A mudança da sociedade: o papel da mulher do início do século XX ao XXI, tendo como parâmetro o Código Civil de 1916 e 2002

06/07/2015 às 16:33

Resumo:


  • O papel da mulher na sociedade passou por transformações ao longo da história, especialmente no século XX com o surgimento dos movimentos feministas.

  • O Código Civil de 1916 apresentava dispositivos que refletiam uma visão preconceituosa em relação às mulheres, como a preferência para o homem em diversas situações.

  • A evolução dos direitos das mulheres, incluindo a promulgação do Código Civil de 2002 e a revogação do estatuto da mulher casada em 1962, contribuiu para garantir a igualdade e emancipação feminina no Brasil.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

O método da comparação do código civil de 1916 e o atual, de 2002, foi utilizado para demonstrar a evolução da sociedade quanto aos direitos civis das mulheres e seu novo papel no corpo social a partir de uma visão foucaultiana dos discursos.

Palavras-chave: Discursos. Papel da mulher. Código Civil de 1916. Código Civil de 2002.


Introdução

Importante primeiramente tecer alguns comentários quanto a evolução histórico-cultural das funções/padrões da mulher nas sociedades. Na tradição ocidental judaico-cristã, a figura feminina foi considerada como algo frágil, que deveria, portanto, ser protegida pelo pai, marido ou irmão mais velho. De modo que o casamento era um ritual que passaria a mão da filha para os cuidados, agora, do marido.

Contudo, esse molde de fragilidade da mulher foi mudando ao longo da história. No século XIX, com o surgimento da revolução industrial, a mulher deixou de prestar somente afazeres domésticos para ir às industrias, trabalhar nas fábricas. No entanto, foi só no século XX que o papel da mulher realmente mudou. O recrudescimento dos movimentos feministas desencadeou em uma série de conquistas, entre eles o direito de voto, ocorrido no Brasil em 1932 na Era Vargas, com o Decreto n°. 21.076. 1

Assim, a maior representatividade política das mulheres é um dos principais pontos na atual discussão do papel social feminino. Mesmo após 83 anos do direito de voto da mulher, nas últimas eleições, os cargos políticos são ocupados apenas com 10% de mulheres, conforme pesquisas do Tribunal Superior Eleitoral.

Dentre as propostas para o estímulo de ampliação de tal participação foi a criação da “minirreforma eleitoral” com a vigência do art. 3º da Lei nº 12.034/2009, descrevendo que:

§ 3º Do número de vagas resultante das regras previstas neste artigo, cada partido ou coligação preencherá o mínimo de 30% (trinta por cento) e o máximo de 70% (setenta por cento) para candidaturas de cada sexo”.

Além dessa, a que estabelece a destinação de 30% dos recursos partidários às candidaturas femininas.

Ademais, outros temas são de grande importância para os direitos civis das mulheres, tais como liberdade sexual, direito ao divórcio e, atualmente, do aborto, tendo como argumentação o direito de liberdade da mulher, de dispor de seu próprio corpo.

Desta forma, pode-se notar algumas observações dos ensinamentos de Michel Foucault no presente tema. Conforme este saudoso mestre, os discursos nada mais são que verdades historicamente construídas, tendo suas leis como dogmas de um determinado sistema econômico, sendo intrometido psicologicamente, tornando-se em uma verdade universal.

Neste sentido, Ferreirinha e Raitz, na obra “As relações de poder em Michel Foucault: reflexões teóricas”, (2010, p. 370), afirma que:

o que se refere ao poder, direito e verdade, sob a análise de Foucault, existe um triângulo em que cada item mencionado (poder, direito e verdade) se encontra nos seus vértices. Nesse triângulo, o filósofo vem demonstrar o poder como direito, pelas formas que a sociedade se coloca e se movimenta, ou seja, se há o rei, há também os súditos, se há leis que operam, há também os que a determinam e os que devem obediência. O poder como verdade vem se instituir, ora pelos discursos a que lhe é obrigada a produzir, ora pelos movimentos dos quais se tornam vitimados pela própria organização que a acomete”.

