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Santa Sé e pedofilia: Justiça imperfeita

25/06/2015 às 10:38

Resumo:

- O Papa Francisco criou um tribunal no Vaticano para julgar bispos acusados de proteger padres pedófilos.
- A iniciativa do Papa é vista como um avanço, mas críticos questionam a eficácia e a transparência do processo.
- Vítimas de abusos sexuais na igreja católica expressaram decepção com a falta de abertura para tribunais laicos.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Repassar a lista de promessas, sinalizações de avanços, medidas ineficazes, pedidos de perdão, encobrimento, condescendência, permissibilidade e dissimulações levadas a cabo pela Santa Sé em tema de pedofilia é um convite à depressão.

“Por sus obras los conoceréis.”

Cada vez que vejo uma notícia vinda do Vaticano e o frenesi sensacionalista que esta provoca, mato um gato com a mirada. A última e mais recente é a de que os bispos que forem acusados de proteger, encobrir, consentir ou não atuar contundentemente contra padres e catequistas pedófilos ou acusados de abusos sexuais a menores poderão vir a ser julgados por uma nova instância judiciária criada no Vaticano pelo mesmíssimo Papa Francisco, um tribunal constituído especificamente para os prelados que cometam “abuso de poder”, omissão ou negligência.

A partir de agora, e pela primeira vez (porque, na prática, os bispos eram juridicamente intocáveis nesta matéria), estes sacerdotes poderão ser julgados e terão que responder ante um tribunal no caso de “falta ao seu dever profissional”, em virtude do direito canônico. Esta nova instância judiciária “funcionará no interior da Congregação para a Doutrina da Fé (CDF), antigo Tribunal do Santo Ofício que tem por missão zelar pelo respeito do direito canônico em toda a Igreja Católica” – a mesma que já cuida dos padres acusados de abuso sexual e que, com deliberada cegueira, respondeu de “forma inadequada” a mais de 4.000 casos de abusos sexuais a menores por parte de clérigos.

Claro que comparado com seus antecessores, o santo João Paulo II e o papa aposentado Ratzinger - “los jefes de los pederastas, y principales responsables de los obstáculos interpuestos entre los criminales y la justicia secular” (R. Zugasti) - , esta iniciativa e as boas intenções do bom Francisco é, sem lugar a dúvidas, a mais próxima do paraíso que se poderia imaginar.

Cantamos vitória já? Nem por assomo. Motivos para festejar? Não tão depressa. Primeiro, porque a eventual «boa vontade» ou as «melhores intenções» não bastam por si sós para garantir o acerto moral de algumas posturas; depende também, e sobretudo, de seus atos e suas consequências, porque a ação é a única prova fiável e fidedigna para valorar a intenção: se a ação nunca aparece ou é inapropriada, é muito provável que a intenção ou a boa vontade seja uma farsa (como disse Winston Churchill em certa ocasião: «No basta con hacer nuestro mejor intento; en ocasiones tenemos que hacer lo que se necesita»). Segundo, porque anunciar alguma medida que sugira que a igreja se está pondo ao dia com os valores do século XXI não é nem de longe o mesmo que adotar mecanismos suficientemente contundentes, legítimos, eficazes e condizentes com o que hoje entendemos por um Estado de Direito guiado por princípios, valores e normas decentes.

Não é por mera casualidade que quando se anunciou a criação do mencionado tribunal as vítimas se mostraram decepcionadas por não abrir estes casos a tribunais laicos e denunciaram o desejo da igreja de continuar a proteger aos curas pedófilos. Afinal, durante os anos em que se praticaram este tipo crime e do “silêncio cúmplice” dos bispos, as comissões, os procedimentos, os protocolos e as promessas abundaram. Mas todas foram (e continuam sendo) desprovidas de significado: “Mientras los curas que han cometido o encubierto crímenes sexuales vayan a ser juzgados por otros curas, nada cambiará”. Sendo honestos, a proposta deste novo tribunal, por louvável que possa parecer à primeira vista, não tem absolutamente nenhum sítio na cabeza de uma pessoa sensata; tampouco merece ou é digna de respeito.

Assim que nada de novo. Na verdade, repassar a lista de promessas, sinalizações de avanços, medidas ineficazes, pedidos de perdão, encobrimento, condescendência, permissibilidade e dissimulações levadas a cabo pela Santa Sé em tema de pedofilia é um convite à depressão. E não me refiro a um grupo de seres mefistofélicos ou diabólicos. Não! Me refiro a uma instituição integrada por indivíduos que anunciam que falam em nome de um deus, por indivíduos que creem firmemente que com o dom da palavra detêm o singular e misterioso poder de converter um biscoito e vinho – literalmente – no corpo e o sangue de um carpinteiro palestino cuja execução representou nada menos que a redenção da humanidade.

