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Extinção dos “contratos” de parceria público-privada

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11/07/2015 às 15:02
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2. Breves considerações acerca das parcerias público-privadas

Como já se disse alhures, com o advento Lei Federal nº 11.079/2004 no direito brasileiro foram introduzidas duas novas modalidades de contratação: a concessão patrocinada e a concessão administrativa.

Com efeito, cumpre assinalar que esta lei trata-se de um veículo introdutor de normas jurídicas, editado com base na competência privativa da União para legislar sobre “normas gerais de licitações e contratação” (Constituição, artigo 22, inciso XXVII), com incidência sobre todos os entes federativos. Vale dizer: no que se refere às normas gerais[37] por ela estatuídas, a lei mencionada tem caráter nacional, sendo aplicável tanto às pessoas federativas (União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios) quanto às entidades da administração indireta (autarquias, fundações públicas, empresas públicas e sociedade de economia mista) pertencentes ao aparelho organizativo de cada pessoa política.

Ademais, a Lei nº 11.079/04 também estabelece normas específicas, aplicáveis tão somente à União Federal. Trata-se da matéria regulada no Capítulo VI da referida lei (artigos 14 e 22). Quanto a essas normas específicas, cada ente federativo, em seu respectivo âmbito de atuação, pode disciplinar a matéria.

A concessão patrocinada, segundo a dicção da lei (artigo 2º, § 1º) consiste numa concessão de serviço público ou de obra pública, submetida genericamente ao regramento das concessões comuns (Lei Federal nº 8.987, de 13 de fevereiro de 1995), com a diferença de que nela, além de perceber as receitas tarifárias, o concessionário também percebe contraprestação pecuniária devida pelo poder concedente. A rigor, nem isso se trata de efetiva novidade: a Lei nº 8.987/95 já admitia, em seu artigo 11, a possibilidade de fontes “alternativas, complementares e acessórias”. A diferença reside nisto, na possibilidade aberta pela lei, de que, nos contratos de concessão patrocinada, a contraprestação pecuniária paga pelo poder concedente corresponda a maior parte da remuneração prevista ao concessionário.

A concessão administrativa igualmente é instituída por um ato administrativo bilateral de interesse contraposto (se se preferir: contrato administrativo em sentido restrito), de objeto complexo, em que o particular se obriga a prestações de dar e de fazer direta ou indiretamente em favor da Administração Pública, mediante contrapartida pecuniária suportada parcial ou exclusivamente pelos cofres públicos e objeto do oferecimento de garantias diferenciadas, que tornem financeiramente viável o negócio[38].

Observa-se que as PPPs implicam na formação de relações jurídicas de longa duração, frequentemente sob a execução de objetos extremamente complexos. Isso impõe a necessidade de certa dialogicidade entre as partes, baseada na dinâmica própria da relação instituída: como não é possível antecipar todas as situações futuras no momento de sua edição, exige-se grande esforço na definição de critérios objetivos que vão informar a relação durante todo o vínculo.

 Em síntese: as parcerias público-privadas inserem-se na modalidade de concessões, pois transferem a prestação do serviço público ou o desenvolvimento da infraestrutura à iniciativa privada, que os executa em cumprimento aos termos consensualmente ajustados. A vontade do particular aqui é fundamental (não apenas na formação do liame, senão também na configuração do conteúdo da relação instituída) e, não obstante a forte incidência das regras do regime jurídico administrativo (sem que se possa prescindir dos sobreprincípios da indisponibilidade do interesse público e da supremacia do interesse público sobre o privado), deve ser considerada pelo Direito, especialmente nas hipóteses de extinção da relação entre as partes.

2.1 Extinção da parceria-público privada

A Lei Federal nº 11.079/2004 não disciplinou modalidades de extinção das parcerias público-privadas, tampouco estabeleceu expressamente que o “contrato” devesse ter cláusula expressa disciplinando o desfazimento do vínculo. Sem embargo, certo é que implicitamente a lei em questão tratou do assunto, na medida em que determinou aplicar, no couber, às parcerias-público privadas, o disposto no artigo 23 da Lei Federal nº 8.987, de 13 de fevereiro de 1995. Para a concessão patrocinada é o que resulta da conjugação dos artigos 3º, § 1º, e 5º, caput, da Lei das PPPs. No que se refere à concessão administrativa, é o que resulta da aplicação conjugada dos artigos 3º, caput, e 5º, caput, da Lei das PPPs.

Ora, o mencionado artigo 23, em seu inciso IX, estabelece que os casos de extinção da concessão constituem cláusulas essenciais do “contrato de concessão”[39]. Portanto, por extensão, trata-se de cláusula essencial das PPPs. E as hipóteses de extinção estão arroladas no artigo 35 da Lei nº 8.987/1995.

