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A sobrevida do regime especial de precatórios:

a volta dos que não foram

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O Supremo Tribunal Federal reavaliou o regime especial dos precatórios derrubado em 2013 para modular os efeitos de sua decisão.

Apresentação

Vive o Brasil forte disputa política e ideológica, o que vem debilitando, e muito, os Poderes cujos agentes sujeitam-se ao voto popular.

Então, há um natural enfraquecimento no domínio que cabe ao Executivo e ao Legislativo; ante esse vazio institucional, a lacuna vem sendo suprida por instância mais técnica, não submetida, tão maciçamente, às influências políticas.

De fato, nos dias de hoje o Judiciário, às vezes, legisla e administra a sociedade. Em nível local, poucos são os Prefeitos que não reconhecem a interferência de promotores e juízes na condução do Município. É a chamada judicialização da Administração.

Eis as ordens para suspender, de forma provisória ou definitiva, obras públicas e outros projetos governamentais; sustar processos licitatórios; distribuir medicamentos ou bancar custosos tratamentos médicos a cidadãos que interpõem pedidos judiciais.

Na esfera do Ministério Público, tem-se intensificado a celebração dos TAC (Termos de Ajustamento de Conduta). Quanto a isso, vale ilustrar, assim bem ponderou o Superior Tribunal de Justiça (STJ):

“O compromisso de ajustamento de conduta é um acordo semelhante ao instituto da conciliação e, como tal, depende da conveniência de vontade entre as partes” (in: RESp 596.764-MG).

Esse cenário ajuda a explicar a revalidação, em 25 de março de 2015, da sistemática derrubada, em 2013, pelo Supremo Tribunal Federal (STF): a do pagamento especial de precatórios judiciais, oriunda da Emenda Constitucional 62, de 2009.

De salientar que esse retorno jurídico teve uma única voz contrária. Com efeito, assim sustentou o ministro Marco Aurélio Mello, “estamos a substituir o Congresso. Estamos a reescrever a Constituição. Quando o STF extravasa limites, lança um bumerangue que pode voltar à respectiva testa” (in: “Folha de São Paulo”, de 26.03.2015).

Decerto, o ministro discordante escorou-se na Constituição:

Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.


A criação e o desfazimento dos sistemas de parcelamento de precatórios judiciais

Condenada a Fazenda Pública, o Tribunal de Justiça determina que os entes estatais, suas autarquias e fundações paguem, sob ordem cronológica, a quantia devida ao credor. Essa ordem é chamada precatório judicial.

Derivados de salários dos servidores públicos, benefícios previdenciários, indenizações por morte ou invalidez, os precatórios alimentares respondem por 80% da dívida judicial.

Todavia e desde que tenham pequeno valor, certos débitos judiciais não são considerados precatórios (art. 100, § 3º, CF); são os requisitórios de baixa monta, que, se outra cifra não for localmente definida, representam número inferior a 30 salários mínimos (R$ 23.640,00). Essas demandas são regidas pela Lei Federal 10.259, de 2001, especialmente o artigo 17.

Sob a classificação nacional da despesa pública, os precatórios judiciais e os requisitórios de baixa monta oneram ambos o elemento econômico 91 (Sentenças Judiciais).

Posteriores à edição da Lei de Responsabilidade Fiscal (maio de 2000), as pendências judiciais se incluem nos limites opostos à dívida de longo curso: a fundada ou consolidada (art. 37, § 7º, LRF). Contudo e para inserção no Balanço Patrimonial, certa espécie de precatório continua integrando o endividamento de curto prazo (flutuante); são os vencidos mas não pagos no exercício de competência.

À vista do enorme passivo judicial de Estados e Municípios (hoje, de R$ 94 bilhões), assegurou a Constituição três parcelamentos de precatórios:

  • Na promulgação da Carta Política, em 1988, concedeu-se oito anos para solver aquela dívida pública.

  • Doze anos depois, em 2000, mediante a Emenda Constitucional 30, permitiu-se outro fracionamento, em 10 anos; agora para ações ajuizadas até 31 de dezembro de 1999.

  • Passados mais nove anos, em 2009, por intermédio da Emenda Constitucional 62, garantiu-se outra moratória; no caso, optava o devedor por uma das duas formas de pagamento: depósito mensal de 1% a 2% da receita corrente líquida ou recolhimento anual de 1/15 do passivo apurado em dezembro de 2009.

Em maio de 2011, o Supremo Tribunal Federal (STF) interrompeu a eficácia da Emenda 30/2000: a do parcelamento judicial em 10 anos.

Após isso, em março de 2013, aquela Corte também invalidou a Emenda 62/2009, em face de duas Ações de Inconstitucionalidade ajuizadas, em dezembro de 2009, pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Assim, foram excluídos os seguintes comandos constitucionais:

  • Redução do precatório frente à dívida na qual pudesse estar inscrito o credor judicial (encontro de contas), visto que tal faculdade não estaria dada ao particular.

  • Correção monetária e compensação da mora pelos índices da Caderneta de Poupança, tidos insuficientes para cobrir as perdas inflacionárias.