As fanfarronices soam de fundo com melodia conhecida porque há coisas que simplesmente não quadram. A proposta de solução para o futuro que o Vaticano está adotando com relação ao abuso de menores por padres parece sumamente tendenciosa e poderosa para camuflar ou diliur ainda mais a responsabilidade dos bispos em uma onda de incredulidade especialmente repugnante desde um ponto de vista moral e jurídico. Por que? Pois porque (i) segue mantendo em segredo os casos de abusos sexuais dentro da igreja católica, (ii) continua afirmando que a Santa Sé, e não os tribunais seculares, deve manter uma "competência exclusiva" sobre estes delitos, e - já que estamos – (iii) persiste em proteger os sacerdotes que levam a um extremo insofrível o “Deixai vir a mim as crianças, e não as impeçais,...” (Lucas 18: 16-17).

A proposta do Sumo Pontífice sobre os critérios autorizados para julgar, reparar e punir os bispos que consentem com este tipo de crime é, para usar as palavras de A. C. Grayling, como sugerir “a la zorra que dicte el reglamento para la caza del zorro”. Bem disse o primeiro ministro de Irlanda, Enda Kenny, em um assombrosamente penetrante, admirável e valente discurso concernente ao informe Cloyne sobre o escândalo dos abusos sexuais por parte do clero católico: «Por primera vez en Irlanda, un informe sobre abuso sexual infantil muestra un intento de la Santa Sede para frustrar una investigación dentro de una república soberana y democrática. Hace tres años, no tres décadas. Al llevar esto a cabo, el informe Cloyne excava en las disfunciones, la desconexión, el elitismo y el narcisismo que domina la cultura actual del Vaticano. (...) El Cardenal Joseph Ratzinger ha dicho: "Las normas de conducta apropiadas para la sociedad civil o el funcionamiento de una democracia no pueden ser aplicados pura y simplemente a la iglesia." Como primer ministro, quiero dejar totalmente claro que por lo que respecta a la protección de los niños de este Estado, las normas de conducta que la iglesia considera adecuadas para sí misma, no pueden ser y no serán aplicadas al funcionamiento de la democracia y de la sociedad civil en esta república.[…] Esto no es Roma. Es la República de Irlanda».

Se é certo que parece um despropósito tentar penetrar com nossa limitada e pecadora inteligência humana na incomensurável e infalível deliberação papal – e talvez nem deveríamos intentar, pois seria um pecado de soberbia –, não menos acertado e descomplicadamente fácil é admitir que as normas da moral e principalmente do direito a que chamamos civilizada proíbem excluir da apreciação dos tribunais seculares de cada Estado soberano, de forma unilateral, canônica e incondicional, a apuração, o julgamento e a penalização de tão horrendos, escandalosos, pusilânimes, inumanos, nefandos e imperdoáveis delitos.

De fato, não é necessário ser nenhum lince ou estar dotado de um desmedido sentido comum para dar-se conta de que a mencionada postura da igreja, sempre inspirada pelo Espírito Santo e/ou seguindo os ditames de um deus de quem (ou “do que”) o Papa é vicário e agente exclusivo na Terra, é de uma prepotência perversa, monstruosamente protetora e deficientemente justa. Tentem explicar a um pai e/ou a uma mãe com uma inteligência normal que o bispo que aceitou, silenciou, condescendeu ou incentivou tacitamente ao sacerdote que violou e abusou de seu filho (a) pequeno será julgado e punido pela mesma instituição religiosa (uma comunidade de interesses claramente particulares) que o acolhe, “educa”, protege e sustenta.

Expliquem-lhes também que esta alternativa exclui qualquer possibilidade de que este hipotético sacerdote (cúmplice silencioso e conivente) seja julgado e punido por um poder estatal legitimamente constituído e com as garantias, a imparcialidade e sanções próprias de um Estado de Direito. E perguntem depois a este pai/mãe qual destas duas opções elegeriam. Podem estar seguros de que, salvo no caso de que padeçam de alguma lesão cerebral, sua resposta será “a segunda”.

Que um Estado soberano não queira submeter-se às leis de outro é algo bastante lógico. Mas, formalismos jurídicos a parte, o Vaticano não resulta um país ao uso. Qualquer pessoa que tenha visitado suas dependências haverá concluído por si mesma de que se trata de uma espécie de ficção - ao estilo de outras como a de Mônaco, para por um exemplo. Uma “papalândia” para devotos que sequer pertence à União Européia e só viável na medida em que um Estado de verdade, Italia neste caso, o tolere. Seu verdadeiro reino não é deste mundo de liberdade e igualdade, impostos e delitos, leis e códigos pactados, senão do outro, tido por espiritual ou extranatural, no qual qualquer coisa é possível, sempre e quando os fiéis aceitem que procede da comunicação direta que se supõe que existe entre o Papa e a divina trindade (o espetáculo constituído pelo Pai, o Filho e o Espírito Santo).