Desta forma - tendo em vista que o Direito (lei) é uma determinação de uma verdade absoluta, de criação de um discurso em um determinado momento histórico, algo que, além de um instrumento de poder, reflete os pensamentos dominantes daquela sociedade, podendo ser questionados, haja vista a mudança da mentalidade e costumes sociais, mas jamais descumpridas, por serem base de estabilidade social – importante analisar o Código Civil de 1916 (Lei nª. 3.071/1916) e o Código Civil de 2002 (Lei nº. 10.406/2002), observando as mudanças do papel da mulher na sociedade brasileira neste intervalo de quase cem anos.


1. Do Quadro comparativo

A seguir, iremos demonstrar, comparativamente, as mudanças ocorridas no antigo código civil e o atual, demonstrando os dispositivos correspondentes e, em seguida, teceremos apontamentos:

“Art. 2º. Todo homem é capaz de direitos e obrigações na ordem civil”(1916);

X

Art. 1º. Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil” (2002).

Art. 4º. A personalidade civil do homem começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo desde a concepção os direitos do nascituro”(1916).

X

“Art. 2º. A personalidade civil da pessoa começa com o nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”.

Destes dispositivos, observa-se que o código antigo, em sua própria escrita, afirmava que todo homem é capaz de direitos e obrigações, a personalidade civil do homem, enquanto no código atual, descreve como pessoa. Estas mudanças, por mais que sejam pequenos detalhes, têm suma importância para assegurar a igualdade de homens e mulheres, haja vista a interpretação das leis conforme a Constituição Federal de 1988.

Art. 467. Em falta de cônjuge, a curadoria dos bens do ausente incumbe ao pai, à mãe, aos descendentes, nesta ordem, não havendo impedimento que os iniba de exercer o cargo. Parágrafo único. Entre os descendentes, os mais vizinhos precedem aos mais remotos, e, entre os do mesmo grau, os varões preferem às mulheres (1916).

X

Art. 25, § 1º Em falta do cônjuge, a curadoria dos bens do ausente incumbe aos pais ou aos descendentes, nesta ordem, não havendo impedimento que os iniba de exercer o cargo X § 2º Entre os descendentes, os mais próximos precedem os mais remotos (2002).

Nesta condição, o antigo código dava preferência para que, no caso de ausência com falta de cônjuge, a administração dos bens fosse, entre os ascendentes, preferência para o pai e, entre os do mesmo grau, os varões preferem às mulheres. No ordenamento vigente, não há distinção de gênero.

Art. 178. CC/1916. Prescreve:

§ 1º Em dez dias, contados do casamento, a ação do marido para anular o matrimônio contraído com mulher já deflorada.

§ 3º Em dois meses, contados do nascimento, se era presente o marido, a ação para este contestar a legitimidade do filho de sua mulher.

§ 7º Em dois anos:

VII – a ação do marido ou dos seus herdeiros, para anular atos da mulher, praticados sem o seu consentimento, ou ser o suprimento do juiz; contado o prazo do dia em que se dissolver a sociedade conjugal.

Em seu artigo 178 do código revogado, o legislador descreveu prazo de prescrição para o marido para “anular o matrimônio contraído com mulher já deflorada”; “ação para este contestar a legitimidade do filho de sua mulher”; “a ação do marido ou dos seus herdeiros, para anular atos da mulher, praticados sem o seu consentimento”.

Dispositivos tais que, atualmente, seriam inconstitucionais e não há, portanto, correspondência com o texto do atual código de direito civil.

Art. 1.299. CC/1916. A mulher casada não pode aceitar mandato sem autorização do marido.

Art. 36. CC/1916. Os incapazes têm por domicílio o dos seus representantes. Parágrafo único. A mulher casada tem por domicílio o do marido, salvo se estiver desquitada, ou lhe competir a administração do casal.

Art. 1.548. CC/1916. A mulher agravada em sua honra tem direito a exigir do ofensor, se este não puder ou não quiser reparar o mal pelo casamento, um dote correspondente à sua própria condição e estado:

I – se, virgem e menor, for deflorada;

II – se, mulher honesta, for violentada, ou alterada por ameaças;

III – se for seduzida com promessas de casamento;

IV – se for raptada

Art. 183. CC/1916. Não podem casar:

XIV – a viúva, ou a mulher cujo casamento se desfez por ser nulo ou ter sido anulado, até dez meses depois do começo da viuvez, ou da dissolução da sociedade conjugal, salvo se antes de findo esse prazo der à luz algum filho;

Capítulo II – Dos Direitos e Deveres do Marido

Art. 233. CC/1916. O marido é o chefe da sociedade conjugal, função que exerce com a colaboração da mulher, no interesse comum do casal e dos filhos. Compete-lhe: I – a representação legal da família; II – a administração dos bens comuns e dos particulares da mulher que ao marido incumbir administrar, em virtude do regime matrimonial adotado, ou de pacto antenupcial; III – o direito de fixar o domicílio da família, ressalvada a possibilidade de recorrer a mulher ao juiz, no caso de deliberação que a prejudique; IV – prover a manutenção da família, guardadas as disposições dos artigos 275 e 277.

