No âmbito do Ministério Público do Estado da Bahia, foi criado um Conselho (CONCRIM) formado por Procuradores e Promotores de Justiça, com o objetivo de promover uma integração nas diretrizes de atuação dos seus membros da área criminal, por meio de posicionamentos institucionais não vinculantes.
Segundo o Procurador-Geral de Justiça, Dr. Márcio Fahel, o Conselho reflete uma maturidade institucional por parte do Ministério Público baiano: “Ao aproximar os agentes ministeriais de primeira e segunda instâncias em torno de uma proposta de harmonização de entendimentos, o Ministério Público contribui para o fortalecimento da estabilidade jurídica, um dos postulados da nossa Constituição Federal. E o melhor: estamos fazendo isso de forma voluntária, por iniciativa própria”, ressaltou.
O Presidente do Conselho e Coordenador das Procuradorias de Justiça Criminais, o Procurador de Justiça Dr. Moisés Ramos Marins, ressaltou o papel aperfeiçoador do Conselho: “O CONCRIM será a mais importante ferramenta no alinhamento institucional da atuação de procuradores e promotores Criminais na Bahia.”
O primeiro encontro do Conselho foi marcado pela palestra do Promotor de Justiça do Rio Grande do Sul, Dr. Davi Medina da Silva. Ex-Coordenador do Centro de Apoio Operacional Criminal no Ministério Público gaúcho, o Promotor de Justiça foi também um dos idealizadores do CONCRIM naquele estado. Para ele, o Conselho levou o Ministério Público do Rio Grande do Sul a “um processo de entendimento comum sem precedentes na área criminal”. “Uma das chaves do sucesso do trabalho no Sul também está sendo aplicada aqui na Bahia: a reunião entre membros da primeira e da segunda instância. Somente por meio desse congraçamento é possível conhecer o problema criminal de forma holística”, pontuou Medina, frisando que, após o CONCRIM gaúcho, o Ministério Público ganhou um maior protagonismo criminal no estado: “Por meio da unidade e da harmonização, criamos consenso em torno de posicionamentos institucionais, o que nos fez avançar bastante, mesmo nas mais polêmicas áreas do Direito Criminal.”
Para explicar a proposta de dinâmica do Conselho, o Coordenador do Centro de Apoio Operacional Criminal do Ministério Público baiano, o Promotor de Justiça Dr. Pedro Maia, destacou que os posicionamentos firmados no CONCRIM não terão caráter vinculante: “Cada promotor terá, como lhe assegura a Constituição, sua independência funcional resguardada. O trabalho a ser desenvolvido aqui visa tão somente alinhar posicionamentos, enunciados capazes de pautar a atuação da instituição.”. De acordo com Dr. Pedro Maia, o método para estabelecer essas diretrizes ainda está em construção. “A princípio, nossa ideia é criar grupos de interesse abordando temas específicos, a exemplo de 'cautelares', 'controle externo', 'criança e adolescente', 'crime organizado', 'crimes contra a vida', 'crimes contra o patrimônio', 'execução penal' e 'violência doméstica', dentre outros. No âmbito de cada uma dessas áreas, o Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais recolherá informações de Procuradores e Promotores de Justiça, a fim de sistematizar as reuniões, propondo as pautas prioritárias no que toca às questões divergentes”, concluiu.
Pois bem.
Dando continuidade aos trabalhos, o referido Conselho acabou de publicar seus três primeiros Enunciados.
O Enunciado nº. 01 tem a seguinte redação: No que concerne à aplicabilidade do § 4º do art. 33 da Lei 11.343/2006, a dedicação do agente a atividades criminosas pode ser extraída de elementos como a quantidade, diversidade e natureza do entorpecente apreendido, da existência de condenações sem trânsito em julgado, ações penais e inquéritos policiais em curso, bem como de procedimentos investigatórios criminais, como obstáculo à concessão do referido benefício." (Decisão unânime tomada em 29 de maio de 2015).
Discordamos frontalmente!
Aliás, antes de adentrarmos o mérito do Enunciado, entendo relevante transcrever trecho de um trabalho do Professor Marcelo Neves:
"O título deste artigo tem como referência uma passagem de Jacques Derrida no ensaio Fazer Justiça a Freud, em que ele faz objeções às críticas de Michel Foucault à psicanálise freudiana. Derrida sustenta que, diferentemente de René Descartes e do iluminismo, Freud põe a “razão em diálogo com a desrazão”. É claro que não se trata, nesse contexto, de um diálogo no sentido da teoria do discurso ou da democracia deliberativa, orientado contrafactualmente para o consenso ou para a busca do melhor argumento. Trata-se de reconhecer a precariedade da “razão”, pronta para aprender com a sua contraparte, a desrazão, em processo paradoxal de reconstruções ou ressignificações permanentes. Uma “razão” sem “diálogo” com a “desrazão” seria opressora e excludente. A ironia expressa no título supõe a seguinte questão: e quando a “desrazão” for incapaz de “dialogar” com a “razão”? A resistência ao diálogo impede, nesse caso, qualquer aprendizado, reconstrução ou ressignificação transformadora na direção da autonomia.(...) Ocupada na maior parte por advogados, magistrados e membros do Ministério Público envolvidos regularmente nas contendas judiciais de natureza constitucional, as faculdades de direito tendem a reproduzir as decisões do Supremo Tribunal Federal em um tipo de dogmática ingênua, transformada em “casuística” à brasileira: soma de decisões sem análise da cadeia decisória, como se houvesse uma racionalidade evidente na solução dos casos. A construção de uma doutrina jurídica mais crítica em relação ao desempenho do Supremo Tribunal Federal não levará à superação de irracionalidades decisórias sedimentadas historicamente, mas pode servir como “irritações” que forcem, em certa medida, à abertura da “desrazão” à “razão”.[1]
Evidentemente que a causa especial de diminuição do quantum da reprimenda prevista no art. 33, § 4º., da Lei nº. 11.343/06 não pode ser afastada em decorrência de processos não transitados em julgado, salvaguardando o princípio da presunção de inocência.
