As pessoas ingressam em relações negociais objetivando a satisfação de desejos. É através dessas relações que os indivíduos compram bens e utilizam serviços, sendo certo que os contratos têm função importante na instrumentalização desses interesses individuais.
Na moderna concepção do Direito Contratual, trazida pelas diretrizes formadoras do Novo Código Civil, o aspecto patrimonialista deixou de ser o núcleo. Como se sabe, o Código Civil de 2002 objetivou rechaçar o exacerbado individualismo, fruto de codificações antigas. Nas palavras de Paulo Nalin, contrato é uma “relação jurídica subjetiva, nucleada na solidariedade constitucional, destinada à produção de efeitos jurídicos existenciais e patrimoniais, não só entre os titulares subjetivos da relação, como também perante terceiros[1]”.
Assim, o Direito Contratual encontra-se amparado em valores constitucionais (dos quais o mais forte é o da solidariedade); pode envolver conteúdo existencial (v.g., direitos da personalidade); pode gerar efeitos sobre terceiros (eficácia externa da função social dos contratos) etc.
Buscando a efetivação do valor constitucional da solidariedade, o ordenamento civilista fixou como um dos princípios dos contratos a equivalência material do contrato. Nas palavras de Cláudio Luiz Bueno de Godoy: “...encarando o contrato como instrumento de cooperação entre as partes, não atende o imperativo de justiça a limitação de liberdade em razão de um empreendimento cooperativo em que não se distribuam e se cumpram, de maneira equilibrada, as vantagens mútuas que conduziram os contratantes a confiar um no outro[2]”.
Elementos externos, usualmente posteriores à contratação, podem influenciar negativamente o negócio jurídico, possibilitando, assim, a interferência do Poder Judiciário para modificar as cláusulas contratuais. Pode haver a modificação da base jurídica do contrato, afastando a máxima pacta sunt servanda.
Mas, quanto à possibilidade de alteração posterior de cláusulas contratuais, existem diferenças estando o contrato calcado no Código Civil ou no Código de Defesa do Consumidor.
A revisão judicial por fato superveniente em contrato baseado no Código Civil: a teoria da Imprevisão.
O Código Civil de 2002 contemplou o brocardo rebus sic stantibus (“retornar as coisas como eram antes”), assim como positivou a Teoria da Imprevisão, como se extrai do artigo 317:
Artigo 317, NCC: Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.
E a Doutrina cuidou de elencar quando essa revisão judicial poderia ocorrer:
1°- Os contratos devem ser bilaterais, i.e., sinalagmáticos. Nestes, ambos os contratantes são credores e devedores;
2°- Os contratos devem ser onerosos, com vantagens para ambos os contratantes. Assim, esses contratos devem possuir prestações e contraprestações;
3°- É necessário que o contrato se dê de forma comutativa, com as partes envolvidas completamente cientes das prestações que compõe o mesmo[3].
4°- Os contratos devem ser de execução diferida (cumprimento apenas uma vez, no futuro) ou de trato sucessivo (cumprimento repetidamente no tempo). Em regra, contratos instantâneos não podem ser revistos, pois já aperfeiçoados. Uma das exceções a esta regra está no Enunciado n° 286 da Súmula do STJ:
“A renegociação de contrato bancário ou a confissão da dívida não impede a possibilidade de discussão sobre eventuais ilegalidades dos contratos anteriores”.
5°- É necessário que ocorra motivo imprevisível ou, ainda, acontecimento imprevisível e extraordinário. Quanto a este requisito, o Conselho de Justiça Federal editou, em sua IV Jornada de Direito Civil, dois enunciados ligados ao tema. Vejamos:
Enunciado 17: “A interpretação da expressão “motivos imprevisíveis” constante do art. 317 do novo Código Civil deve abarcar tanto causas de desproporção não previsíveis como também causas previsíveis, mas de resultados imprevisíveis”.
Enunciado 175: ”A menção à imprevisibilidade e à extraordinariedade, insertas no art. 478 do Código Civil, deve ser interpretada não somente em relação ao fato que gere o desequilíbrio, mas também em relação às consequências que ele produz”.
6°- Presença de onerosidade excessiva, i.e., deve ter ocorrido o rompimento do sinalagma obrigacional.
Portanto, nota-se a necessidade de ficarem caracterizados tanto elementos objetivos quanto subjetivos para que um contrato que foi construído sobre os ditames do NCC possa ser revisto pelo Judiciário.
A revisão judicial em contrato baseado no Código de Defesa do Consumidor: a Teoria do Rompimento da Base Objetiva do Contrato.
A relação negocial é caracterizada principalmente pela liberdade de contratar e distratar. Há o império da autonomia privada nessas relações, inclusive para restringir direitos fundamentais, conforme reconhecido pela melhor doutrina[4]. Ainda assim, esta restrição não pode atingir o núcleo essencial do direito fundamental (direitos derivados da Dignidade da Pessoa Humana), quer se adote teorias relativas ou absolutas sobre tal núcleo.
O microssistema da Defesa do Consumidor de normas principiológicas, já com substrato constitucional (artigo 5°, inciso XXXIII e artigo 170, inciso V, da CRFB/88), concretiza um aparato legal defensor do polo mais fraco de uma relação consumerista.
E é exatamente por tentar buscar a melhor defesa para o polo mais fraco da relação consumerista que o CDC adotou uma teoria com requisitos mais brandos quando da necessidade de revisão de um negócio.
À Teoria da Imprevisão, vista em rápidas linhas acima, submetem-se os contratos que usam o Código Civil como base. Quanto aos contratos baseados no CDC, aplica-se a Teoria do Rompimento da Base Objetiva do Contrato, quando a parte busca a revisão contratual.
