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A indispensabilidade da presença do representante do Ministério Público na audiência criminal:

a impossibilidade jurídica da audiência unilateral

26/06/2015 às 12:23
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É uníssono o entendimento doutrinário de que é juridicamente impossível o magistrado realizar uma audiência criminal sem a presença do defensor. E quanto ao membro do MP?

1.Audiência realizada sem o defensor do acusado.

É uníssono o entendimento doutrinário de que é juridicamente impossível o magistrado realizar uma audiência sem a presença do defensor.

Tourinho Filho, acompanhado por toda doutrina brasileira, ensina:

“Nenhum acusado, ainda que ausente ou foragido, será processado ou julgado sem defensor. Por isso mesmo, a não-nomeação de defensor ao réu presente, ou mesmo ao réu ausente, pouco importando a razão da ausência, será motivo de nulidade”. [1]

Não há a mínima divergência no entendimento jurisprudencial. Destarte, audiência realizada sem o defensor do acusado causará nulidade absoluta.

Destaca-se a jurisprudência do STJ e STF

STJ: Foi realizada audiência para oitiva de testemunha de acusação, em 17/4/2000, sem a presença do advogado do paciente, não tendo o juiz de primeiro grau, na oportunidade, nomeado defensor e, na sentença, o juiz valeu-se desses depoimentos para amparar sua conclusão sobre a autoria e a materialidade. Assim, verifica-se o constrangimento ilegal sofrido pelo paciente que conduz à nulidade absoluta do processo a partir do vício reconhecido, por inequívoco cerceamento de defesa. Logo, a Turma anulou o processo desde a audiência da oitiva de testemunhas de aval da denúncia realizada sem a presença de defensor e, após o paciente responder em liberdade, assegurou o prosseguimento da referida ação penal, facultando a ele ser novamente interrogado. [2]

STF: É causa de nulidade processual absoluta ter sido o réu qualificado e interrogado sem a presença de defensor, sobretudo quando sobrevém sentença que, para o condenar, se vale do teor desse interrogatório. [3]


2.Audiência realizada sem a presença do titular da ação penal.

Estranhamente, quando o tema é “audiência realizada sem a presença do representante do Ministério Público”, a doutrina é quase silente.

Entendemos que um mesmo fenômeno processual, qual seja, ausência de uma das partes na instrução criminal, não pode ter tratamento diferenciado, isso porque, como bem esclarece Antônio Scarance Fernandes:

“A Constituição, ao consagrar o contraditório no art. 5, LV, garante-o no processo criminal não somente ao acusado, mas também ao Ministério Público. Não se pode invocar, para repelir essa afirmação, o argumento de que a norma constitucional se destina a garantir apenas o individuo. Ao se exigir o contraditório também em relação ao Ministério Público, está-se também garantindo o individuo, dando-se a todos a certeza de acusação e julgamento imparciais e igualitários”[4].

Portanto, sendo o Ministério Público o dominus litis da ação penal pública, uma audiência realizada sem a presença de um dos seus representantes (promotor(a) ou procurador(a)), causa nulidade absoluta, por afrontar dois princípios constitucionais, a saber:

2.1. Violação do princípio do contraditório.

O conceito lógico de contraditório pressupõe duas figuras, do dizer e do contradizer, e não uma só, como escreve Scarance Fernandes, citando passagem de Carulli.[5]

Segundo Mirabete, do princípio do contraditório decorre o princípio da igualdade processual, ou seja:

“A igualdade de direitos entre as partes acusadora e acusada, que se encontram num mesmo plano, e a liberdade processual, que consiste na faculdade que tem o acusado de nomear o advogado que bem entender, de apresentar as provas que lhe convenham etc.”.

No Processo Penal, a igualdade é tão plena que podemos sintetizar o princípio com uma salutar frase de Carneiro Leão:

“Em juízo não pode o acusador sufocar o direito e as garantias do acusado, nem este pode burlar a ação da Justiça e os direitos do acusador”.