Essas hipóteses, face aos termos do mencionado artigo 35, são: (a) “advento do termo contratual”; (b) encampação; (c) caducidade; (d) rescisão; (e) anulação; (f) falência ou extinção da empresa concessionária.

A seguir vamos tratar de cada uma das figuras mencionadas, cotejando-as com os lineamentos estabelecidos na primeira parte do estudo.

2.1.1 A extinção pelo “advento do termo contratual”

Toda concessão é outorgada por prazo certo. É natural, portanto, que pelo mero decurso do prazo de vigência, a concessão seja extinta. De fato, o modo normal de extinção de concessão é o atingimento do termo final, ou seja, é o implemento do evento futuro e certo que, uma vez ocorrido, põe fim às relações jurídicas instituídas entre as partes. Trata-se de hipótese de autorretirada do ato.

Saliente-se que, em regra, o termo final constitui um fato cuja ocorrência desencadeia variados efeitos jurídicos (fato jurídico), sem a necessidade de qualquer outra formalidade. Vale dizer: vencido o prazo estabelecido, deve haver o automático retorno do serviço ao poder concedente. Entretanto, como observa Marçal Justen Filho[40], essa assertiva merece temperamentos em virtude do princípio da continuidade dos serviços públicos: o interesse público exige que os serviços públicos não sejam paralisados, ainda que se configure omissão da Administração em reassumir a titularidade da prestação do serviço. Com efeito, o Poder Público tem o dever de ex officio adotar as medidas necessárias para assegurar que a extinção do vínculo não implique em perturbações para o bom desempenho do serviço, devendo reassumir diretamente a prestação ou outorgá-la em nova concessão, ao passo que o particular deve estar atento ao término da delegação, para se for o caso provocar o poder concedente a adotar as providências cabíveis.

Em princípio, é de se imaginar que, quando do advento do dies ad quem, todos os investimentos feitos pelo concessionário já terão sido amortizados. Extinto o prazo da concessão, supõe-se não haver mais nada a indenizar: em regra, a equação econômico-financeira ajustada entre as partes terá sido fielmente assegurada e, automaticamente, com o fim da concessão os bens reversíveis devem ser transferidos do domínio dos particulares para o domínio do poder concedente. Contudo, pode haver situações em que, não obstante o advento do termo final, existam bens reversíveis que não foram devidamente amortizados ao longo do contrato ou, ainda, bens não reversíveis de propriedade exclusiva do concessionário afetados à prestação do serviço. Nessas hipóteses, a garantia fundamental de propriedade (Constituição, artigo 5º, XXII) constitui óbice para a apropriação sem mais, pelo poder concedente, destes bens, sob o argumento de que se trata de efeito natural do exaurimento do prazo de concessão.

2.1.2 A extinção pela “encampação”: razões de interesse público

A “encampação” também é chamada de resgate na doutrina.

 Nos termos do artigo 37 da Lei Federal nº 8.987/1995, encampação é a extinção da concessão por motivo de interesse público, mediante lei autorizativa específica e após prévio pagamento de indenização[41].

Trata-se de modalidade de extinção antecipada da concessão, por ato unilateral do poder concedente. Afigura-se como hipótese de rara ocorrência, posto que exige o cumprimento de três requisitos cumulativos: (a) existência de lei específica autorizativa; (b) observância da garantia do devido processo legal (Constituição, artigo 5º, LIV); (c) pagamento de prévia indenização.

A encampação somente pode ser instituída por veículo introdutor específico: a lei. Trata-se de verdadeira reserva legal, isto é, de efeitos jurídicos que somente podem ser estabelecidos por lei em sentido formal. Entende-se que a lei específica a que se refere o dispositivo deve ser editada pelo ente federativo a que pertença a titularidade do serviço que gerou a outorga.

No que se refere ao valor da indenização, anote-se que deve abranger tanto os danos emergentes como os lucros cessantes. A razão reside nisto: a encampação numa extinção antecipada da concessão e, nessa medida, implica numa violação da equação econômico-financeira (Constituição, artigo 37, XXI).

Até aqui nada de novo. A doutrina, em geral, aborda os aspectos aqui sintetizados. Mas no exame do tema em questão, a teoria invocada na primeira parte da exposição pode ser de especial utilidade.

Com efeito, perceba-se: a assim designada encampação, constitui hipótese do que se denominou caducidade ou decaimento para a teoria dos atos administrativos. Trata-se da modalidade de retirada em que a extinção da concessão é exigida por motivos de interesse público, em decorrência de uma invalidade superveniente, resultante da alteração das circunstâncias fáticas ou jurídicas presentes no momento da instituição do vínculo entre as partes. Por exemplo, a promulgação de uma emenda constitucional ou de uma lei, ou o início de uma guerra, ou a deflagração de uma epidemia, são situações que podem tornar a manutenção do ato administrativo bilateral, originariamente válido, doravante incompatível com a ordem jurídica.