Com efeito, tendo em vista que o Verbete nº. 444 da súmula do Superior Tribunal de Justiça (“É vedada a utilização de inquéritos policiais e ações penais em curso para agravar a pena-base”), impede a utilização de ações penais em curso para agravar a pena-base, pode-se entender, com mais razão, a vedação da utilização de processos não transitados em julgado para obstar a incidência da causa de diminuição de pena do art. 33, § 4º., da Lei nº. 11.343/06.
Essa foi a tese firmada pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal agora, exatamente na sessão plenária do dia 17 de dezembro de 2014, durante o julgamento do Recurso Extraordinário nº. 591054, com repercussão geral reconhecida. Sobre a matéria, há pelo menos setenta e três processos nos quais deverá ser aplicado esse entendimento. No recurso, interposto pelo Ministério Público do Estado de Santa Catarina, se discutia a possibilidade de considerar como maus antecedentes, para fins de dosimetria da pena, a existência de procedimentos criminais em andamento contra o sentenciado. O exame da questão teve início no dia 5 de junho de 2014 e voltou à análise do Plenário para a sua conclusão com a leitura do voto do Ministro Celso de Mello. Ele acompanhou o entendimento do relator, Ministro Marco Aurélio, pelo desprovimento do recurso. Naquela ocasião, o relator lembrou que o art. 5º., LVII, da Constituição Federal traz a garantia de que ninguém será considerado culpado antes do trânsito em julgado de sentença condenatória. Segundo o relator, para efeito de aumento da pena somente podem ser valoradas como maus antecedentes decisões condenatórias irrecorríveis, sendo impossível considerar para tanto investigações preliminares ou processos criminais em andamento, mesmo que estejam em fase recursal. No mesmo sentido, o Ministro Celso de Mello, ao seguir a maioria dos votos, deu sentido amplo ao princípio constitucional da presunção de inocência. Ele entendeu que não devem ser considerados como maus antecedentes: processos em andamento, sentenças condenatórias ainda não confirmadas (ou seja, recorríveis), indiciamentos de inquérito policial, fatos posteriores não relacionados com o crime praticado em momento anterior, fatos anteriores à maioridade penal ou sentenças absolutórias. 'Tais situações não permitem que se considere a existência de maus antecedentes diante de um direito fundamental constitucional que assegura, em favor de todos e de cada um de nós independentemente da natureza do ilícito penal supostamente perpetrado, o direito fundamental de sempre ser presumido inocente até o advento do trânsito em julgado', ressaltou o Ministro Celso de Mello.
Tais decisões apenas traduzem o que já está claríssimo na Constituição Federal: o Princípio da Presunção de Inocência.
Anteriormente, o Ministro Celso de Mello deferiu o pedido de liminar no Habeas Corpus nº. 96618, concedendo liberdade ao paciente em caráter liminar. Segundo o Ministro, a mera sujeição de alguém a simples investigações policiais ou a persecuções criminais ainda em curso 'não basta, só por si – ante a inexistência de condenação penal transitada em julgado –, para justificar o reconhecimento de que o réu não possui bons antecedentes ou, então, para legitimar a imposição de sanções mais gravosas, como a decretação de prisão cautelar'. Ao suspender a eficácia do decreto de prisão de Prado até que o mérito da ação ser avaliado pelo tribunal, Celso de Mello disse fazê-lo em respeito ao princípio da presunção constitucional da inocência, pelo qual ninguém poderá ser considerado culpado por um crime até que seja condenado, sem possibilidade de recorrer. Também o Superior Tribunal de Justiça: 'O envolvimento em inquéritos diversos e em vários processos ainda em curso não se presta como indicativo de maus antecedentes, no momento da fixação da pena. Precedentes.' (Recurso Especial nº. 722751⁄RS, 5ª Turma, Rel. Min. Gilson Dipp, DJU de 29⁄08⁄2005). 'Em atenção ao princípio da presunção de inocência, inquérito policial e ações penais em andamento não podem ser considerados como maus antecedentes para, exasperar a pena-base, nos termos do art. 59 do Código Penal.Afastada, assim, a circunstância judicial desfavorável relativa aos maus antecedentes - que foi o único fundamento utilizado pelo magistrado para majorar a reprimenda básica -, deve a pena ser redimensionada para o mínimo legal, qual seja: 06 (seis) anos reclusão.3. Outrossim, tendo sido o referido argumento também empregado pelo julgador para motivar a imposição do regime prisional mais gravoso, deve ser também reformada a sentença, nessa parte, para impor ao Paciente, nos termos do art. 33, § 2.º, alínea b, do Código Penal, o regime inicial semi-aberto.' (Habeas Corpus n.º 80.007⁄RJ, 5ª Turma, de minha relatoria, DJ de 29⁄06⁄2007). 'Firmou-se no âmbito deste Tribunal Superior o entendimento no sentido de que a existência de inquéritos e ações penais em curso não enseja a elevação da pena-base pelos antecedentes ou a título de conduta social ou personalidade do agente. Devida, assim, a redução da sanção básica ao mínimo legal.Orientação sedimentada no verbete n. 444 da Súmula do STJ. Agravo regimental a que se nega provimento.'(AgRg no REsp 1401907/SP, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 20/11/2014, DJe 27/11/2014). Ora, se o art. 5º., LVII, da Constituição proclama que 'ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória', era de todo inadmissível que na dosimetria da pena o Magistrado pudesse levar em consideração 'a existência de inquéritos policiais ou de ações penais sem trânsito em julgado.' Aliás, e para concluir, se temos o princípio constitucional da presunção de inocência, é evidente que 'a existência de inquéritos policiais ou de ações penais sem trânsito em julgado" não podem ser levadas em consideração para absolutamente nada, nem para a dosimetria da pena, muito menos para justificar o encarceramento provisório, como sói acontecer'.”