Luigi Ferrajoli ensinava que:

“Para que a disputa se desenvolva lealmente e com paridade de armas, é necessária, (...), a perfeita igualdade entre as partes”.

Portanto, a audiência realizada na ausência do Ministério Público viola do princípio da paridade das armas, causando grave desigualdade processual comprometedora da verdade que deve alicerçar a sentença penal, pois, conforme destacou o Ministro Marco Aurélio no HC 83.255/SP:

“O tratamento igualitário das partes é a medula do devido processo legal, descabendo, na via interpretativa, afastá-lo, elastecendo prerrogativa constitucionalmente aceitável”.

No mesmo sentido, o amigo Fernando da Costa Tourinho Filho:

“Sendo o órgão do Ministério Público o titular da ação penal pública, seu comparecimento em todos os seus termos é obrigatório. Acusador e Defensor devem estar presentes em todos os atos do processo. O princípio do contraditório exige a presença de ambos. Realizado o ato sem a presença do Ministério Público, a nulidade é insanável. Se por acaso o Ministério Público não comparecer à realização do ato, cumprirá ao Juiz, a quem cabe prover à regularidade do processo, comunicar o fato ao seu substituto legal para que ele participe da audiência. Não logrando êxito, deverá redesignar a audiência, transmitindo o fato à própria Procuradoria-Geral de Justiça. A presença, pois, do Ministério Público, em todos os termos da ação por ele intentada, é de rigor, sob pena de nulidade.”[6]

Alguns doutrinadores definem o princípio do contraditório como corolário da ampla defesa. Entendo ser um grande equívoco, pois o princípio em estudo é consequência lógica da igualdade.

De forma analógica, podemos dizer que, em uma guerra, devem-se propiciar as mesmas armas aos contendores, e, em nenhuma hipótese, será possível conceder um melhor armamento a uma das partes. Veja que o princípio supõe completa igualdade entre acusação e defesa; portanto, qualquer restrição ilegal poderá acarretar:

a) cerceamento de defesa;

b)  cerceamento de acusação.

Badaró, em sua obra, citando Ortel Ramo (relação entre acusação e sentença) é muito feliz quando destaca:

“Não se pode esquecer de que o princípio do contraditório não diz respeito à defesa ou ao direito do réu. O princípio deve aplicar-se em relação a ambas as partes, além de também ser observado pelo próprio juiz.” [7]

Denota-se que qualquer restrição indevida ao direito de defesa ou acusação acarretará impreterivelmente a nulidade absoluta do processo por infringência ao princípio do contraditório.

Destaco que o Ministério Público e o acusado são partes no Processo Penal, pelo que, se ao acusado estão assegurados constitucionalmente o contraditório e a ampla defesa (art. 5°, LV), também ao Ministério Público devem ser conferidos os mesmos direitos, porquanto essa norma constitucional não é dirigida somente ao acusado, mas também ao Ministério Público, pois refere “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.

2.2. Violação do princípio acusatório

No acusatório as funções de acusar, defender e julgar devem ser exercidas por pessoas distintas.

2.2.1. Características do sistema acusatório:

a) Ao juiz caberá: julgar, dirimir conflitos e preservar os direitos fundamentais.

b) As partes farão a gestão da prova, com duas distinções:

1 – o Ministério Público e o querelante acusam;

2 – a defesa apresenta todas as teses possíveis para preservação do direito do acusado.

O mestre Tourinho[8] elenca as principais características do sistema acusatório:

a)      o contraditório como garantia político-jurídica do cidadão;

b)      as partes, acusador e acusado, em decorrência do contraditório, encontrando-se em situação de igualdade;

c)       o processo é público, fiscalizável pelo olho do povo (excepcionalmente se permite uma publicidade restrita ou especial);

d)      as funções de acusar, defender e julgar são atribuídas a pessoas distintas e, logicamente, não é dado ao juiz iniciar o processo (ne procedat judex ex officio);

e)      o processo pode ser oral ou escrito;

f)       existe, em decorrência do contraditório, igualdade de direitos e obrigações, pois non debet licere actori, quod reo non permittitur;

g)      a iniciativa do processo cabe à parte acusadora que poderá ser o ofendido ou seu representante legal, qualquer cidadão do povo ou órgão do Estado, função que, hoje, em geral, cabe ao Ministério Público.