  • Expressão dita no § 2º, art. 100, da CF: “cujos titulares tenham 60 (sessenta) anos de idade ou mais na data de expedição do precatório”, conquanto retira, da ordem preferencial, os que completaram 60 anos após a promulgação da Emenda 62.

  • Todo o artigo 97, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), norma que, na prática, introduziu o regime especial; assim fez o STF porque tal dispositivo afrontaria cláusulas pétreas da Constituição, como a garantia de acesso à Justiça, a independência entre os Poderes e a proteção à coisa julgada. Com isso, várias regras afastaram-se do mundo jurídico, sobretudo a do pagamento repartido em até 15 anos.

Em seguida, percebeu-se que a Emenda 62, a ironizada “emenda do calote”, não era tão ruim assim; afinal de contas:

- Grande parte das entidades devedoras passou a pagar, ainda que pouco, um débito nunca antes enfrentado, sequer contabilizado. A anterior omissão era porque a inadimplência não acarretava qualquer penalidade: nem a intervenção do outro nível de governo, sequer o bloqueio de transferências intergovernamentais, tampouco o parecer desfavorável de boa parte das Cortes de Contas[1].

-Os Tribunais de Justiça gastaram muito dinheiro para operar a sistemática especial de precatórios, quer contratando novos funcionários ou adquirindo custosos equipamentos e sistemas de informática.

-O regime normal, não especial, de pagamento mais alcança os quase sempre vultosos precatórios ligados a desapropriações, restando pouco para os de natureza alimentar, o que obriga os titulares a vendê-los, a preço vil, no mercado paralelo (de 20% a 30% do valor de face).

-Ao contrário, as preferências para idosos, portadores de doenças graves, a ordem de menor valor, tudo isso beneficiava a imensa parte dos precatórios: os alimentares (80% do todo).

Em face dos eliminados juros compensatórios, os títulos judiciais não superariam, exageradamente, o valor de mercado. Nos idos de 2006, assim dizia o ex-Secretário da Fazenda do Estado de São Paulo, Yoshiaki Nakano: “A maioria das condenações impostas ao Estado espelham indenizações muito superiores ao valor de mercado do imóvel.......Em alguns casos, o metro quadrado da Serra do Mar custava mais caro que o metro quadrado da Avenida Paulista” (in: “Folha de São Paulo”; 9.05.2006).

Ante todas essas ponderações, o ministro Luiz Fux, em 24.10.2013, propôs a denominada modulação, isto é, a flexibilização, o abrandamento da extinção da Emenda 62. Propunha aquele membro do STF que, embora parcialmente derrubado, o regime especial de pagamentos continuasse valendo por mais 5 (cinco) anos; até o final de 2018.

Frente ao pedido de vista do ministro Dias Tofolli, a modulação não foi, de pronto, referendada pelo Pleno da Suprema Corte.

Enfim, em 25 de março de 2015, o Plenário confirma a flexibilização, a modulação da recusa do sistema especial de precatórios, assim deliberando:

- Com dívida judicial em dezembro de 2009, Estados e Municípios poderão dirimir tal passivo até o final de 2020, utilizando-se de uma das duas formas de pagamento da Emenda 62: a vinculação mensal de parte da receita corrente líquida, o que exclui o outro modo: depósito anual de 1/15 da dívida, conquanto não mais haverá 15 anos de parcelamento (neste caso, o prazo da Emenda se estenderia até 2025).

- Essa forma modulada de pagamento alcançará o período de 1º de janeiro de 2016 a 31 de dezembro de 2020 (5 anos).

- Se assim não proceder, a entidade optante fica submetida às punições do art. 97, § 10, do ADCT: sequestro das contas bancárias; responsabilização do chefe do Poder Executivo; impedimento do governo receber transferências voluntárias do Estado e da União.

- A partir de 2021, retoma-se à norma permanente da Constituição, a do artigo 100, quer dizer, precatórios recebidos até 1º de julho serão necessariamente quitados até o final do ano seguinte.

- Até 25 de março de 2015, os precatórios serão corrigidos pelo índice da Caderneta de Poupança: a Taxa Referencial (TR); de lá em diante, a atualização se vinculará a indicador de maior variação: o IPCA-E (Índice de Preços ao Consumidor Amplo Especial).

 - Os precatórios tributários serão corrigidos segundo os mesmos critérios pelos quais a Fazenda Pública atualiza seus créditos tributários (dívida ativa).

- Desde que realizados até aquela data, os leilões de precatórios, as compensações com a dívida ativa e as ordens de menor valor, tais mecanismos estão validados; não poderão ser contestados na Justiça. Depois disso, estão todos proibidos. Sofrerá disciplina do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) o encontro de débitos judiciais com os créditos da dívida ativa; isso, claro, até aquela data-limite.

- De qualquer forma, os credores poderão diretamente negociar com os governos devedores, mas o desconto nunca ultrapassará 40% do saldo em aberto.

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O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) supervisionará o cumprimento da modulação do STF, além de regular a utilização de 50% dos depósitos judiciais.