Portanto, discorda-se de Marçal Justen Filho, para quem a encampação é “fundada em motivos de conveniência”: não se trata de mera inconveniência e inoportunidade, mas de verdadeira incompatibilidade com o sistema normativo, em razão de uma invalidade superveniente[42].

Isto porque, note-se bem, em relação aos atos de eficácia continuada (como o são os atos administrativos bilaterais ou, se se quiser, os contratos administrativos), a alteração das circunstâncias fáticas e jurídicas pode implicar a necessidade de ser revista a situação originária, por conta de uma desconformidade superveniente ao momento da edição da norma. Impende observar que a retirada nesse caso decorre de competência vinculada, imposta pelo ordenamento jurídico, sendo passível, por conseguinte, de ser obtida pela via judicial.

Em síntese: não importa o rótulo, quer seja designada de encampação (como o faz a lei), quer seja designada por caducidade, certo é que se cuida do ato de retirada por meio do qual, em razão da alteração das circunstâncias fáticas ou jurídicas, o interesse público (a exata medida para a concretização do bem comum) exige a edição de um ato correção da invalidação superveniente. Esse ato administrativo, todavia, só pode ser editada com fundamento em lei específica autorizativa e mediante o pagamento de prévia e justa indenização em dinheiro.

2.1.3 A extinção pela “caducidade ou decadência”: culpa do concessionário

Esta modalidade de extinção está regulada no artigo 38 da Lei Federal nº 8.987/95. Segundo a dicção legal, deriva da inexecução pelo concessionário de seus deveres[43]. Observa-se, todavia, a impropriedade: não se trata apenas de sanção pela inadimplência do administrado, mas de invalidade superveniente que exige a retirada do ato viciado.

Com efeito, aquilo que a lei designa por “caducidade ou decadência” mais não é do que a cassação, para a teoria dos atos administrativos. A cassação é o ato de retirada em razão do descumprimento, pelo particular, de exigências que lhe são impostas pela ordem jurídica para a manutenção do ato. Portanto, não se refere apenas à inexecução do contrato, podendo abranger inclusive o desaparecimento de requisito de habilitação.

Em suma: para configurar hipótese de cassação (ou, se se preferir, “caducidade ou decadência”) basta que o administrado deixe de cumprir requisito subjetivo exigido pela ordem jurídica, para a manutenção do vínculo.

A cassação é destinada precipuamente à manutenção da prestação adequada do serviço público e, acessoriamente, destina-se à punição do concessionário faltoso. No desempenho de atividade sancionadora, a Administração deverá pautar-se pelos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.

Os parágrafos 1º e 2º do artigo 38 da Lei Federal nº 8.987/95 estabelecem que a declaração de “caducidade” (rectius: cassação) só se efetivará após o competente processo administrativo, o qual será precedido de uma sindicância, na qual será concedido prazo para o concessionário regularizar o defeito. Em caso requisito que não possa mais ser suprido, o processo administrativo será instaurado diretamente.

A instauração de processo administrativo depende da existência de indícios de irregularidades. Com sua instauração, fica assegurado ao concessionário o direito ao contraditório e à ampla defesa. A ausência de processo administrativo acarreta a ilegalidade da cassação (ou, se se preferir, da “caducidade”).

 Como na cassação (ou “caducidade”) é o próprio concessionário que dá causa à extinção prematura do vínculo, somente possui direito à indenização dos bens reversíveis que não foram totalmente amortizados ou depreciados. Não fosse assim restaria configurada hipótese anômala de confisco.

A indenização, como se viu, deverá ser prévia, mas a lei silencia quanto à forma do pagamento. Todavia, entendemos que, na falta de regramento específico, é possível estabelecer-se uma analogia com a desapropriação e sustentar-se que, tal como prevê o artigo 5º, XXIV, da Constituição, a indenização, em caso de encampação, deve ser prévia, justa e em dinheiro.

2.1.4 A extinção pela “rescisão” por culpa do poder concedente

Rescisão é termo genérico, que comporta várias acepções. No direito privado, por exemplo, o vocábulo tem acepção amplíssima, designando variadas modalidades de extinção, não havendo distinção se ela se dá por inadimplemento do contratado, do contratante, ou se em decorrência de comum acordo.

A rescisão na Lei Federal nº 8.666/93, por sua vez, tomou de empréstimo esse significado amplo, como se verifica no cotejo entre os artigos 77 e 70 da citada lei.