Acrescento à lição do renomado amigo as características infracitadas:

h)      a gestão da prova, ou seja, a produção de provas cabe exclusivamente às partes;

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i)       manutenção da imparcialidade real e plena por parte do magistrado;

j)       ausência de provas tarifadas e adoção do princípio do livre convencimento motivado;

l)       a tutela jurisdicional (CF, art. 5°, XXXV);

m)     possibilidade de coisa julgada;

n)      a garantia do juiz natural (CF, art. 5°, XXXVII e LIII);

o)      a motivação dos atos decisórios (CF, art. 93, IX)

p)      garantia do duplo grau de jurisdição;

q)      repúdio às provas ilícitas;

r)       adoção do princípio da não culpabilidade antecipada (CF, art. 5°, LVII);

s)       sistema é típico de Estados democráticos.

A Constituição Federal adotou o princípio acusatório ao atribuir ao Ministério Público a missão de alegar e provar os fatos criminais, portanto, adotou de forma expressa (129, inciso I) o princípio acusatório.

Na exposição de motivo do Código de Processo Penal, há claramente a opção pelo princípio acusatório, in verbis:

V – O projeto atende ao princípio ne procedat judex ex officio, que, ditado pela evolução do direito judiciário penal e já consagrado pelo novo Código Penal, reclama a completa separação entre o juiz e o órgão da acusação, devendo caber exclusivamente a este a iniciativa da ação penal.

O sistema acusatório é um imperativo do moderno processo penal, frente à atual estrutura social e política do Estado. Assegura a imparcialidade e a tranquilidade psicológica do juiz que irá sentenciar, garantindo o trato digno e respeitoso com o acusado, que deixa de ser um mero objeto para assumir sua posição de autêntica parte passiva do processo penal.[9]

Destaque do futuro no processo penal:

Para o presidente da comissão que estrutura o novo Código de Processo Penal, Hamilton Carvalhido (Ministro do STJ):

“O juiz não deve acumular funções de policial. Daí a proposta de criação de um juiz de garantia, cuja competência, durante a fase de investigação, seria tratar das questões relativas ao respeito dos direitos fundamentais”.

E ainda completa:

“O juiz tem que julgar e deve se manter como tal. A acusação incumbe ao Ministério Público; a investigação, à polícia e o julgamento, ao juiz, que não tem de produzir prova de ofício”.

O futuro Código de Processo Penal tratará a matéria da mesma forma que estamos comentando, ou seja, o Código de Processo Penal será reformulado para adotar o princípio acusatório, vide art. 4° do futuro Processo Penal, in verbis:

“O processo penal terá estrutura acusatória, nos limites definidos neste Código, vedada a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação”.

José Frederico Marques, referindo-se aos juízes que insistem em fazer a gestão da prova, comportando-se como órgão acusador, dizia:

Se temos um Ministério Público adestrado e bem constituído, não se compreende que ele figure como quinta roda do carro, ali permanecendo em posição secundária ou simplesmente decorativa. Os interesses da repressão ao crime ele os encarna não só para movimentar inicialmente a ação penal como ainda para atuar, com energia e dinamismo, durante a instrução e demais fases do processo.[10]

Como destaca Jacinto Nelson de Miranda Coutinho: “a característica mais importante do sistema acusatório é justamente o fato de a gestão da prova não estar nas mãos dos juízes, mas ser confiada às partes”, portanto, fica claro que com a instrução criminal realizada na ausência do representante do Ministério Público, o juiz substituirá a atuação probatória do órgão de acusação, fazendo a gestão das provas e, destarte, causando impreterivelmente uma nulidade insanável.