Imperioso transcrever trecho do supracitrado voto vencedor do Ministro Celso de Mello:
“Sempre sustentei, em decisões proferidas nesta Suprema Corte, a posição externada no acórdão objeto do presente recurso extraordinário, salientando, em decorrência da própria força normativa de que se reveste o postulado constitucional da presunção de inocência (CF, art. 5º, LVII), que a mera existência de procedimentos penais ainda em tramitação não basta para autorizar a formulação, contra o investigado ou o réu, de um juízo negativo de maus antecedentes. Ao assim decidir (RTJ 136/627 – RTJ 139/885 – HC 69.298/RJ, v.g.), tenho enfatizado que a mera sujeição de alguém a simples investigações policiais ou a persecuções criminais ainda em curso não basta, só por si –ante a inexistência de condenação penal transitada em julgado –, para justificar o reconhecimento de que o réu não possui bons antecedentes. Na realidade, a simples existência de situações processuais ainda pendentes de definição revela-se insuficiente para legitimar a formulação de juízo de desvalor quanto à “vita anteacta” referente ao acusado que não sofreu condenação penal irrecorrível.(...) Com efeito, a presunção de inocência – que se dirige ao Estado (para impor limitações ao seu poder, qualificando-se, sob tal perspectiva, como típica garantia de índole constitucional) e que também se destina ao indivíduo (como direito fundamental por este titularizado) – representa uma notável conquista histórica dos cidadãos em sua permanente luta contra a opressão do poder.(...) O que se mostra importante assinalar, nesse ponto, Senhor Presidente, é que, não obstante golpes desferidos por mentes autoritárias ou por regimes autocráticos, que preconizam o primado da ideia de que todos são culpados até prova em contrário (!?), a presunção de inocência, legitimada pela ideia democrática, tem prevalecido, ao longo de seu virtuoso itinerário histórico, no contexto das sociedades civilizadas, como valor fundamental e exigência básica de respeito à dignidade da pessoa humana. Não foi por outra razão que a Declaração Universal de Direitos da Pessoa Humana, promulgada em 10/12/1948, pela III Assembleia Geral da ONU, em reação aos abusos inomináveis cometidos pelos regimes totalitários nazi-fascistas, proclamou, em seu art. 11, que todos se presumem inocentes até que sobrevenha definitiva condenação judicial.(...) Vê-se, desse modo, Senhor Presidente, que a inaceitável repulsa à presunção de inocência, com todas as gravíssimas consequências e limitações jurídicas ao poder estatal que dela emanam, mergulha suas raízes em uma visão incompatível com os padrões ortodoxos do regime democrático, impondo, indevidamente, à esfera jurídica dos cidadãos restrições não autorizadas pelo sistema constitucional.(...) Disso resulta, segundo entendo, que a consagração constitucional da presunção de inocência como direito fundamental de qualquer pessoa há de viabilizar, sob a perspectiva da liberdade, uma hermenêutica essencialmente emancipatória dos direitos básicos da pessoa humana, cuja prerrogativa de ser sempre considerada inocente, para todos e quaisquer efeitos, deve atuar, até o superveniente trânsito em julgado da condenação judicial, como uma cláusula de insuperável bloqueio à imposição prematura de quaisquer medidas que afetem ou que restrinjam a esfera jurídica das pessoas em geral. (…) O fato indiscutivelmente relevante, Senhor Presidente, no domínio processual penal, é que, no âmbito de uma formação social organizada sob a égide do regime democrático, não se justifica a formulação possível, por antecipação ou presunção, de qualquer juízo condenatório, que deve, sempre, respeitada, previamente, a garantia do devido processo, assentar-se – para que se qualifique como ato revestido de validade ético-jurídica – em elementos de certeza, os quais, ao dissiparem ambiguidades, ao esclarecerem situações equívocas e ao desfazerem dados eivados de obscuridade, revelam-se capazes de informar, com objetividade, o órgão judiciário competente, afastando, desse modo, dúvidas razoáveis, sérias e fundadas em torno da culpabilidade do acusado. Meras conjecturas – que sequer podem conferir suporte material a qualquer acusação penal – não se revestem, em sede processual penal, de idoneidade jurídica. Não se pode – tendo-se presente a presunção constitucional de inocência dos réus – atribuir relevo e eficácia a juízos meramente conjecturais, para, com fundamento neles, apoiar um inadmissível decreto condenatório e deste extrair, sem que ocorra o respectivo trânsito em julgado, consequências de índole extrapenal, compatíveis, no plano jurídico, unicamente com um título judicial qualificado pela nota da definitividade.