão e da fundamentação do julgador. Somente uma decisão racional é capaz de permitir uma nítida distinção entre o magistrado que julga por suas idiossincrasias e o que julga com base na idoneidade jurídica de seus fundamentos. Imprescindível, logo, que juízes e tribunais adotem certo rigor dogmático e reconheçam a imposição argumentativa na aplicação de regras revestidas de plástico conteúdo.

Neste ponto, é preciso esclarecer revelar-se indiscutível certa dose de discricionariedade e criatividade na interpretação judiciária do direito legislativo, na medida em que é apanágio da linguagem a existência de polissemias, geradoras de ambiguidades e incertezas a serem solvidas pelo exegeta, inexistindo, desse modo, com raríssimas exceções, textos normativos absolutamente imbuídos de uma só significação. Nesse tocante, ensina Cappelletti (1993, p. 21):

Especialmente no fim do século passado e no curso do nosso, vem se formando no mundo ocidental enorme literatura, em muitas línguas, sobre o conceito de interpretação. O intento ou o resultado principal desta amplíssima discussão foi o de demonstrar que, com ou sem consciência do intérprete, certo grau de discricionariedade, e pois de criatividade, mostra-se inerente a toda interpretação, não só à interpretação do direito, mas também no concernente a todos os outros produtos da civilização humana, como a literatura, a música, as artes visuais, a filosofia etc. Em realidade, interpretação significa penetrar os pensamentos, inspirações e linguagem de outras pessoas com vistas a compreendê-los e – no caso do juiz, não menos que no do musicista, por exemplo – reproduzi-los, “aplicá-los” e “realizá-los” em novo e diverso contexto, de tempo e lugar.

De qualquer sorte, entretanto, os critérios de atuação judicial devem harmonizar-se com o sentimento social e com a possibilidade de controle de racionalidade e legitimidade, sendo possível destacar alguns parâmetros a serem seguidos, preferencialmente, pelos intérpretes, tais como a priorização da lei na hipótese de ter havido manifestação inconteste e válida do legislador, bem como a priorização da regra onde o constituinte ou o legislador eventualmente tenha atuado mediante a elaboração de um preceito objetivo descritivo.

Isso impede que, nas ocasiões em que tenda ao inequívoco o significado da linguagem, deem os magistrados à lei um significado que esta, originariamente, não vislumbrou. Nessa visão,

A doutrina pós-positivista tem enfatizado, com inteira razão, a importância e a força normativa dos princípios. Contudo, esta valorização não pode ser realizada ao preço do menoscabo em relação às regras. Estas, por definirem com maior precisão tanto o seu campo de incidência como as consequencias jurídicas da sua aplicação, são extremamente importantes, não só porque salvaguardam a segurança jurídica do cidadão e coíbem o arbítrio do aplicador, como também porque permitem o funcionamento mais ágil e eficiente da ordem jurídica. Imaginem o caos que seria se, por exemplo, em cada ação cível, o juiz pudesse arbitrar, com base nos princípios da ampla defesa e da celeridade processual, qual o prazo adequado para a apresentação da contestação. Ou como seria temerário permitir aos guardas de trânsito que estabelecessem o valor da multa devida para cada infração, à luz das peculiaridades de cada caso e do princípio da proporcionalidade. Simplesmente inviável (SARMENTO, 2007, p. 146-147).

A tarefa de legislar é do Legislativo: eis um truísmo que convém, incessantemente, proclamar. Devem-se respeitar as escolhas feitas por esse Poder quando obedecidas as regras constitucionais e as possibilidades de razoável delimitação de sentido por meio de fluidos enunciados. A convicção acerca da legitimidade que pode ter o Judiciário em inúmeras circunstâncias, especialmente nesse cenário de influências neoconstitucionais, não constitui referendo para atuações imprudentes e disfuncionais de sobrepujamento do legislador, porquanto, saliente-se,

