3. AGHORI SADHUS E A LIBERDADE RELIGIOSA
Para compreender esse segmento do hinduísmo, é necessário a compreensão do conceito de asceticismo e sua etimologia grega advinda da palavra ἄσκησις, áskēsis — exercitar, treinar; aqui no contexto de auto disciplina —, implicando em abstinência do contato e percepções mundanas de prazer restringindo-se às ações de corpo, fala e mente, como forma de se atingir objetivos espirituais e religiosos; a abstinência dos prazeres ordinários, neste sentido, proporciona um sentimento interior de satisfação e engrandecimento como forma de se adquirir paz interna. Naturalmente, há um desprendimento de visões e regras do cotidiano social, rompidas em prol de uma vida exclusivamente devota à crença.
De forma a conceituar, em linhas gerais e introdutórias — considerando o propósito de nosso trabalho —, os Aghori Sadhus, primeiramente trataremos dos já extintos Kāpālikas e Kālāmukhas, originados nos antigos Pāśupatas, até então tido como o mais antigo segmento hindu que possui como centro de suas crenças o Deus Shiva e a prática do Tantra como forma de continuidade aos Vedas24.
Kāpālikas e Kālāmukhas são membros de grupos shaivistas que centram-se no asceticismo, com proeminência na Índia entre os séculos VIII e XIII, notórios por suas práticas esotéricas em uma estrutura mais amorfa que a Cristã, dando ênfase na doutrina e métodos de culto em detrimento da organização; por essa razão, seria apropriado referir-se aos sobreditos grupos como ordens monásticas25.
Em vista das características ascéticas incorporadas por essas ordens monásticas, o termo em Sânscrito sādhu é o utilizado para descrever aquele (homem ou mulher) que escolheu viver paralelamente aos costumes, objetivos sociais e conquistas materiais oriundas de sistemas cosmopolitas implementados ou incorporados na sociedade cotidiana para se focar exclusivamente em suas práticas espirituais.
Com efeito, o termo Aghori, originalmente em Sânscrito Aghōra , advém da palavra destemido, sem medo e dificuldades, estado interior obtido por intermédio da disciplina espiritual chamada de Aghor sadhana. Aquele iniciado e instruído nessa prática é chamado de Aghori; portanto, Aghori Sadhus, aquele ascético de ordem monástica que se dedica ao Aghor sadhana buscando a sumidade de Aghor, que é Aghoreshwar ou Senhor de Aghor, nome que faz referência ao Deus Shiva em alguns escritos sagrados, com mantra existente nos Vedas. Seu objetivo final é atingir o conceito de liberação que já citamos anteriormente: moksha ou moksa, a liberação do ciclo de reencarnação (Samsara), buscando a percepção do ser com o absoluto e o rompimento com o véu de ilusão que permeia a sobredita existência cotidiana.
Por viverem uma vida reclusa e paralela à sociedade, são figuras bastante controversas, principalmente aos olhos dos costumes ocidentais e de tradições religiosas distintas, inclusive dos próprios indianos que não estão associados a essa tradição hindu — com exceção de algumas comunidades rurais, onde são vistos como grandes curandeiros por possuírem ritos eremitas e práticas de renunciação. Os Aghori são famosos por celebrarem rituais de transição para a morte, passando cinzas dos corpos cremados em seus corpos e, inclusive, praticando meditação nestes sítios fúnebres, além de possuírem uma tradicional cumbuca feita de crânios humanos, como Shiva e outras deidades hindus são costumeiramente descritas.
Aos olhos do leitor médio e da maioria popular, é inegavelmente uma prática sinistra e com aparente viés negativo. Entretanto, não há qualquer malefício direto à sociedade ou ao cidadão que não é adepto do segmento. Trata-se de apenas mais um segmento dentre muitos no Hinduísmo, como discorremos neste trabalho, que moldam o propósito religioso de cada um. Porém, sua peculiaridade tende a ser repreendida no território indiano por ser considerado prática superticiosa, o que nos leva ao questionamento de haver conflito entre a Carta anti-superstição de Maharashtra Andhashraddha Nirmoolan Samiti, de 2005, e a própria Constituição Indiana, que prevê a liberdade religiosa e combate sua supressão.
Verbi gratia, temos que em seu texto — que não é uma legislação codificada, salienta-se; trata-se de mero ato ordinatório que em nosso solo pátrio seria considerado projeto de lei ou até mesmo proposta neste contexto — no item 3 há indicação do termo ‘aghori’ como foco de um dos elementos que o Diploma visa combater, correlacionando-o à magia negra, embora não haja expressa definição do que exatamente se enquadraria neste conceito. O projeto é omisso ao definir “fé cega” e há sugestão de que entoar ‘mantras aghori’ (o equivalente a uma prece ocidental), por exemplo, previsto no item 2, letra d, seria o suficiente para haver a incidência da pena mínima de 6 (seis) a 7 (sete) meses, mais fiança de cinquenta mil rupias indianas, nos termos do item 3, subitem 2. Ademais, há outras inclusões que desafiam somente o bem-estar da população, visando à supressão de práticas desumanas nos semelhantes, embora, em termos de civilização, estes limites sejam questionados e gerariam debate que extrapola as notas introdutórias aqui apresentadas.
Embora haja boa intenção na estrutura legislativa, visando coibir práticas delituosas em nome do fanatismo, a implementação da Carta pode ser uma grande falha pelo fato de haver grande negação em segui-la, já que, além da vacuidade e impertinência em definir com exatidão o que de fato é coibido, vai contra os costumes e tradições do povo, chegando a adentrar a esfera da especulação ou superstição/ lenda urbana do que é praticado no segmento religioso em comento.
