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Humor ou racismo?

11/07/2015 às 16:45
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O limite do humor, da arte e das expressões vai até onde não seja ofensa proposital e deliberada de induzir ou incitar o preconceito. Fora disso, é só piada de mal gosto.

“Oh! O senhor está com ideias negras!”

(Machado de Assis, Iaiá Garcia)

O comediante Rodner Figueroa foi demitido após afirmar que a primeira-dama americana, Michelle Obama, “parecia do elenco de O Planeta dos Macacos”. Esse tipo de racismo também existe entre nós. O preconceito está na conversa de bar, na televisão e na música. Expressões como “serviço de preto” ou “negrice”, dentre muitas outras, são bastante comuns. Nem tão longe de nós, o programa Os Trapalhões fazia sucesso nas noites de domingo expondo Mussum em situações hoje inaceitáveis. Em um episódio, Dedé chega em uma oficina mecânica e pergunta “cadê o macaco?”, ao que Mussum todo sujo de graxa sai debaixo de um carro e responde com sua peculiar verve: “Macaquis é a mãe!” Hoje essa cena não teria mais graça. Qual a diferença entre os casos? A partir de quando o humor de conotação racista passa a ser considerado crime?

A raça decorre de características hereditárias como a cor dos cabelos, pele e nariz que distinguem grupos da mesma espécie. Não desapareceram apesar de grande miscigenação. A crença de que essas características sejam determinantes na superioridade de um grupo a outro é o que chamamos de racismo. Já o julgamento negativo e prévio, uma suspeita, uma intolerância, denominamos preconceito. Há um terceiro conceito que é a discriminação quando se externa o preconceito e é a tônica do limite entre uma conduta criminosa e a liberdade de manifestação artística.

Na época do Brasil colônia, vigia-se as Ordenações Filipinas (1603) onde se permitia escravos brancos e negros e se estimulava o preconceito contra os judeus, que eram obrigados a usar chapéus amarelos, e os mouros, que deveriam usar na roupa uma “lua de pano vermelho”. Proclamada a Independência, o Brasil assinou tratado proibindo o tráfico de escravos em 1826. O Código Criminal do Império de 1830 havia previsão de penas de açoites e a colocação de ferros nos réus-escravos. Em 1850, entrou em vigência a Lei Eusébio de Queiroz que proibia o comércio de escravos. Em 1871, a Lei do Ventre Livre e somente em 1888 a abolição da escravidão. No Código Penal da República de 1890, igualmente, nada apontou sobre o preconceito, pelo contrário, criminalizava a capoeira. O Código Penal de 1940, onde a parte especial ainda está em vigência entre nós, nada disse sobre a questão. Somente em 1951 é que surge a primeira lei racial, chamada Lei Afonso Arinos (Lei 1390/51) que, de maneira muito tímida, previu atos discriminatórios como contravenção. Teve mero efeito simbólico. Após 34 anos, publica-se a lei 7437/85 que, em síntese, expandiu o preconceito para questões de sexo e estado civil. Com a Constituição de 1988, o art. 5º., inciso XLII, passou a considerar o racismo como crime inafiançável e imprescritível. Após esta legislação, cuja ideologia repressiva se esquece da prevenção social, surge a atual Lei 7716/89 regulando o preconceito de raça, cor, etnia, procedência nacional e religião, deixando o preconceito de sexo e de estado civil como contravenção. Posteriormente, houve modificações da Lei 7716, a saber: leis 8081/90, 8882/94 e 9459/97. Ou seja, temos, no Brasil, quase 400 anos de escravidão legalizada contra 130 anos de tentativa de respeito racial.

A legislação prevê, ainda, os comportamentos considerados de essência preconceituosa, como xingamentos, que podem configurar a injúria racista, prevista que é no art. 140, §3º., Código Penal. Chamar alguém de “macaco” ou “bicho de goiaba”, fazendo referência subjetiva individualizada e dirigida a uma pessoa por suas características físicas, morais ou intelectuais ligadas à raça não é crime de racismo, mas sim de injúria racista, cujas consequências são mais brandas.

O Brasil já foi considerado pela ONU, através da UNESCO, em 1950, como uma “democracia racial” onde as raças conviveriam harmoniosamente. Sabemos, entretanto, que o preconceito no Brasil sempre viveu. Apesar de 99% dos brasileiros se dizerem não-racistas, 98% desses dirão também conhecer alguém que o é. O legislador só soube até hoje aplicar doses maiores do mesmo remédio ao doente, ou seja, aumentar as penas. Isso ainda é o de menos, pois há ideias tacanhas e ridículas como a da ministra que pretende banir obra de Monteiro Lobato por passagens consideradas, por ela, racistas. Seria o primeiro passo para levar a proibição da leitura de Castro Alves, Shakespeare, Agatha Christie... e também da Bíblia pelos mesmos móveis. Igualmente deveríamos censurar músicas como “Nega do Cabelo Duro” de Luiz Caldas, “Ovelha Negra” de Rita Lee e “Black Sabbath” do homônimo grupo inglês. Por fim, deveríamos, então, extirpar dos dicionários expressões como câmbio negro, mercado negro, humor negro, caixa-preta etc.

Michele Obama foi ofendida, mas não só ela, como todos os negros. A frase dita numa TV de grande audiência incita claramente preconceito generalizado. Observe-se que esta análise não passa por uma visão objetiva, gramatical ou de bom-senso, mas uma visão subjetiva, valorativa a se perceber que o interlocutor desejou ou assumiu o risco de ofender a toda uma coletividade. Muito mais importante, entretanto, do que censurar comediantes, livros e músicas é criar consciência desse sintoma na sociedade. Somente o tempo e a maturidade irão possibilitar reflexos nas expressões e nas artes. O limite, pois do humor, da arte e das expressões vai até onde não seja ofensa proposital e deliberada de induzir ou incitar o preconceito. Fora disso, é piada de mal gosto. 

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Sobre o autor
Warley Belo

Advogado criminalista em Belo Horizonte (MG). Mestre em Ciências Penais - UFMG

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BELO, Warley. Humor ou racismo?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4392, 11 jul. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/40780. Acesso em: 20 abr. 2024.

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