Notas

[1] (TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal – vol. 3. São Paulo: Saraiva, 2012).

[2] (HC 102.226-SC, Rel. Min. Og Fernandes, julgado em 3/2/2011 e Superior Tribunal de Justiça – 5ª Turma – Habeas Corpus nº 39.430/DF – Rel. Laurita Vaz).

[3] (Supremo Tribunal Federal – 1ª Turma – Recurso em Habeas Corpus nº 87.172/GO – Rel. Cezar Peluso).

[4] (in  Processo Penal Constitucional. Ed. RT, 1997, p. 137).

[5] (No mesmo sentido: SCARANCE FERNANDES, Antônio. Processo Penal Constitucional, p. 57).

[6]  TORINHO FILHO, Fernando da Costa. Código de Processo Penal comentado, 8ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 258.

[7] (No mesmo sentido: BADARÓ, Gustavo Henrique Rigni Ivahi. Correlação entre acusação e sentença, p. 39).

[8] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 1990, p. 81.

[9] No mesmo sentido: LOPES Jr., Aury, Direito Processual Penal e sua conformidade constitucional, vol. I, 3a d.,. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2008

[10] (in Elementos de direito processual penal, v. 2. p.285);

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Sobre o autor
Francisco Dirceu Barros

Procurador Geral de Justiça do Estado de Pernambuco, Promotor de Justiça Criminal e Eleitoral durante 18 anos, Mestre em Direito, Especialista em Direito Penal e Processo Penal, ex-Professor universitário, Professor da EJE (Escola Judiciária Eleitoral) no curso de pós-graduação em Direito Eleitoral, Professor de dois cursos de pós-graduação em Direito Penal e Processo Penal, com vasta experiência em cursos preparatórios aos concursos do Ministério Público e Magistratura, lecionando as disciplinas de Direito Eleitoral, Direito Penal, Processo Penal, Legislação Especial e Direito Constitucional. Ex-comentarista da Rádio Justiça – STF, Colunista da Revista Prática Consulex, seção “Casos Práticos”. Colunista do Bloq AD (Atualidades do Direito). Membro do CNPG (Conselho Nacional dos Procuradores Gerais do Ministério Público). Colaborador da Revista Jurídica Jus Navigandi. Colaborador da Revista Jurídica Jus Brasil. Colaborador da Revista Síntese de Penal e Processo Penal. Autor de diversos artigos em revistas especializadas. Escritor com 70 (setenta) livros lançados, entre eles: Direito Eleitoral, 14ª edição, Editora Método. Direito Penal - Parte Geral, prefácio: Fernando da Costa Tourinho Filho. Direito Penal – Parte Especial, prefácios de José Henrique Pierangeli, Rogério Greco e Júlio Fabbrini Mirabete. Direito Penal Interpretado pelo STF/STJ, 2ª Edição, Editora JH Mizuno. Recursos Eleitorais, 2ª Edição, Editora JH Mizuno. Direito Eleitoral Criminal, 1ª Edição, Tomos I e II. Editora Juruá, Manual do Júri-Teoria e Prática, 4ª Edição, Editora JH Mizuno. Manual de Prática Eleitoral, Editora JH Mizuno, Tratado Doutrinário de Direito Penal, Editora JH Mizuno. Participou da coordenação do livro “Acordo de Não Persecução Penal”, editora Juspodivm.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BARROS, Francisco Dirceu. A indispensabilidade da presença do representante do Ministério Público na audiência criminal:: a impossibilidade jurídica da audiência unilateral. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4377, 26 jun. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/40213. Acesso em: 21 nov. 2024.

Mais informações

Texto integrante da 1ª edição do livro “Curso de Processo Penal para Concursos”, Doutrina-Jurisprudência e mais de 2000 questões solucionadas. Lançamento em julho de 2015. Atualizado com a reforma novo CPC.

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