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Defesa dos bancários: do desvio e do acúmulo de função

28/08/2015 às 10:10
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Analisa-se a situação jurídica dos trabalhadores que acabam realizando atividades diferentes ou além daquelas para as quais são remunerados.

Nos momentos de dificuldades financeiras algo comum a qualquer empresa é a redução do quadro de trabalhadores e a reestruturação dos cargos a fim de tentar produzir a mesma quantidade, ou até mais, porém com menos empregados. Nesse cenário, torna-se corriqueiro um empregado ter que fazer atividades diferentes ou além daquelas para as quais está sendo remunerado.

No direito laboral, há duas figuras bastante conhecidas pelos trabalhadores: o desvio de função e o acúmulo de função. Se o empregado continuou realizando as funções habituais ao seu cargo, porém, houve o incremento de atividades inerentes a outro cargo, dizemos que existe um “acúmulo de função”. Por outro lado, se as atividades que em determinado momento passou a realizar são diferentes daquelas previstas para o cargo pelo qual está sendo remunerado, então falamos em “desvio de função”.

Interessante observar que não existe dispositivo na lei que regulamente diretamente essas situações. O que existem são princípios, normas gerais e decisões judiciais que, se analisados com bom senso, dão uma boa margem de segurança para tratar cada caso.

O artigo 456 da CLT, não muito bom para o empregado, diz que, se no contrato de trabalho não houve ajuste expresso de quais atividades serão desenvolvidas, entende-se que há obrigação de realizar todos os trabalhos compatíveis com a condição pessoal do empregado. Na prática, normalmente, os empregadores anotam apenas um cargo genérico na carteira de trabalho e o mesmo acontece quando existe o contrato de trabalho propriamente dito, pois apenas repetem o nome do cargo sem qualquer detalhamento das atribuições, o que dificulta eventual alegação de desvio ou acúmulo de função, ficando o empregado à mercê do jus variandi, que, nas palavras do professor Amauri Mascaro, “pode ser enunciado como o direito do empregador, em casos excepcionais, de alterar por imposição e unilateralmente as condições de trabalho dos seus empregados.”[1]. Para parte da jurisprudência, nem há a necessidade da excepcionalidade, havendo quase uma “carta branca” para o empregador fazer o que bem entender com o trabalhador:

Face ao que a doutrina entende por jus variandi, é facultado ao empregador o direcionamento das funções desempenhadas por seus colaboradores. A modificação das atribuições do empregado ou, até mesmo, o seu acréscimo são inerentes à subordinação jurídica e ao poder de direção do empregador, de modo que não caracterizam alteração ilícita do contrato de trabalho (art. 468 da CLT). (TRT-SP Processo nº 0002530-58.2013.5.02.0060)

Por outro lado, em proteção ao trabalhador, o artigo 468 da CLT somente aceita qualquer alteração no contrato de trabalho se houver concordância do empregado e, mesmo assim, que não lhe cause prejuízo. Já o artigo 884 do Código Civil veda o enriquecimento ilícito, ou seja, é proibido que alguém tenha vantagem ilegalmente sobre outra pessoa. Nota-se, então, que ainda que não exista norma específica para impedir o acúmulo ou o desvio de função, a partir desses parâmetros, é fácil extrair o direito de um trabalhador que, contratado para ser “assistente de gerente”, passa a desempenhar as funções de “gerente de contas” de maneira não esporádica.

Devemos lembrar que quem determina o salário que vai pagar quase sempre é o empregador. Então, se ele estabelece, por exemplo, que um “gerente de contas” merece ganhar R$ 5.000,00 e um “assistente de gerente” R$ 2.800,00, é porque entende que a contraprestação que receberá, ou seja, a força de trabalho daquele empregado, tem esse valor. Portanto, contratar para um cargo de menor responsabilidade e, após algum tempo, passar o trabalhador para funções que ele próprio, empregador, considera mais valiosas, sem remunerar adequadamente as novas atribuições desempenhadas, configura enriquecimento ilícito às custas do empregado. Vejamos parte de duas decisões que confirmam esse entendimento.