Na ótica do constitucionalismo brasileiro é possível fazer um paralelo às religiões de matriz africana e a resistência sofrida em sua sedimentação por ser socialmente, a nível conceitual e superficial (desconsiderando os princípios que as fundamentam), muitas vezes, contrárias aos costumes religiosos implementados em solo Pátrio. Há clara controvérsia na aceitação, inclusive, como no caso dos Aghori supracitados, correlacionando-as com magia negra, embora isso ofenda diretamente os preceitos de liberdade religiosa estabelecidos no Texto Maior.
A distorção da crença de matriz africana, por exemplo, pelos não praticantes deste credo, como no caso acima da Índia, torna-se um perigoso aliado na coibição da fé e seus símbolos, criando uma visão religiosa maniqueísta e cartesiana, com visões de credo certo e errado. Embora o Brasil não possua a gama de segmentos religiosos que o Hinduísmo possui, é perceptível que nos dias hodiernos há maior liberdade para diversas religiões e seus praticantes, nos parecendo equivocado coibi-las com base em crenças contrárias, que podem atribuir-lhes o caráter de superstição— ressalvado os casos de atos desumanos, tais como os mencionados no Direito Hindu.
A ausência de definição de motivos plausíveis no momento da coibição pode ser equiparada à mera tentativa de suprimir injustificadamente a prática religiosa, aí sim incorrendo em desrespeito ao texto constitucional e a liberdade de fé e credo.
4. CONCLUSÃO
Para não tergiversarmos sobre o escopo principal introdutório deste trabalho, concluímos deixando esta lacuna exemplificada pelo Direito Comparado para questionamento e ponderação de possíveis melhorias do direito e liberdade religiosa, bem como de sua aplicação comedida, de forma justa, que alcance os direitos e garantias fundamentais de livre exercício de credo sem que haja contradição dos costumes — ou superstições sociais — e lei.
A diversidade da Índia nos parece adequada para tratar, sob a ótica comparada, da diversidade e amplitude de direitos que emergem em território nacional. Considerando a ciência comparada como fonte de aperfeiçoamento de direitos, as nuances de povos inusitados e culturalmente ricos constituem o embasamento ideal para o aprimoramento de princípios básicos para o convívio em sociedade: respeito, liberdade e democracia; três elementos presentes na Constituição brasileira e indiana.
Referências Bibliográficas
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Notas
1 https://www.bombayhighcourt.nic.in/libweb/acts/Mah.Ord.2013.14.PDF
2 GILISSEN, John. Introdução Histórica ao Direito. 2ª. ed. Tradução de A. M. Hespanha e L. M. Macaísta Malheiros. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1995, p. 102.
3 DAVID, René. Os Grandes Sistemas do Direito Contemporâneo. 2ª. ed. Tradução de Hermínio A. Carvalho. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 1993, p. 438.
4 Antonio Augusto Machado de Campos Neto, O Hinduísmo, O Direito Hindu e O Direito Indiano , Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo v. 104. p. 71. - 111 jan./dez. 2009
5 Idem.
6 EVOLA, Julius. The Yoga of Power: Tantra, Shakti, and the Secret Way, Inner Traditions; 1st U.S. ed edition (September 30, 1993).
7 Antonio Augusto Machado de Campos Neto, p. 85.
8 DONALD. Davis Jr. The Spirit of Hindu Law, Cambridge, capítulo 6.
9 ROCHER. Ludo. Studies in Hindu Law and Dharmaśāstra, Anthem Press, 2012, p. 22
10 Idem.
11 OLIVELLE. Patrick. Dharmasutras: The Law Codes of Ancient India. Oxford World Classics, 1999, p. xxi
12 Idem.
13 DONALD. Davis Jr. The Spirit of Hindu Law, Cambridge, p. 19.
14 De Legibus, Livro I, vi, Loeb Classical Library edição traduzida por C.W. Keyes, Cambridge, MA, 1928, p. 317.
15 BLACKSTONE. Sir William, Commentaries on the laws of England, 4. vols.Buntingford (England), 1966, (reprimpressão da 1ª edição de 1765-1769), vol. 1, p. 44
16 OLIVELLE. Patrick. Dharma: Studies in its Semantic, Cultural and Religious History, Motilal Banarsidass, 2009.
17 Em estudo do Direito Comparado, fizemos algumas observações sobre as previsões de textos constitucionais alienígenas ao brasileiro no trabalho ‘A função social do Direito à luz do Direito Comparado e o Crocodilo de Dostoiésvki’ , publicado no sítio eletrônico Jus Navigandi.
18 MACEDO, Daniel. A função social do direito à luz do direito comparado e o crocodilo de Dostoievski. Jus Navigandi, Teresina, ano 19, n. 3965, 10 maio 2014, Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/28146/a-funcao-social-do-direito-a-luz-do-direito-comparado-e-o-crocodilo-de-dostoievski>. p. 12-13
19 https://www.arnaldogodoy.adv.br/artigos/india.htm
20 Idem.
21 LASKI. Harold Joseph. Liberty in the Modern State. New York and London: Harpers and Brothers, 1930.
22 ROCHER. Ludo. Studies in Hindu Law and Dharmaśāstra, Anthem Press, 2012, p. 99. e 100.
23 Idem. p.100
24 Ob. Cit. 5
25 LORENZEN. David N. in The Kapalikas and Kalamukhas: Two Lost Saivite Sects, Second Revised Edition, Delhi, 1991, preface, xi.