A tendência de intervenção dos Tribunais de Contas

No dia seguinte ao da modulação, o seguinte Comunicado foi editado pelo Tribunal de Contas do Estado de São Paulo:

Comunicado SDG nº 14/2015

O TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO DE SÃO PAULO COMUNICA a todos os jurisdicionados da esfera estadual e municipal que em face da Decisão tomada pelo E. Supremo Tribunal Federal deverão ser adotadas medidas de planejamento cuidadoso para a elaboração da proposta orçamentária para o exercício de 2016.

Tais cuidados deverão prever as correspondentes dotações orçamentárias para o resgate de precatórios judiciais. Segundo consta da Decisão, ainda não publicada, o prazo de quitação do passivo de precatórios judiciais é de 5 (cinco) anos, a contar de janeiro de 2016 com o comprometimento mínimo de percentuais de 1 a 2% da Receita Corrente Líquida, observando-se, também, o novo índice de correção que passa a ser o Índice de Preços ao Consumidor Amplo Especial (IPCA-E). 

O Tribunal de Contas do Estado abordará o tema nos eventos de seu 19º Ciclo de agentes públicos conforme calendário disponível em sua página eletrônica.

SDG, 26 de março de 2015

Sérgio Ciquera Rossi

SECRETÁRIO-DIRETOR GERAL 

Tendo em vista o anterior entendimento do ministro Luiz Fux, a modulação do STF, na verdade, já vinha sendo praticada pelos entes devedores desde o ano de 2013.

Bem por isso, a posição do Controle Externo tende a perseverar no seguinte rumo:

1.Ente devedor sem débito na promulgação da Emenda 62 (dezembro de 2009); os do regime normal, ordinário: pagamento, no ano examinado, dos anteriores débitos judiciais mais o valor do último mapa orçamentário do Tribunal de Justiça e, ainda, os requisitórios de baixa monta.

2.Ente devedor com pendência judicial na promulgação da Emenda 62 (dezembro de 2009): depósitos mensais na conta especial do Tribunal de Justiça, de forma que a proporção da receita corrente líquida seja suficiente para honrar todo o saldo até o final de 2020 (5 anos). Além disso e para evitar as sanções legais, devem Estados e municípios honrar os requisitórios de baixa monta, conquanto estes não foram alcançados pelo sistema especial. De mais a mais, a modulação do STF não retomou o seguinte trecho do art. 97, ADCT: “inclusive os emitidos durante o período de vigência do regime especial instituído por este artigo”, donde se conclui que, emitidos naqueles 5 anos, os novos precatórios devem ser pagos conforme a regra permanente do art. 100, § 5º, da Constituição, ou seja, até o final do ano seguinte ao da apresentação até 1º de julho. Enfim, os entes devedores devem, todo ano, depositar o percentual cabível da receita corrente líquida, liquidando, além disso e à vista, os requisitórios de baixa monta e o valor do último mapa orçamentário.

3.Para o quê devem atentar os chefes de Executivo quanto à adequada gestão dos Precatórios Judiciais:

Sob pena do parecer desfavorável do Tribunal de Contas, do sequestro de contas bancárias, do bloqueio das transferências de outro nível de governo e, ainda, de sua própria responsabilização, devem Governadores e Prefeitos atentar para o que segue:

    Ajustado às condições da Emenda 62, de 2009, vem-se depositando, na conta especial do Tribunal de Justiça, o valor mensal alusivo à parte da receita corrente líquida?

    Baseado na receita corrente líquida, o percentual retido é suficiente para honrar todo o passivo judicial até o exercício de 2020?

    Além disso, vem-se pagando o valor do último mapa orçamentário e, no prazo de 60 dias, os requisitórios de baixa monta?

    Continua Estado ou Município realizando práticas recusadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF): leilões; compensações com a dívida ativa; ordens de menor valor?

    Nas negociações diretas com os credores, está sendo abatido, de maneira imprópria, mais de 40% do valor de face do precatório? Tais acordos foram homologados na Justiça? Estão sendo honrados?

    Não enquadrado naquela moratória, vem o ente devedor pagando os débitos anteriores mais o valor do último mapa orçamentário e, também, os requisitórios de baixa monta, ou seja, cumprindo a norma permanente do art. 100, § 5º, da Constituição?

    Toda a dívida judicial está devidamente contabilizada no Balanço Patrimonial?


Nota

[1] Em rumo diferente, o Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, em meados de 2007, passou a recusar a conta do Prefeito quando o Município não pagava 10% do estoque vencido de precatórios e mais o valor do último mapa orçamentário do Tribunal de Justiça.

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Sobre o autor
Flavio Corrêa de Toledo Junior

Professor de orçamento público e responsabilidade fiscal. Autor de livros e artigos técnicos. Ex-Assessor Técnico do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TOLEDO JUNIOR, Flavio Corrêa. A sobrevida do regime especial de precatórios:: a volta dos que não foram. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4322, 2 mai. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/38500. Acesso em: 24 dez. 2024.

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