Em certas circunstâncias, entendo existir obrigatoriedade de pagamento de diferenças salariais por eventual acúmulo ou desvio de função, tendo em vista a característica sinalagmática do contrato de trabalho, pressupondo, sempre, a equivalência e reciprocidade das prestações contratuais. Se o empregador passa a exigir do empregado um trabalho diverso ou de maior responsabilidade, há de corresponder a essa alteração contratual um acréscimo de salário ou vantagem econômica da mesma ordem, sob pena de desequilíbrio do avençado, beneficiando somente uma das partes. Processo (...) (TRT/SP Nº 00009822620135020083)

Acúmulo de função. Incompatibilidade de tarefas. Deferimento. Ajuste do percentual sobre o salário. O salário pactuado no ato da admissão é uma contraprestação pelo labor a ser realizado pelo trabalhador. Pelo fato do empregado bancário/caixa ter exercido, cumulativamente a função de tesoureiro, que detém maior complexidade e grau de responsabilidade, dentro do horário de trabalho, estranhas ao contrato pactuado e, portanto, incompatíveis com a função acordada, restou caracterizado o acúmulo de função capaz de gerar plus salarial, que por refletir sobrecarga de atividades e responsabilidades, tem-se devido o deferimento e a fixação de percentual do salário do obreiro para remunerar essa situação. (...) (TRT 14ª R.; RO 0000245-26.2013.5.14.0071)

Na jurisprudência, existe divergência sobre a necessidade, ou não, de a empresa ter quadro de carreira homologado pelo Ministério do Trabalho, para ser possível reconhecer o direito do empregado a diferenças salariais por conta do desvio ou do acúmulo de função. Existem decisões que entendem pela desnecessidade dessa formalidade, pois, se for demontrado que na prática há delimitação das tarefas atribuídas a cada cargo, então, em prestígio ao princípio da verdade real, torna-se possível o reconhecimento do direito.

(...) DESVIO DE FUNÇÃO. INEXISTÊNCIA DE QUADRO DE CARREIRA AUTORIZADO E HOMOLOGADO PELA AUTORIDADE COMPETENTE. DIFERENÇAS SALARIAIS. Reconhecido o desvio de função, torna-se devido o pagamento das respectivas diferenças salariais. A inexistência de quadro de carreira autorizado e homologado por autoridade competente não constitui obstáculo para percepção das referidas parcelas. Recurso de revista de que não se conhece. (Tribunal Superior do Trabalho TST; RR 0010266-82.2013.5.03.0163; Rel. Min. Cláudio Mascarenhas Brandão; DEJT 06/03/2015)

(...) DESVIO FUNCIONAL. DIFERENÇAS SALARIAIS. O regional, diante do conjunto fático-probatório, concluiu que o autor efetivamente foi desviado do cargo para o qual fora originalmente contratado. Restou provado que, conquanto a reclamada não possuísse pessoal organizado em quadro de carreira devidamente homologado pelo Ministério do Trabalho, existia a função no quadro da empresa e ela era exercida por empregado de outra categoria. Assim, sob pena de afronta ao princípio da primazia da realidade, o qual visa a afastar os aspectos meramente formais, forçoso o reconhecimento do direito às diferenças salariais decorrentes do efetivo desvio de função da reclamante. Precedentes. Não conheço. (Tribunal Superior do Trabalho TST; RR 0122400-91.2012.5.17.0003; Quinta Turma; Rel. Min. Emmanoel Pereira; DEJT 05/12/2014)

A inexistência de quadro de carreira homologado pelo Ministério do Trabalho é o que mais se verifica, inclusive entre as grandes empresas. Entretanto, mesmo entre elas é comum haver documentos internos que descrevem as competências e atribuições de cada cargo. Aliás, essa organização é uma necessidade para as certificações que a maioria das grandes corporações possui (ISO 9001 etc), de maneira que esse documento pode ser utilizado para comprovar a alegação do acúmulo ou do desvio funcional.

Por exemplo, em processos que buscam desqualificar o cargo de confiança especial para receber como horas-extras as trabalhadas além da sexta diária, é comum o Banco Bradesco apresentar o “Normativo de atribuições e responsabilidades das agências” com a descrição das funções inerentes ao cargo do reclamante, a fim de tentar comprovar a “fidúcia especial”, então, isso pode ser utilizado para averiguar possível desvio ou acúmulo de função. 