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Não é estranho, portanto, que a legislação de um verdadeiro Estado soberano acabe chocando cedo ou tarde com toda aquela que derive da vontade de qualquer deus expressada da única forma possível: por meio de seus representantes terrenais. Mas já faz algum tempo que a reforma protestante resolveu o conflito aplicando de maneira taxante a metafórica recomendação feita por Jesus de “dar a César o que é de César e a Deus o que pertence a Deus”. Esta separação entre o mundo laico e o religioso, sobra dizer, foi um dos fundamentos da aparição dos Estados modernos, porquanto o poder religioso “deixou” de atender aos assuntos políticos, de interferir em questões de justiça secular e de usurpar os poderes legítimos das autoridades civis, centrando-se no que forma parte da mensagem bíblica e dos importantíssimos, complexos e insondáveis assuntos próprios dos sacros dogmas: como se há bases teológicas e litúrgicas para crer que as almas das crianças mortas sem batizar vão diretamente ao paraíso, se há algum mandado divino que envie diretamente ao inferno e sem escala os sacerdotes que abusam de menores inocentes, se é certo que ver as penas dos condenados no inferno incrementa a felicidade dos beatos no céu; se havia ou não burro e vaca no presépio de Belém, se a virgindade da mãe de Jesus é uma verdade “inequívoca”, etc....etc.

Assim que a postura do Vaticano de furtar-se covardemente às leis seculares nos conduz a uma época anterior da que separou Igreja e Estado, com umas consequências difíceis de aceitar. É um colossal e soberano equívoco conceder essa petição de princípio: a igreja católica não tem autoridade moral nem tampouco política para adotar este tipo de decisão, com a naturalidade de quem habita em um universo paralelo, infringindo um dano irreparável às pessoas, condenando-lhes ao sofrimento, não respondendo adequadamente ao mal e protegendo a deliquentes.

Depois de tudo, ceder aos caprichos da Santa Sé neste assunto também pode gerar enormes problemas. Imaginem, por um momento, se a mesma atitude for adotada por alguns líderes religiosos islâmicos, pelo Arcebispo de Canterbury e, no pior dos casos, pelo bispo Edir Macedo ou o pastor Marco Feliciano. Imaginem o que ocorreria se todas estas autoridades espirituais pretendessem excluir a potestade de um juiz secular para decidir sobre um delito de pedofilia (ou sua correspondente ocultação e aquiescência) praticado por um dos membros de suas respectivas religiões.

Nestes casos, somente nos restaria duas alternativas: (i) admitir que a “verdade” e a “justiça” somente detêm aqueles que falam em nome de um deus determinado e abraçar a católica como a única religião legítima para inteferir nos assuntos próprios do Estado (quer dizer, a única com autoridade para impor a obrigação de residir aqui abaixo segundo as leis e valores de outro mundo), ou (ii) assumir sem medo de errar que o gesto do Vaticano, ao proclamar-se soberano em termos legais, não passa de um ataque gratuito e desesperado, uma forma mais de seguir “haciendo mucho daño al mundo, por más que reivindique que la bondad es su patrimonio”. (A. C. Grayling)

Nem sequer aqueles que creem na existência de um deus onipresente e providente, que vela pelo bem estar de todos e cada um de nós, são capazes de imaginar e afiançar que os poderes mais altos de um Estado sejam excluídos da potestade de apreciar e julgar as pretensões de cada cidadão por ver aliviada suas particulares desgraças pessoais. Apoiar cegamente este tipo de delírio canônico se converte em uma bandeira defendida curiosamente por aqueles que parecem não ter (ou se negam a ter) uma dimensão real do sofrimento humano quando este ronda a impessoalidade.

Quem, em seu sano juízo e livre vontade, gostaria de ver o bispo protetor de um sacerdote violador de um filho(a) julgado pelo próprio Vaticano? Melhor dito: Quem, em seu sano juízo e livre vontade, gostaria de “viver” em um Estado impotente para julgar e castigar um bispo com tais “virtudes cristãs”, favorecedor e protetor de algum sacerdote violador de um filho (a), um neto (a), um sobrinho (a) querido..., ou até mesmo de um “filho do vizinho”? Por acaso sabe o amável leitor (a) que nenhum bispo, até o momento, foi castigado por não impedir ou colocar fim aos abusos sexuais de um sacerdote e que, de continuar assim, a pedofilia seguirá sendo o desporte extraoficial nas filas da igreja católica?

Suponho que não há nada mais que dizer. É provável, como disse Aristóteles, que o costume de crer em qualquer coisa impeça algumas pessoas de observar e de superar suas motivações para apreciar com realismo maneiras de pensar alternativas, mas qualquer indivíduo que se preocupe com o destino dos demais (principalmente quando os demais são crianças) faria bem em reconhecer que a combinação de um grande poder com uma grande estupidez é simplesmente aterrorizante. Só requer abrir bem os olhos, ser compassivo e virtuoso, e usar o bom senso.

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Sobre o autor
Atahualpa Fernandez

Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España; Especialista Direito Público/UFPa./Brasil; Profesor Colaborador Honorífico (Associate Professor) e Investigador da Universitat de les Illes Balears, Cognición y Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB/España; Independent Researcher.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERNANDEZ, Atahualpa. Santa Sé e pedofilia: Justiça imperfeita. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4376, 25 jun. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/40058. Acesso em: 22 dez. 2024.

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