Art. 234. CC/1916. A obrigação de sustentar a mulher cessa, para o marido, quando ela abandona sem justo motivo a habilitação conjugal, e esta recusa voltar. Neste caso, o juiz pode, segundo as circunstâncias, ordenar, em proveito do marido e dos filhos, o sequestro temporário de parte dos rendimentos particulares da mulher.

Capítulo III – Dos Direitos e Deveres da Mulher

Art. 240. CC/1916. A mulher, com o casamento, assume a condição de companheira, consorte e colaboradora do marido nos encargos de família, cumprindo-lhe velar pela direção material e moral desta. Parágrafo único. A mulher poderá acrescer aos seus os apelidos do marido.

Art. 242. CC/1916. A mulher não pode, sem autorização do marido: I – praticar os atos que este não poderia sem consentimento da mulher; II – alienar ou gravar de ônus real os imóveis de seu domínio particular, qualquer que seja o regime de bens; III – alienar os seus direitos reais sobre imóveis de outrem; IV – contrair obrigações que possam importar em alheação de bens do casal.

Assim, como nos textos do art. 178. do antigo código, não há correspondência destes dispositivos supramencionados com o código de 2002, pois que infligiria os direitos fundamentais da igualdade, da dignidade da pessoa humana, atacando diretamente o art. 5°, inciso I da Constituição Federal, pelo qual preceitua:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição.


2. Da análise

Em sua obra A Arqueologia do Saber (1969), Foucault utilizou a expressão “arqueologia” como uma analogia de quem escava fundo para descobrir os detalhes dos discursos pronunciados. Tal filósofo oferece-nos que o saber é construção histórica, produções que se demonstram por meio de discursos científicos e práticos, tidos como verdadeiros, inquestionáveis e, assim, aceitos.

A lei nada mais é que uma expressão ideal desse dogma, dessa verdade absoluta positivada. Tanto que sua criação é a partir de uma legitimação de representação popular, sendo que, se está em lei foi elaborada por representantes do povo, assim, seria a vontade do povo expressa, levando ao discurso que sua infração seria também contra uma vontade geral e popular.

No entanto, é de amplo conhecimento que estas afirmações são um quanto inverdades, afinal, se assim o fosse, não existiriam movimentos sociais e insatisfação popular sobre as leis e/ou projetos de leis em tramitação no legislativo.

Portanto, interessante analisar as mudanças da sociedade, quanto ao papel da mulher, do início do século passado com o atual com a comparação do ordenamento jurídico. Observa-se que a própria linguagem legal do antigo código era um tanto quanto preconceituosa, descrevendo que os homens eram capazes de direitos e obrigações, colocando prioridade para os homens quanto a administração de bens do ausente, possibilidade de o marido anular casamento com mulher já deflorada, conceitos como mulher honesta, entre outros.

Ademais, imprescindível citar uma lei que foi divisora de águas para a evolução da emancipação feminina, cujo vigor revogou alguns dispositivos do código civil de 1916 de seu texto original, o conhecido estatuto da mulher casada (Lei nº 4.121 de 1962).

Inicialmente, em seu texto original, o código civil de 1916 previa, no artigo 393, a retirada do pátrio poder da mulher, em relação aos filhos do leito anterior, quando contraísse novas núpcias, tendo sido alterado pelo estatuto de 1962, declarando que a mulher não mais perderia os direitos do pátrio poder quando contraísse novas núpcias.

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Ademais, em seu artigo 380 que dava o exercício do pátrio poder ao marido e somente na falta deste à mulher, declarou o exercício do pátrio poder a ambos os pais, prevalecendo a vontade do homem somente em situação de discordância do casal, ressalvado à mãe o direito de recorrer ao juiz para solução da divergência.