Apesar de parecer algo simples, a verdade é que demonstrar perante o Poder Judiciário o desvio ou o acúmulo de função não é tarefa das mais fáceis. Infelizmente, a maior parte das decisões judiciais ainda entendem ser indispensável a existência do quadro de carreiras homologado pelo Ministério do Trabalho para apuração da efetiva distorção funcional ou não.

DIFERENÇAS SALARIAIS. DESVIO DE FUNÇÃO. À míngua de quadro formal de carreira, a inserção dos empregados em qualquer dos níveis em que está escalonado o cargo de "Gerente de Relacionamento Prime" é questão afeta ao poder diretivo do empregador, a quem cabe avaliar quais os empregados que pretende promover, acrescentando-lhes responsabilidade e majorando-lhes a sua remuneração. Não se trata de conduta anti-isonômica ou discriminatória, em nada atentando contra o princípio basilar da isonomia. Recurso a que se nega provimento. (TRT 06ª R.; RO 0001394-63.2012.5.06.0023)

Diante dessas dificuldades comuns nessas espécies de pleitos, seja por conta da inexistência de quadro de carreiras homologado pelo Ministério do Trabalho ou mesmo pela falta de previsão legislativa específica, o caminho alternativo que deve ser avaliado é o de pedir as diferenças salariais fundamentando não na distorção funcional, mas na equiparação salarial alicerçada no direito à isonomia remuneratória. Em determinados casos, os dois pedidos são possíveis, pois em ambas as hipóteses existe algum empregado que está, no mundo real, exercendo as atribuições semelhantes a de outro colega, porém, sem receber igual contraprestação, e a vantagem da equiparação salarial é que, para ela, não tem importância a nomenclatura dada ao cargo. O trecho da decisão abaixo deixa transparecer essa possibilidade prática.

III- DIFERENÇAS SALARIAIS – DESVIO DE FUNÇÃO 11- O autor postulou diferenças salariais ao fundamento de que, embora promovido do cargo de Supervisor Administrativo para o de Gerente de Pessoa Jurídica em agosto de 2009, o aumento salarial ocorreu apenas em janeiro de 2011. (...) 13- Na espécie, o obreiro não se reportou a paradigma, quadro de carreira ou piso salarial, sendo certo que a sua remuneração se baseava tão somente no fator tempo à disposição. Prevalece, então, a máxima de que “o empregado se obrigou a todo e qualquer serviço compatível com a sua condição pessoal” (art. 456, parágrafo único, da CLT). 14- A tese obreira não encontra qualquer respaldo no Direito Individual ou Coletivo do Trabalho (Súmula 374 do C. TST, em analogia). 15- Assim, reputo irrelevante para a comutatividade do contrato se exercidas tarefas de Supervisor Administrativo ou Gerente de Pessoa Jurídica, o que não redunda em enriquecimento ilícito, haja vista que – segundo processado – nada estabelece que tais atividades mereçam remuneração determinada ou que uma deva ser mais bem remunerada do que a outra (e.g.: quadro de carreira, regulamento de empresa ou norma coletiva). 16- Não pode o Estado-Juiz se fazer substituir ao empresário alterando a remuneração de seus empregados, sob pena de interferência na livre iniciativa, princípio de toda a atividade econômica do País (art. 170 da Lei Maior). 17- Em última análise, não há direito subjetivo a aumento salarial pela simples alteração das atribuições do empregado, muito menos de forma retroativa. (TRT-SP Processo nº 0002530-58.2013.5.02.0060)

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Apesar desses percalços, se o trabalhador comprovar, por meio de testemunhas, depoimento pessoal das partes, documentos etc., a existência do desvio ou do acúmulo funcional, a solução dada pelo Poder Judiciário costuma variar. Luciano Martinez, na obra Curso de Direito do Trabalho[2], explica que: “Caberá ao magistrado, uma vez certificada a ocorrência de acréscimo funcional sem o consequente aumento salarial, o oferecimento de tutela capaz de garantir o equilíbrio contratual, o não locupletamento do empregador e o redimensionamento do salário diante do acréscimo funcional.”. É o que o Tribunal Superior do Trabalho tem decidido:

Diferenças salariais. Desvio de função. A decisão manteve a sentença que determinou o pagamento de diferenças salariais, em razão de acúmulo de função, na medida em que houve prova convincente a respeito do exercício da função de gerente de negócios antes da alteração na CTPS da reclamante. Recurso de revista não conhecido. (...) (Tribunal Superior do Trabalho TST; RR 0060300-08.2006.5.02.0075; Oitava Turma; Rel. Min. Marcio Eurico Vitral Amaro; DEJT 17/10/2014)

Para as hipóteses do desvio de função, em que o empregado está realizando atividades diversas daquelas para as quais foi contratado, o direito é à diferença entre a remuneração que recebe e o salário previsto para o cargo que corresponde às atribuições efetivamente desempenhadas. Por outro lado, no caso de acúmulo de função, em que existe um aumento nas obrigações, costuma-se arbitrar um incremento (10, 20, 30 ou outro percentual) no salário para manter o equilíbrio contratual, o que é nada mais que justo, pois o trabalhador somente aceitou determinado emprego ou promoção, porque, em tese, considerou justa a remuneração prevista para determinada carga quantitativa e qualitativa de serviços.

Acúmulo de funções. Percentual fixado a título de acréscimo salarial (15%) que se revela adequado, haja vista que a atuação em acúmulo das atividades implicava que a empregada não operasse a empilhadeira durante a integralidade da jornada de trabalho, ao contrário dos trabalhadores contratados especificamente para o desempenho dessa função em tempo integral. Devida a integração, por outro lado, do acréscimo salarial na base de cálculo das horas extras, nos termos do entendimento consubstanciado na Súmula nº 264 do tst. (TRT 04ª R.; RO 0001204-78.2012.5.04.0404)

Acúmulo de função. Transporte de valores. Comprovado nos autos que o empregado acumulou a função de transporte de valores para diversos lugares, suportando considerável risco a sua integridade física, já que não estava treinado para realizar esse encargo, bem como porque a Lei nº 7.102/83 prevê a terceirização dessa tarefa a empresa especializada, faz jus um plus salarial equivalente a 20%. (TRT 11ª R.; RO 0002101-76.2010.5.11.0018)

Espero que tenham ficado claros ambos os institutos, pois na prática trabalhista é comum haver o anseio dos bancários pelo recebimento de acréscimos ou diferenças salariais decorrentes tanto do acúmulo como do desvio de função. Entretanto, pelo que se nota, não existe legislação específica que garanta esse direito e, baseando-se nisso, é comum que os magistrados reconheçam a distorção funcional, mas, optando por negar as reparações pecuniárias, sob a justificativa de ausência de previsão legal. Há também os que negam o pedido baseando-se na inexistência de quadro de carreiras ou plano de cargos e salários homologado pelo Ministério do Trabalho, em que pese, conforme vimos, existirem decisões do TST favoráveis ao trabalhador. Também há os que entendem que, por conta do jus variandi, o empregador pode alterar quase que a seu bel-prazer o feixe funcional ao qual se obrigou o trabalhador ao aderir ao contrato de emprego ou ao aceitar anterior promoção.

Situações como essas devem ser avaliadas com bastante atenção no momento da formulação do pedido perante a Justiça do Trabalho, a fim de se evitar que injustiças praticadas contra o empregado fiquem sem reparação por conta de uma visão patronal do direito do trabalho ou de uma imprecisão técnica do representante do trabalhador.


 Notas

[1] NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Nascimento, Sônia Mascaro. Curso de Direito do Trabalho: história e teoria geral do dirito do trabalho: relações individuais e coletivas do trabalho. 29 ed., - São Paulo: Saraiva, 2014.

[2] Martinez, Luciano. Curso de Direito do Trabalho: relações individuais, sindicais e coletivas do trabalho. 5ª Ed. – São Paulo: Saraiva, 2014.

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Sobre o autor
Henrique Lima

HENRIQUE LIMA. Advogado (www.henriquelima.com.br). Mestre em direito pela Universidade de Girona – Espanha e pós-graduado em Direito Constitucional, Civil, do Consumidor, do Trabalho e de Família. Autor de livros e artigos, jurídicos e sobre temas diversos. Membro da Comissão Nacional de Direito do Consumidor do Conselho Federal da OAB (2019/2021). Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/5217644664058408

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Henrique. Defesa dos bancários: do desvio e do acúmulo de função. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4440, 28 ago. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/40010. Acesso em: 23 nov. 2024.

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