(...) É por essa razão que a jurisprudência desta Suprema Corte enfatiza , com particular veemência, que “Não podem repercutir contra o réu situações jurídico-processuais ainda não definidas por decisão irrecorrível do Poder Judiciário, especialmente naquelas hipóteses de inexistência de título penal condenatório definitivamente constituído (RTJ 139/885, Rel. Min.CELSO DE MELLO). O “status poenalis” e o estatuto de cidadania não podem sofrer – antes que sobrevenha o trânsito em julgado de condenação judicial – restrições que afetem a esfera jurídica das pessoas em geral e dos cidadãos em particular. Penso ser importante, desse modo, dar-se consequência efetiva ao postulado constitucional da presunção da inocência, que representa uma prerrogativa de caráter bifronte, cujos destinatários são, de um lado, o Poder Público, que sofre limitações no desempenho das suas atividades institucionais, e, de outro, o próprio cidadão, que encontra, nesse princípio, o fundamento de uma garantia essencial que lhe é reconhecida pela Constituição da República e que se mostra inteiramente oponível ao poder do Estado, neutralizando-lhe, por isso mesmo, qualquer iniciativa que objetive impor a qualquer pessoa restrições à sua esfera jurídica, sem que exista, para tanto, qualquer título judicial definitivo.”
Ademais, observamos que a natureza e a quantidade da droga apreendida já foram utilizadas pelo Magistrado quando da aplicação da pena, violando, assim, o princípio da proibição do bis in idem.
A propósito, por votação unânime, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal concedeu parcialmente o Habeas Corpus nº. 119654 para restabelecer decisão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais mais favorável a um réu condenado por tráfico de drogas. A Turma afastou decisão do Superior Tribunal de Justiça que havia determinado o retorno do processo para que este levasse em consideração, na primeira e na terceira fases da dosimetria da pena, a quantidade da droga apreendida, com a reavaliação do regime prisional e da conversão da pena de detenção em penas restritivas de direitos. A Turma seguiu integralmente o voto do relator, Ministro Teori Zavascki, no sentido de que somente é possível considerar a quantidade da droga como fator para exasperação da pena na primeira ou na terceira fases da dosimetria, porém jamais nas duas, como determinou o Superior Tribunal de Justiça, sob pena de bis in idem.
O Supremo Tribunal Federal reconheceu repercussão geral do tema tratado no Recurso Extraordinário com Agravo n. 666334 e, no mérito, reafirmou jurisprudência da Corte no sentido de que as circunstâncias da natureza e da quantidade de droga apreendida com o acusado de tráfico devem ser levadas em consideração apenas em uma das fases da dosimetria da pena. A decisão majoritária foi tomada por meio de deliberação no Plenário Virtual do STF, seguindo manifestação do relator do processo, Ministro Gilmar Mendes. O relator do caso, Ministro Gilmar Mendes, explicou que o Plenário, ao julgar os Habeas Corpus ns. 112776 e 109193, ambos de relatoria do ministro Teori Zavascki, firmou entendimento de que, em condenação por tráfico ilícito de entorpecentes, a natureza e a quantidade da droga apreendida apenas podem ser levadas em consideração em uma das fases da dosimetria da pena, sendo vedada sua apreciação cumulativa. “Na ocasião, ficou consignado que cabe ao juiz escolher em qual momento da dosimetria essa circunstância vai ser levada em conta, seja na primeira, seja na terceira, observando sempre a vedação ao bis in idem”, destacou. O Ministro se manifestou pelo reconhecimento da repercussão da matéria e pela reafirmação da jurisprudência do Tribunal, no que foi seguido por maioria. Dessa forma, ele conheceu do agravo e deu provimento ao RE para determinar que o juízo de primeiro grau proceda a nova dosimetria da pena, observando o entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal.