A função de criar normas jurídicas, instituindo direitos e obrigações, foi atribuída pela Constituição, predominante e preferencialmente, ao Poder Legislativo. Ainda que, presentes determinados pressupostos, possam os outros Poderes exercer competências normativas ou criadoras do Direito em concreto, devem eles ceder à deliberação legislativa válida. Nesse passo, a avaliação da validade não pode tornar-se uma forma velada de o magistrado substituir as escolhas políticas do legislador pelas suas próprias. Não cabe ao Judiciário declarar a invalidade de norma que lhe pareça a melhor ou a mais conveniente. A declaração de inconstitucionalidade deve ser sempre a última opção, preservando-se o ato que seja passível de compatibilização com a ordem constitucional, ainda quando pareça, ao juiz, equivocado do ponto de vista político. Isso é o que decorre do princípio da presunção de constitucionalidade dos atos do Poder Público, escorado na separação dos Poderes (BARROSO, 2009, p. 393).

É importante dizer que os cuidados de que se fala neste texto não intentam desprezar a aplicação dos princípios e resgatar o modelo formalista da concepção mais fria do positivismo, mas sim enfatizar a necessidade de alcançar maneiras de amainar alguns vícios em que anda desbocando a cega visão de muitos sobre o fenômeno do neoconstitucionalismo.

A ideia da argumentação jurídica e da racionalidade prática volta-se, nesse contexto, à busca por um debate aberto, franco e dinâmico, em contraposição ao pensamento do direito com fulcro no individualismo da atuação indiferente do intérprete. O exercício argumentativo tange, assim, à possibilidade de todos os envolvidos na querela jurídico-processual falarem e serem ouvidos, prevalecendo a persuasão e o diálogo em detrimento da imposição e do monólogo. Como ensina Santos (2007, p.273), “a inclusão dos atores sociais na seara jurídica faz com que o Poder Judiciário tenha a validação necessária para agir politicamente”.

Não se olvida a relevância de perseguir o resultado justo, o qual, porém, não será legítimo se desassociado de um provimento racional, tal como se dá quando a justiça alcançada é a proveniente do decisionismo do intérprete, e não do que supõe a comunidade jurídica geral sobre o ideal de justiça, conceito, no todo, dificílimo de determinar.

As decisões adotadas devem, assim, ser devidamente justificadas, no afã de demonstrar não só aos litigantes, mas à sociedade por inteiro, que o resultado atingido é o mais conveniente e idôneo à ordem jurídica e às nuances da hipótese em comento. A justificação das decisões judiciais, não custa rememorar, constitui pressuposto de legitimidade da própria função jurisdicional na seara do Estado Democrático, não apenas, portanto, requisito formal de validade. Sob essa ótica, sublinha Neves (2010, p. 71):

Sob o ponto de vista político a motivação se presta a demonstrar a correção, imparcialidade e lisura do julgador ao proferir a decisão judicial, funcionando o princípio como forma de legitimar politicamente a decisão judicial. Permite um controle da atividade do juiz não só do ponto de vista jurídico, feito pelas partes no processo, mas de uma forma muito mais ampla, uma vez que permite o controle da decisão por toda a coletividade.

O cuidado com a fundamentação deve ser proporcional ao grau de abertura da norma objeto da interpretação, na medida em que, quanto mais uma decisão abranger algum espaço de valoração subjetiva do intérprete, maiores devem ser os cuidados para alcançar um condigno provimento. Em outras palavras, “quanto mais vaga a lei e mais imprecisos os elementos do direito, mais amplo se torna também o espaço deixado à discricionariedade nas decisões judiciárias” (CAPPELLETTI, 1993, p 42).

Nesse itinerário dissertativo, aflora uma série de questionamentos. Como controlar a atuação de juízes, a cada dia, mais investidos de imensas competências? Como crer na vigência de um Estado Democrático de Direito quando se convive com Poderes democráticos amiúde inertes e com um Poder de potencial antidemocrático tão atuante?

É complexa a resposta. Nos limites do escopo aqui traçado, sugere-se: combate-se a privação da legitimidade democrática do Judiciário mediante a busca incessante por sua democratização, para cujo alcance, neste particular, enfatiza-se o valor do princípio do contraditório, tema que, felizmente, já há um tempo, tem merecido um tratamento mais compatível com sua extrema riqueza.