Diferentemente da Teoria da Imprevisão, a teoria adotada pelo CDC concentra-se no aspecto objetivo, isto é, na quebra da base do negócio jurídico.
Ao adotar esta teoria, o CDC indicou ser irrelevante para o exercício do direito à revisão contratual a imprevisibilidade das circunstâncias supervenientes. Aqui, o importante é o desfazimento da relação de equivalência entre as prestações. Vejamos:
Art. 6º São direitos básicos do consumidor:
[...]
V - a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas.
Assim, como o CDC está construído sobre normas de ordem pública e de interesse social, deve o julgador buscar o reestabelecimento do equilíbrio da avença, através da recomposição da economia contratual. O julgador deve manter o sinalagma funcional do negócio jurídico.
Uma aplicação prática da supracitada teoria diz respeito à revisão de contratos de arrendamento mercantil corrigidos pela variação cambial do dólar. Não obstante a previsibilidade da variação da moeda americana (pois uma alteração de forma gradual sempre é esperada), o que temos visto é uma modificação cambial abrupta, com a consequente alteração da base objetiva de contratos. O equilíbrio contratual nestes negócios jurídicos tem sido rompido. Não haverá necessidade de demonstrações de ordem subjetiva, como os diversos requisitos exigidos pela Teoria da Imprevisão, para que o Judiciário reestabeleça o equilíbrio do contrato. Ficando caracterizada unicamente a quebra da base objetiva, deve o julgador atuar.
Ainda quanto à necessidade de identificação apenas do elemento objetivo para a revisão de contratos do CDC, vale destacar a forma pela qual este código encara a lesão, em contraste com o Código Civil. É cediço que a lesão é vício de negócio jurídico, que pode acarretar anulabilidade do mesmo. Mas, em contratos fundamentados no Código Civil, a caracterização da lesão necessitará de 2 elementos: 1°) a inexperiência (ou necessidade) de um dos contratantes; 2°) a prestação desproporcional que foi criada.
Já em contratos do CDC, a lesão será caracterizada unicamente pela presença do elemento objetivo: a prestação desproporcional. Desta forma, torna-se muito mais fácil para o consumidor demonstrar esse vício, buscando, assim, que o Judiciário altere uma ou várias cláusulas.
Para finalizar, em decisão de 11 de novembro de 2014, publicada no informativo de jurisprudência n° 554 do Superior Tribunal de Justiça, destacou-se um belo exemplo da amplitude da proteção dispensada ao consumidor:
DIREITO DO CONSUMIDOR. RESCISÃO DE CONTRATO DE ARRENDAMENTO MERCANTIL VINCULADO A CONTRATO DE COMPRA E VENDA DE AUTOMÓVEL.
Na hipótese de rescisão de contrato de compra e venda de automóvel firmado entre consumidor e concessionária em razão de vício de qualidade do produto, deverá ser também rescindido o contrato de arrendamento mercantil do veículo defeituoso firmado com instituição financeira pertencente ao mesmo grupo econômico da montadora do veículo (banco de montadora).Inicialmente, esclareça-se que o microssistema normativo do CDC conferiu ao consumidor o direito de demandar contra quaisquer dos integrantes da cadeia produtiva com o objetivo de alcançar a plena reparação de prejuízos sofridos no curso da relação de consumo. Ademais, a regra do art. 18 do CDC, ao regular a responsabilidade por vício do produto, deixa expressa a responsabilidade solidária entre todos os fornecedores integrantes da cadeia de consumo. Nesse sentido, observe-se que as regras do art. 7º, § único, e do art. 25, § 1º, do CDC, estatuem claramente que, “havendo mais de um responsável pela causação do dano, todos responderão pela reparação prevista nesta e nas Seções anteriores.” Amplia-se, assim, o nexo de imputação para abranger pessoas que, no sistema tradicional do Código Civil, não seriam atingidas, como é o caso da instituição financeira integrante do mesmo grupo econômico da montadora. Na hipótese ora em análise, não se trata de instituição financeira que atua como “banco de varejo” – apenas concedendo financiamento ao consumidor para aquisição de um veículo novo ou usado sem vinculação direta com o fabricante –, mas sim de instituição financeira que atua como “banco de montadora”, isto é, que integra o mesmo grupo econômico da montadora que se beneficia com a venda de seus automóveis, inclusive estipulando juros mais baixos que a média do mercado para esse segmento para atrair o público consumidor para os veículos da sua marca. É evidente, assim, que o banco da montadora faz parte da mesma cadeia de consumo, sendo também responsável pelos vícios ou defeitos do veículo objeto da negociação. REsp 1.379.839-SP, Rel. originária Min. Nancy Andrighi, Rel. para Acórdão Min. Paulo de Tarso Sanseverino, julgado em 11/11/2014, DJe 15/12/2014.
Notas
[1] NALIN, Paulo. Do contrato: conceito pós-moderno. Curitiba: Juruá, 2005, p. 255.
[2] GODOY, Cláudio Luiz Bueno de. Função Social do Contrato. São Paulo: Saraiva, 2004, p.8.
[3] Cumpre salientar que existem contratos aleatórios que possuem parte comutativa. É o que se dá, por exemplo, com o prêmio a ser pago nos contratos de seguro. Assim, ainda que essencialmente aleatórios, é possível rever judicialmente a parte comutativa desses contratos, quando presente a onerosidade excessiva.
[4] MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocência Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 3° ed., São Paulo: Saraiva, 2008, p. 278.