Efetivamente, antes desta última decisão, o Supremo Tribunal Federal já havia entendido que as circunstâncias relativas à natureza e à quantidade de drogas apreendidas com um condenado por tráfico de entorpecentes só podem ser usadas, na fase da dosimetria da pena, na primeira ou na terceira etapa do cálculo, e sempre de forma não cumulativa. Esse entendimento foi adotado no julgamento de dois Habeas Corpus (112776 e 109193) que discutiam em qual momento da fixação da pena a informação referente à quantidade e à natureza da droga apreendida em poder do condenado deve ser levada em consideração. No primeiro caso, o réu foi condenado com base no artigo 33 da Lei 11.343/2006, por ter sido flagrado com seis gramas de crack. Já no segundo caso foram apreendidas com o condenado 70 pedras da mesma droga. No Habeas Corpus 112776, ao fixar a pena, o juiz considerou a quantidade de droga tanto na primeira fase, quando se calcula a pena-base, quanto na terceira, momento em que são sopesadas causas que podem aumentar ou reduzir a pena. Já no Habeas Corpus 109193, o juiz analisou essas circunstâncias apenas na terceira fase. Os processos foram encaminhados ao Plenário pela Segunda Turma da Corte, uma vez que, nas palavras do relator dos Habeas Corpus, Ministro Teori Zavascki, haveria divergência entre as posições adotadas pelas duas Turmas do Supremo com relação ao artigo 42 da Lei 11.343/2006. O dispositivo diz que o juiz, na fixação das penas, considerará, com preponderância sobre o previsto no artigo 59 do Código Penal, a natureza e a quantidade da substância ou do produto, a personalidade e a conduta social do agente. Para o relator, usar a informação referente à natureza e à quantidade drogas em duas fases do cálculo da pena caracteriza, realmente, o bis in idem (dupla punição pelo mesmo fato). Segundo ele, o juiz pode escolher em qual momento da dosimetria essa circunstância vai ser levada em conta, mas apenas em uma fase. Esse fato privilegia, de acordo com o Ministro, o poder de discricionariedade concedido ao juiz na dosimetria, como também o princípio constitucional da individualização da pena. A discricionariedade de definir o momento de sopesar as circunstâncias não é novidade na jurisprudência da Corte, salientou o Ministro, lembrando que, no caso, deve-se ter o cuidado, sempre, de evitar o bis in idem. Para ele, a circunstância referente à natureza e à quantidade da droga apreendida pode ser usada pelo juiz no momento da dosimetria, tanto na primeira quanto na terceira fase, desde que não cumulativamente. Com base no entendimento adotado, por maioria de votos, os Ministros concederam a ordem no Habeas Corpus 112776, para que o juiz sentenciante proceda à nova dosimetria, analisando as circunstâncias de natureza e quantidade da droga apenas em uma das fases do cálculo da pena ao condenado.
Também sob o argumento da proibição do bis in idem, dois acusados obtiveram êxito, na Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Recurso Ordinário em Habeas Corpus nº. 117488: o relator concluiu que a defesa tinha razão em parte de sua alegação de violação do princípio non bis in idem, citando doutrina e vários precedentes do próprio STF (Habeas Corpus 68942 e 69822, entre outros) no sentido de que pode haver exacerbação da pena base por maior culpabilidade relativamente a um mesmo crime.
A propósito, vejamos Guilherme de Souza Nucci sobre o tema:
“Cuida-se de norma inédita, visando à redução da punição do traficante de primeira viagem, o que merece aplauso. Portanto, aquele que cometer o delito previsto no art. 33, caput ou § 1º., se for primário (indivíduo que não é reincidente, cabe dizer, não cometeu outro delito, após ter sido definitivamente condenado anteriormente por crime anterior, no prazo de cinco anos, conforme arts. 63 e 64 do Código Penal) e tiver bons antecedentes (sujeito que não ostenta condenações definitivas anteriores), não se dedicando às atividades criminosas, nem integrando organização criminosa, pode valer-se de pena mais branda. Estranha é a previsão a respeito de não se dedicar às atividades criminosas, pois não diz nada. Na norma do § 4º, para que se possa aplicar a diminuição de pena, afastou-se a possibilidade de ser reincidente ou ter maus antecedentes. Portanto, não se compreende o que significa a previsão de não se dedicar às atividades criminosas. Se o sujeito é reincidente ou tem maus antecedentes, pode-se supor que se dedique à atividade criminosa. No mais, sendo primário, com bons antecedentes, não há cabimento em se imaginar a dedicação a tal tipo de atividade ilícita.”[2]
O Enunciado nº 02 tem a seguinte redação: "As diligências requeridas pelo Ministério Público, para fins de prova, antes da ação penal, na denúncia, ou após o oferecimento desta, devem ser objeto de apreciação judicial. O indeferimento do pedido, sob argumento de que o Ministério Público pode requisitar diligências diretamente, caracteriza error in procedendo, passível de correição parcial, uma vez que as provas são dirigidas ao juiz, que detém a presidência do processo." (Decisão unânime tomada em 29 de maio de 2015).
Ora, afinal de contas o Ministério Público pode ou não requisitar diligências diretamente? Óbvio que sim, salvo aquelas cobertas pelos sigilos constitucionais.
Tal atribuição transparece suficientemente possível à luz da Constituição Federal e de textos legais. Com efeito, a Lei n.º 8.625/93 (Lei Orgânica da Instituição), no seu art. 26, dispõe caber ao Ministério Público[3]:
“(...)
“II - requisitar informações e documentos a entidades privadas, para instruir procedimentos ou processo em que oficie;”
Comentando este artigo, assim se pronunciou Pedro Roberto Decomain: “É claro que a Instituição está apta a realizar todas as atividades administrativas que sejam indispensáveis ao bom desempenho de suas funções institucionais. Tal será uma direta consequência do princípio de sua autonomia administrativa, que orienta não apenas o funcionamento global da Instituição, mas também a sua atuação em cada caso concreto que represente exercício de suas funções institucionais.”[4]
A propósito, não se deve interpretar uma norma jurídica isoladamente, mas, ao contrário, deve-se utilizar o método sistemático, segundo o qual cada preceito é parte integrante de um corpo, analisando-se todas as regras em conjunto, a fim de que possamos entender o sentido de cada uma delas.