 Realmente, se, por vários anos, no Brasil e no estrangeiro, os estudos a respeito do princípio do contraditório, consistente, para Theodoro Jr. (2008, p.31-32), “na necessidade de ouvir a pessoa perante a qual será proferida a decisão, garantindo-lhe o pleno direito de defesa e de pronunciamento durante todo o curso do processo”, miraram seu foco quase exclusivamente para a seara processual, hoje é possível dizer que não são poucas as atenções que uma de suas mais importantes virtudes – a de legitimar o debate no litígio submetido à análise do Estado-Juiz, na busca pela plena materialização do conteúdo axiológico inserido no âmago do Estado Democrático de Direito – tem recebido.

A dialética, o confronto isonômico consignado na igualdade de armas e o direito à informação e à participação hão de ser prestigiados, pois, tendo em mãos tantos poderes, a atividade jurisdicional precisa, afora uma boa argumentação, ser subserviente a certas diretivas principiológicas.

A propósito, o instituto da intervenção de terceiros, no processo civil brasileiro, e a figura do amicus curiae, particularmente presente na jurisdição constitucional, constituem bons exemplos que valorizam o confronto democrático mencionado e, por conseguinte, traduzem fidedigna expressão do princípio do contraditório. Quanto ao amicus curiae, consolidado no art. 7º, §2º, da Lei 9.868/99, destaca-se voto do Ministro Celso de Mello na ADI 2.130-MC/SC:

 [...] a admissão de terceiro, na condição de amicus curiae, no processo objetivo de controle normativo abstrato, qualifica-se como fator de legitimação social das decisões da Suprema Corte, enquanto Tribunal Constitucional, pois viabiliza, em obséquio ao postulado democrático, a abertura do processo de fiscalização concentrada de constitucionalidade, em ordem a permitir que nele se realize, sempre sob uma perspectiva eminentemente pluralística, a possibilidade de participação formal de entidades e de instituições que efetivamente representem os interesses gerais da coletividade ou que expressem os valores essenciais e relevantes de grupos, classes ou estratos sociais”.

No mesmo sentido, têm adquirido relevância as audiências públicas, inclusive no Supremo Tribunal Federal, como maneira de contribuir para a participação da opinião pública informal nos processos decisórios dos Tribunais e, consequentemente, amainar os questionamentos atinentes à legitimidade democrática do Judiciário. Assim:

A previsão dessa figura processual na Corte é uma ampliação procedimental (assim como a previsão da audiência pública) que valoriza a participação da sociedade civil organizada e que tem potencialidade para atenuar os problemas de ausência de legitimidade democrática nas decisões do STF. Assim, a possibilidade de participação como amicus curiae na jurisdição constitucional é um modo de ocupação formal da esfera pública pela sociedade civil e, por isso, deve ser equilibrada com outras tantas instâncias disponíveis na esfera pública informal, igualmente propícias à participação social à mobilização cívica (SOARES, p. 200).

Impõe-se ao Poder Judiciário obediência à superioridade da democracia. Hermetismo e tecnicismo, inerentes à estrutura judicial, não mais condizem com um ambiente em que os cidadãos envolvidos em conflito desejam participar ativamente do jogo que arbitra seus interesses, não sendo à toa a escolha desse Poder como o último amparo dos valores reputados oprimidos.

A esse respeito, Garapon (1999, p. 227) identifica a existência de nova concepção de Estado, sugerindo que “se no século XIX, da ordem liberal, houvera preponderância do Legislativo, e no século XX, sob a égide da Providência, foi a vez do Executivo, o século XXI caminha para ser a supremacia do Judiciário”.

O Judiciário do século XXI enfrenta uma pesada rotina, e, à proporção que se expandem suas prerrogativas, crescem seu poder e sua influência nas deliberações da coletividade. A indispensável legitimidade de sua atuação demanda transparência, fiscalização, certo grau de abertura e excelente argumentação decisória, ideias que o princípio do contraditório tanto absorve como irradia.