Contudo, uma das principais mudanças geradas por este estatuto foi a extinção do art. 6°, inciso II, do texto original do Código de 1916, que descrevia que as mulheres casadas seriam relativamente incapazes a certos atos, ou à maneira de os exercer, enquanto subsistisse a sociedade conjugal.

Tais conquistas foram de grande valia para a emancipação feminina, contudo, somente com a promulgação da República em 1988 e, posteriormente, com a vigência do Código Civil de 2002 que os direitos da mulher foram totalmente garantidos, levando a igualdade não apenas formal, mas também material dos gêneros.


Considerações Finais

A importância dos ensinamentos de Michel Foucault tem sobretudo o condão de abrir uma nova linha de pensamento, questionar os conceitos, os pré-conceitos, as verdades, os juízos de valores, os dogmas. Este grande filósofo ensinou que o poder não é apenas aquele institucionalizado, pelo Estado, mas que em todas as relações sociais, em todos os níveis, existe o poder.

Contudo, conforme Ferreirinha e Raitz (2010, p. 370), tal filósofo também demonstra que “o poder vem como direito, pelas formas que a sociedade se coloca e se movimenta, ou seja, se há o rei, há também os súditos, se há leis que operam, há também os que a determinam e os que devem obediência”. Assim, o Direito é também uma forma de poder, sendo uma das principais, demonstrando a exigência de certos comportamentos que os governados devem seguir.

Neste sentido, observa-se como ocorreram mudanças quanto ao papel da mulher na sociedade brasileira desde o início do século XX para o século XXI. Conforme os ordenamentos civilistas de cada época, a mulher deixou de ser apenas companheira do marido, de ser relativamente incapaz para exercer os atos da vida civil enquanto na constância da sociedade conjugal, para sua total liberdade e igualdade perante o homem.

Atualmente, com a promulgação da Constituição Federal de 1988, homens e mulheres são iguais perante e lei, sendo vedado qualquer tipo de discriminação. Tais direitos só foram alcançados graças às inquietações sociais, questionando as verdades impostas, os dogmas e juízos de valores daqueles momentos históricos.

Não obstante, muito ainda falta para a concretizar a igualdade material entre os gêneros. A participação feminina na política brasileira ainda é pequena comparada aos homens e, além disso, muitos discursos, valores conservadores, que refletiam as verdades descritas no código civil de 1916, ainda continuam enraizadas em parcelas da sociedade.

Deste modo, precípuo faz-se o respeito às diversidades de pensamento e a continuidade dos movimentos em prol da emancipação feminina na sociedade brasileira, para que não exista, de forma alguma, distinção de gênero e seja respeitada, sobretudo, sua igualdade.


Referências Bibliográficas

FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. 7º edição. Editora Forense Universitária.

DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito de Família. 4° Edição. Editora Revista dos Tribunais.

https://www.tre-es.jus.br/noticias-tre-es/2014/Fevereiro/82-anos-da-conquista-do-voto-feminino-no-brasil

https://www.tse.jus.br/legislacao/codigo-eleitoral/lei-das-eleicoes/lei-das-eleicoes-lei-nb0-9.504-de-30-de-setembro-de-1997

https://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/sf00021a.pdf

https://www.brasilescola.com/sociologia/o-papel-mulher-na-sociedade.htm

https://www.marilia.unesp.br/Home/RevistasEletronicas/FILOGENESE/saraazevedo.pdf

https://ir.nmu.org.ua/bitstream/handle/123456789/14618/b4881625f2196fd76c7f9aba373c449a.pdf?sequence=1

https://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/90299/000914587.pdf?sequence=1

https://www3.dataprev.gov.br/sislex/paginas/42/1962/4121.htm

https://www.scielo.br/pdf/rap/v44n2/08.pdf

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Sobre o autor
Luan Mazza

Graduando em Direito pela Universidade Federal de Goiás. Ex-membro-pesquisador do Núcleo de Estudo e Pesquisa de Direito Econômico e Comercial (NEPEDECOM). Membro-pesquisador do GEPPT (Grupo de Estudo e Pesquisa de Processo Tributário) da UFG - Regional Jataí. Co-fundador do Centro Acadêmico Washington Moragas (CAWM). Tem como linha de atuação Direito Tributário e Empresarial. Autor de artigos jurídicos.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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