“Não se encontra um princípio isolado, em ciência alguma; acha-se cada um em conexão íntima com outros. O Direito objetivo não é um conglomerado caótico de preceitos; constitui vasta unidade, organismo regular, sistema, conjunto harmônico de normas coordenadas, em interdependência metódica, embora fixada cada uma no seu lugar próprio.”[5]
Karl Larenz, após advertir que se aplicam os princípios interpretativos gerais das leis também à interpretação da Constituição, ensina que “o contexto significativo da lei determina, em primeiro lugar, da mesma maneira, a compreensão de cada uma das frases e palavras, tal como também, aliás, a compreensão de uma passagem do texto é codeterminada pelo contexto.” Esclarece este autor que “uma lei é constituída, as mais das vezes, por proposições jurídicas incompletas – a saber: aclaratórias, restritivas e remissivas -, que só conjuntamente com outras normas se complementam numa norma jurídica completa ou se associam numa regulação. O sentido de cada proposição jurídica só se infere, as mais das vezes, quando se a considera como parte da regulação a que pertence.”[6]
Aliás, segundo Luiz Alberto Machado “o criminalista ortodoxo pensa e age, sem confessar e até dizendo o contrário, como se coexistissem dois ordenamentos jurídicos: um ordenamento jurídico-criminal e outro ordenamento para as demais ciências jurídicas.”[7]
Na Alemanha, lê-se no Código de Processo Penal:
“StPO § 160: (1) (omissis)
“(3). As averiguações da Promotoria deverão estender-se às circunstâncias que sejam de importância para a determinação das conseqüências jurídicas do fato. Para isto poderá valer-se de ajuda do Poder Judicial.
“StPO § 161: Para a finalidade descrita no parágrafo precedente, poderá a Promotoria de Justiça exigir informação de todas as autoridades públicas e realizar averiguações de qualquer classe, por si mesma ou através das autoridades e funcionários da Polícia. As autoridades e funcionários da Polícia estarão obrigados a atender a petição ou solicitação da Promotoria.”
Diante de tudo quanto foi exposto pode e deve o membro do Ministério Público, quando isto lhe é faticamente possível, diligenciar diretamente; é bom que se diga não ter o Ministério Público, muitas das vezes, condições de, motu proprio, fazê-lo, até por carência de material, seja humano, seja físico; quando houver dificuldades, nada impede que seja a diligência requerida ao Juiz de Direito.
Neste aspecto, importante é a observação de Enzo Bello, no sentido que “diante da escassez de recursos humanos e materiais do Ministério Público – afinal a sua quantidade de membros e de estrutura física é ínfima em relação ao tamanho da sua demanda de trabalho -, cumpre a cada membro da instituição conferir um cunho seletivo às suas atividades profissionais (...), de maneira a atribuir uma índole prioritária aos casos em que se tratem de condutas delitivas cuja potencialidade lesiva seja capaz de ocasionar uma verdadeira disfunção social e atingir ou obstar os princípios, fundamentos e metas da República brasileira (isto é, os verdadeiros anseios e perspectivas da nossa sociedade).”[8]
Por fim, o Enunciado nº 03: "O art. 420 do Código de Processo Penal, com a redação determinada pela Lei n.º 11.689/2008, detém natureza processual e deve ser aplicado de imediato, inclusive aos processos em curso, mesmo que tenham por objeto crimes pretéritos." (Decisão unânime também do dia 29 de maio de 2015).
Outro equívoco!
Como se sabe, no ano de 2008 foi promulgada e publicada a Lei nº. 11.689/2008, alterando os arts. 413, 414 e 415 do Código de Processo Penal, determinando-se que a intimação da decisão de pronúncia, doravante, fosse feita por edital, ainda que se tratasse de acusado solto e não encontrado.
Nesta reforma de 2008, uma das grandes novidades foi a exigência de que o acusado, no procedimento do Júri, caso não seja encontrado para ser intimado pessoalmente da decisão de pronúncia, pode sê-lo por edital (art. 420, parágrafo único).
A questão reside em saber se em relação aos autores de crimes praticados (ação ou omissão) anteriormente à vigência do art. 420, parágrafo único, deve o Juiz de Direito determinar a intimação da pronúncia pessoalmente, conforme fixado no anterior art. 415 do Código de Processo Penal, ou não...
Para que se manifeste um entendimento correto, urge que procuremos definir a natureza jurídica da norma ora modificada: seria ela de natureza puramente processual ou, tão-somente, penal; ou híbrida (penal e processual)? Admitindo-se a natureza puramente processual, obviamente não há falar-se em irretroatividade ou ultra-atividade; porém, se aceitarmos que são normas processuais penais materiais (ou híbridas), a ultra-atividade do artigo alterado e a irretroatividade da nova lei impõem-se, pois, indiscutivelmente, sendo disposição mais gravosa deve excepcionar o princípio da aplicação imediata da lei processual penal.