Ademais, a noção de democracia não pode se limitar à ideia de maioria, pois sua concepção volta-se, igualmente, à participação e à liberdade, conceitos umbilicalmente ligados ao contraditório. Divagando de maneira aprofundada sobre o tema, adverte Barroso (2009, p.286):

Onde estaria o fundamento para o Judiciário sobrepor sua vontade à dos agentes eleitos dos outros Poderes? A resposta já está amadurecida na teoria constitucional: na confluência de ideias que produzem o constitucionalismo democrático. Nesse modelo, a Constituição deve desempenhar dois grandes papéis. Um deles é assegurar as regras do jogo democrático, propiciando a participação política ampla e o governo da maioria. Mas a democracia não se resume ao princípio majoritário. Se houver oito católicos e dois muçulmanos em uma sala, não poderá o primeiro grupo deliberar jogar o segundo pela janela, pelo simples fato de estar em maior número. Aí está o segundo grande papel de uma Constituição: proteger valores e direitos fundamentais, mesmo que contra a vontade circunstancial de quem tem mais votos.

Em paralelo a esse contexto de enaltecimento da participação das partes nos processos de resolução de seus conflitos, cumpre assinalar que o direito material, igualmente, tem sofrido os influxos advindos da hodierna maneira de enxergar o princípio do contraditório. De fato, corolário dessas tendências é a teoria dos deveres anexos, laterais ou secundários, que tem ganho relevo no campo do direito das obrigações, inclinada a alimentar o processo de colaboração entre as partes, sem o qual as controvérsias oriundas das relações obrigacionais por elas firmadas dificilmente alcançarão efetiva solução (TARTUCE, 2010, p. 213)

O princípio do contraditório, nessa moderna visão, não deve operar-se apenas sob o aspecto vertical, a saber, a partir da relação firmada entre o Estado-juiz e os jurisdicionados, mas, sobretudo, sob o aspecto horizontal, consubstanciado na instigação à solidariedade entre esses últimos na resolução pacífica dos compromissos que assumem.

Tal conduta de incentivo à cooperação, ademais, culmina por conferir à atividade jurisdicional uma maior legitimação, porquanto é cediço que o Judiciário justifica seu mister diante do Estado Democrático de Direito a partir da medição de seu êxito em proferir um provimento decisório fidedigno à vontade dos litigantes, maiores interessados num resultado solucionador justo e mais capacitados a alcançá-lo.

Por derradeiro, convém assinalar que as premissas teóricas imprimidas pelo neoconstitucionalismo ocasionaram uma redefinição da doutrina da separação dos Poderes, não mais se coadunando com o constitucionalismo moderno uma concepção estrita da sistemática de repartição de funções entre Judiciário, Legislativo e Executivo.

Em que pese essa constatação, reveladora da certeza de que mais importa utilizar as divisões constitucionalmente estabelecidas no intuito de efetivar direitos fundamentais do que prender-se a uma intocável divisão de tarefas cujas origens remontam a uma antiga teoria liberal voltada a limitar os poderes estatais, não se pode desprezar a necessidade de respeito aos consectários do Estado de Direito.

Conforme alguns estudiosos da matéria, os elementos da generalidade, positividade, sistematicidade e coerência, ínsitos à concepção da legalidade, têm sido postos em xeque por atitudes progressistas que desconfiam da política ordinária como meio apropriado para a firmação de compromissos na sociedade. Nesse contexto:

O Neoconstitucionalismo, com seu foco na transformação da sociedade por meio da interpretação constitucional, enfraquece o ideal do Estado de Direito elaborado por Waldron em vários aspectos (...) Foca-se em mecanismos que possibilitam aos juízes realizarem revoluções sociais independentemente da política majoritária, o que obviamente só é possível se o Poder Judiciário não estiver subordinado às opções legislativas. Desenvolveu-se, então, uma teoria constitucional totalizante, que influencia o modo de ver todas as demais normas do ordenamento jurídico, transformando toda questão jurídica em questão constitucional. Os instrumentos para tanto já são conhecidos: valores, fins, ponderação, direitos fundamentais etc. Esse passo faz com que o Neoconstitucionalismo se distancie dos ideais do Estado de Direito, já que, por um lado, torna as normas jurídicas mais fluidas e indeterminadas, e, por outro, deixa a atividade jurisdicional menos previsível (...) Ao dissipar a densidade normativa das normas jurídicas e autorizar os juízes a decidirem com base em preferências pessoais, o Neoconstitucionalismo golpeia com intensidade o conceito de Estado de Direito, aproximando-o do fim (GALVÃO, p. 271, 310, 312).