Ora, o direito à informação e as regras do contraditório e da ampla defesa são indiscutivelmente corolários do princípio do devido processo legal (Constituição Federal, art. 5º., LIV). Aliás, esta matéria também é tratada no art. 370 do Código de Processo Penal.
Nada obstante o caráter eminentemente processual de um dispositivo legal que estabeleça o modo como devem ser cientificadas as partes no Processo Penal, entendemos que o fato da lei ter modificado (para pior) a intimação da decisão de pronúncia, torna-o uma norma processual penal material. É norma jurídica de Direito Processual, pois trata de uma forma de ciência de uma decisão judicial (a pronúncia), sem, no entanto, deixar de ser uma norma de Direito Material, visto que também trata de matéria atinente ao Devido Processo Legal e, portanto, ao próprio Direito Constitucional. Nestas condições, ditas normas não são puramente processuais (ou formais, técnicas), mas processuais penais materiais.
O jurista lusitano e Professor da Faculdade de Direito do Porto, Taipa de Carvalho, após afirmar que “está em crescendo uma corrente que acolhe uma criteriosa perspectiva material - que distingue, dentro do direito processual penal, as normas processuais penais materiais das normas processuais formais”, adverte que dentro de uma visão de “hermenêutica teleológico-material determine-se que à sucessão de leis processuais penais materiais sejam aplicados o princípio da irretroactividade da lei desfavorável e o da retroactividade da lei favorável.”[9]
Taipa de Carvalho explica que tais normas de natureza mista (designação também usada por ele), “embora processuais, são também plenamente materiais ou substantivas.” Para ele, constituem exemplos de normas processuais penais materiais, dentre outras, as que estabelecem “graus de recurso”, sendo a lei aplicável aquela vigente “no tempus delicti, isto é, no momento da prática da conduta, independentemente do momento em que o resultado se produza.”[10] (grifo nosso).
Informa, ainda, o mestre português que o alemão Klaus Tiedemann “destaca a exigência metodológica e a importância prática da distinção das normas processuais em normas processuais meramente formais ou técnicas e normas processuais substancialmente materiais”, o mesmo ocorrendo com o francês Georges Levasseur.[11]
Feitas tais considerações, lembra-se que “la individualización de la ley penal más benigna deba hacerse en cada caso concreto, tal como ensina Eugenio Raul Zaffaroni.[12]
A propósito, veja-se a lição de Carlos Maximiliano:
“Quanto aos institutos jurídicos de caráter misto, observam-se as regras atinentes ao critério indicado em espécie determinada. Sirva de exemplo a querela: direito de queixa é substantivo; processo da queixa é adjetivo; segundo uma e outra hipótese orienta-se a aplicação do Direito Intertemporal. O preceito sobre observância imediata refere-se a normas processuais no sentido próprio; não abrange casos de diplomas que, embora tenham feição formal, apresentam, entretanto, prevalentes os caracteres do Direito Penal Substantivo; nesta hipótese, predominam os postulados do Direito Transitório Material.”[13]
Comentando a respeito das normas de caráter misto, assim já se pronunciou Rogério Lauria Tucci:
“Daí porque deverão ser aplicadas, a propósito, consoante várias vezes também frisamos, e em face da conotação prevalecente de direito penal material das respectivas normas, as disposições legais mais favoráveis ao réu, ressalvando-se sempre, como em todos os sucessos ventilados, a possibilidade de temperança pelas regras de direito transitório, - estas excepcionais por natureza.”[14]
Outra não é a opinião de Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho:
“Se a norma processual contém dispositivo que, de alguma forma, limita direitos fundamentais do cidadão, materialmente assegurados, já não se pode defini-la como norma puramente processual, mas como norma processual com conteúdo material ou norma mista. Sendo assim, a ela se aplica a regra de direito intertemporal penal e não processual.”[15]
No sentido do texto, vejamos dois julgados do Tribunal Federal de Recursos da 1ª. Região[16]:
“Em observância ao princípio da irretroatividade da lei penal mais severa (art. 5º, XL, da CF/88), inviável a incidência do regramento do art. 387, IV, do CPP (que possui nítido caráter material), ao caso concreto, pois que os fatos delitivos ocorreram no período compreendido entre julho/2004 à set/2004 e a Lei 11.719/2008, que deu nova redação ao mencionado artigo, conferindo a possibilidade de o julgador, na esfera criminal, fixar valor mínimo para reparação de danos, passou a vigorar no ano de 2008, de modo que dito preceito não pode alcançar os processos em andamento, como na hipótese. 6. Apelação parcialmente provida, apenas para reduzir a pena imposta à acusada e afastar a fixação do valor mínimo de indenização em favor do INSS.” (ACR 200638000115549, Juiz Tourinho Neto - 14/05/2010).
“Exclusão da condenação por reparação do dano, com base no art. 387, IV, do CPP, introduzido pela Lei 11.719, de 20/06/2008, eis que, na data do fato - 29/07/2008 - ainda não tinha eficácia a Lei 11.719, de 20/06/2008, publicada no DOU de 23/06/2008, que só entrou em vigor 60 dias após sua publicação, consoante o seu art. 2º, não podendo tal disposição retroagir, para prejudicar o réu-apelante.” (ACR 200841000075895, Juíza Federal Assusete Magalhães, 14/01/2011).