Embora este texto não comporte maiores considerações a respeito da tese, afigura-se-nos que a virtude está no termo médio, convindo encontrar uma maneira de equilibrar a tensão entre constitucionalismo e democracia. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra, pois.

As funções naturalmente transformadoras e prospectivas conferidas pelas teorias neoconstitucionalistas ao exercício jurisdicional não devem ser vistas com desprezo, preconceito e indiferença, mormente em se analisando uma sociedade como a nossa, em que uma miríade de proclamações constitucionais encontra-se relegada e muito longe de qualquer efetivação.

Sem embargo, como aqui se examinou, impõem-se limites às atitudes progressistas e inovadoras que o fenômeno proporciona, a fim de se mitigarem os riscos plausíveis de despontar caso não haja freios e limites fáticos, jurídicos e institucionais voltados a obstar a atuação desmedida de um poder inexoravelmente ascendente no cenário nacional. E, como é cediço, as restrições legítimas revelam-se a melhor forma de controlar aqueles que detêm, quer por circunstâncias, quer por exageros desvestidos de maior senso de responsabilidade, um grau de capacidade decisória ainda difícil de mensurar nestes tempos.


3 CONCLUSÃO

O neoconstitucionalismo e seu produto, a constitucionalização do Direito, não são sem riscos. Destacam-se, dentre outros, os riscos do decisionismo judicial, o qual advém da compreensão do Direito a partir da Constituição, documento repleto de normas genéricas e abstratas de baixa densidade normativa, que podem ser objeto de múltiplas interpretações.

No intuito de conferir legitimidade à função jurisdicional e evitar os abusos possíveis de serem produzidos por magistrados incautos – e não todos –  certos de seu potencial de discernir o justo e o injusto, doutrina e jurisprudência têm destacado o relevante papel que pode e deve assumir a argumentação jurídica, a qual corresponde, em suma, ao dever de os juízes atingirem uma fundamentação racional consistente no momento em que são proferidas suas decisões, ou seja, cuida-se de tarefa funcional ligada a um controle de justificação de julgados

A legitimação da função jurisdicional dá-se pela razoabilidade da decisão e da fundamentação do julgador. Somente uma decisão racional é capaz de permitir uma nítida distinção entre o magistrado que julga por suas idiossincrasias e o que julga com base na idoneidade jurídica de seus fundamentos. Imprescindível, logo, que juízes e tribunais adotem certo rigor dogmático e reconheçam a imposição argumentativa na aplicação de regras revestidas de plástico conteúdo.

Os critérios de atuação judicial devem harmonizar-se com o sentimento social e com a possibilidade de controle de racionalidade e legitimidade, sendo possível destacar alguns parâmetros a serem seguidos, preferencialmente, pelos intérpretes, tais como a priorização da lei na hipótese de ter havido manifestação inconteste e válida do legislador, bem como a priorização da regra onde o constituinte ou o legislador eventualmente tenha atuado mediante a elaboração de um preceito objetivo descritivo.

A dialética, o confronto isonômico consignado na igualdade de armas e o direito à informação e à participação hão de ser prestigiados, pois, tendo em mãos tantos poderes, a atividade jurisdicional precisa, afora uma boa argumentação, ser subserviente a certas diretivas principiológicas.


4  REFERENCIAL TEÓRICO

BARROSO, Luis Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009.

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Sobre o autor
Lucas Sales da Costa

Juiz de Direito Substituto do TJDFT. Ex-Advogado da União. Ex-Técnico Judiciário do TRF da 5ª Região. Pós-Graduado em Direito Processual Civil Individual e Coletivo pela Faculdade Christus (CE). Pós-Graduado em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP/DF). Aprovado nos concursos de Analista do TRT da 7ª Região e de Juiz Federal Substituto do TRF da 4ª Região.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA, Lucas Sales. Mitigando os riscos do decisionismo judicial no neoconstitucionalismo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4492, 19 out. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/38326. Acesso em: 23 nov. 2024.

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