Com efeito, entendemos que o artigo 420, parágrafo único, do Código de Processo Penal, modificado pela Lei nº 11.689/2008, só é aplicável em relação aos crimes praticados (artigo 4º, do Código Penal – data do fato) posteriormente à vigência da aludida lei.
Considerando que o ato processual de intimação da pronúncia toca diretamente o devido processo legal (seja em relação à ampla defesa, seja em relação ao contraditório ou seja em relação à garantia ao duplo grau de jurisdição), evidentemente, que toda norma processual penal que trate de atos de cientificação processual do acusado insere-se, induvidosamente, no conceito de norma processual penal material, mista ou híbrida, nos termos acima expostos.
Destarte, as normas alteradas em 2008 (art. 413, 414 e 415 do Código de Processo Penal) terão, neste caso, ultra-atividade (repita-se em relação aos crimes praticados ainda quando de sua vigência) e a nova norma (artigo 420, parágrafo único, do Código de Processo Penal) não pode retroagir para reger fatos praticados anteriormente à sua vigência, tendo em vista a proibição contida no artigo 2º. do Código Penal e no art. 5º, XL, da Constituição Federal.
Enfrentando esta questão, o Supremo Tribunal Federal decidiu que, tratando-se “de normas de natureza processual, a exceção estabelecida por lei à regra geral contida no art. 2º. do CPP não padece de vício de inconstitucionalidade. Contudo, as normas de direito penal que tenham conteúdo mais benéfico aos réus devem retroagir para beneficiá-los, à luz do que determina o art. 5º, XL da Constituição federal.” (STF – ADI 1.719-9 – rel. Joaquim Barbosa – j. 18.06.2007 – DJU 28.08.2007, p. 01).
Não é apenas o fato de uma norma está contida em um Código de Processo Penal que a sua natureza será estritamente processual (e dever ser aplicada a regra do tempus regit actum). Como afirmava Vicenzo Manzini, “estar uma norma comprendida en el Código de procedimiento penal o en el Código penal no basta para calificarla, respectivamente, como norma de derecho procesal o de derecho material.”[17]
Concluindo, considerando “que a natureza processual de uma lei não depende do corpo de disposições em que esteja inserida, mas sim de seu conteúdo próprio”[18], entendemos que o art. 420, parágrafo único do Código de Processo Penal terá incidência apenas em relação àqueles agentes que praticaram a infração penal posteriormente à entrada em vigor da nova lei, atentando-se para o disposto nos arts. 2º. e 4º., ambos do Código Penal.[19]
Ainda bem, pelo menos para mim, que os Enunciados não são vinculantes.
Notas
[1]A “desrazão” sem diálogo com a “razão”: teses provocatórias sobre o Supremo Tribunal Federal (http://www.conjur.com.br/2014-out-18/desrazao-dialogo-razao-teses-provocatorias-stf, acessado no dia 02 de novembro de 2014).
[2] Leis Penais e Processuais Penais Comentadas, Editora Revista dos Tribunais, p.782.
[3] Adiante mostraremos disposições semelhantes na Lei Complementar n.º 75/93 (Lei Orgânica do Ministério Público da União).
[4] Comentários à Lei Orgânica Nacional do Ministério Público, Obra Jurídica Editora, ps. 204/205.
[5] Carlos Maximiliano, Hermenêutica e Aplicação do Direito, Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1961, p. 165.
[6] Metodologia da Ciência do Direito, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 3ª. ed., 1997 (tradução portuguesa de José Lamego).
[7] Estudos Jurídicos em Homenagem a Manoel Pedro Pimentel, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1992, p. 239.
[8] Perspectivas para o Direito Penal e para um Ministério Público Republicano, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 335.
[9] Sucessão de Leis Penais. Coimbra: Coimbra, p. 219-220.
[10] CARVALHO, Taipa de, op. cit., p. 220 e 240.
[11] Idem.
[12] Tratado de Derecho Penal. Parte General. Buenos Aires: Ediar, 1987. v I, p. 463- 464.
[13] Direito Intertemporal. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1955, p. 314.
[14] Direito Intertemporal e a Nova Codificação Processual Penal. São Paulo: José Bushatsky, 1975, p. 124.
[15] O Processo Penal em Face da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 137.
[16] Este artigo foi escrito graças a Vitor Soliano, meu ex-aluno, que me enviou, via-e-mail, as duas decisões do Tribunal Regional Federal da 1ª. Região, a partir das quais passei a refletir sobre o assunto. A ele, o meu sincero agradecimento e a minha admiração.
[17] Tratado de Derecho Procesal Penal, Tomo I, Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa-América, 1951, p. 108 (tradução do italiano para o espanhol de Santiago Sentís Melendo e Marino Ayerra Redín).
[18] Eduardo J. Couture, Interpretação das Leis Processuais, Rio de Janeiro: Forense, 4ª, ed., 2001, p. 36 (tradução de Gilda Maciel Corrêa Meyer Russomano).
[19] “Art. 2º. - Ninguém pode ser punido por fato que lei posterior deixa de considerar crime, cessando em virtude dela a execução e os efeitos penais da sentença condenatória. Parágrafo único - A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado.”
“Art. 4º - Considera-se praticado o crime no momento da ação ou omissão, ainda que outro seja o momento do resultado.”