É outro, porém, o sentido do vocábulo rescisão empregado no artigo 39 da Lei Federal nº 8.987/95: ali o sentido é estrito, posto que reservado para a hipótese de extinção da concessão que se dá por decisão judicial, em razão do descumprimento de deveres impostos ao poder concedente[44]. Portanto, distingue-se da “caducidade ou decadência” (rectius: cassação) porque esta independe de ação judicial, por força da autoexececutoriedade do ato.

Observe-se: o administrado não pode “rescindir” unilateralmente não porque se trata de um contrato, em sentido próprio, mas porque se trata de ato administrativo introduzido no mundo jurídico pelo Estado, para cuja retirada o sistema exige outro ato estatal, no caso do Poder Judiciário. Mais: vislumbra-se aqui hipótese de invalidação superveniente similar a cassação, isto é, de inadimplemento de prestações que incumbiam, no caso, não ao particular, mas sim à Administração, implicando na exigência de retirada do ato do sistema. Com efeito, o inadimplemento do poder concedente, para possibilitar a rescisão judicial, deve se relacionar ao descumprimento de deveres essenciais por ele assumidos, que acabem por compromete a prestação do serviço assumido pelo concessionário.

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 A rescisão judicial ocorre no momento do trânsito em julgado da decisão que tenha condenado o Poder Público, em ação específica proposta pelo concessionário, na qual se demonstrará o descumprimento pelo poder concedente. Ressalte-se que o parágrafo único do artigo 39 da Lei Federal nº 8.987/95 veda a possibilidade de o concessionário invocar a exceptio non adimplenti contractus. O dispositivo, todavia, exige interpretação conforme a Constituição.

Ao nosso sentir, essa norma não institui uma razão definitiva em prol do princípio da continuidade do serviço público, mas sim uma razão prima facie. Assim, a depender das circunstâncias, pode essa razão prima facie ser afastada em prol de outros valores constitucionais. Exemplificativamente, se a continuidade do serviço por parte do concessionário e o inadimplemento por parte do Poder Público acarretar prejuízo de tal ordem que provoque risco de falência do concessionário, os princípios da proteção aos trabalhadores, da função social da empresa e da propriedade (aqui chamados simplesmente de P2) afastam, no caso concreto, o princípio da continuidade do serviço (P1) – que concretiza a vedação à invocação da exceção do contrato não cumprido – acrescido do princípio formal que dá primazia às ponderações do legislador (PFl). Esquematicamente: P2>P1+PFl.

Embora a lei seja omissa quanto à possibilidade de indenização, parece evidente que, se a indenização é devida nas modalidades de extinção por advento do termo contratual, encampação ou caducidade, com maior razão deverá ser paga na hipótese de rescisão, em que o inadimplemento se dá por culpa exclusiva do poder concedente. Assim, sustentamos que o concessionário tem o direito de ser amplamente indenizado, devendo a decisão judicial determinar o pagamento tanto dos danos emergentes como dos lucros cessantes.

2.1.5 A extinção da concessão por anulação

A concessão (o ato administrativo bilateral ou plurilateral em que se funda) será “anulada” quando tiver sido outorgada em desconformidade com o direito globalmente considerado, assim como qualquer outro ato administrativo que violar o ordenamento jurídico. Trata-se de modalidade de retirada da norma administrativa inválida do sistema.

Com efeito, é a modalidade de extinção, por ato do poder concedente ou do Poder Judiciário, em decorrência de uma invalidade originária, presente já no momento da edição do ato, contra a qual o direito exige correção. A assim chamada “anulação” mais não é do que a hipótese de invalidação para a teoria dos atos administrativos. A invalidação é o meio de correção que desconstitui a existência da norma administrativa inválida. Aplicam-se, pois, ao caso, os princípios gerais da teoria dos atos administrativos.

Assim, variados podem ser os vícios que acometem a validade da concessão. Exemplificativamente, pode a Administração ter-se equivocado na identificação do interesse público a ser concretizado, (dando ensejo a um vício de finalidade), na escolha do meio de concretização (configurando vício de contentorização)[45], ou ainda, no sopesamento das circunstâncias fáticas incidentes no momento da edição do ato (vício de motivo).

A “anulação” (rectius: invalidação) difere da “encampação” e da “caducidade” precisamente porque estas últimas configuram hipóteses de retirada em razão de invalidade superveniente, enquanto que a primeira pressupõe a existência de uma invalidade originária, que torna viciada a outorga.

Os autores divergem quanto à possibilidade de indenização do concessionário. Para Hely Lopes Meirelles, a “anulação” produz efeitos ex tunc, retroagindo às origens da concessão, razão pela qual não confere ao particular direito de indenização. O entendimento de Celso Antônio Bandeira de Mello[46] e Marçal Justen Filho[47] é no sentido de que ao concessionário de boa fé caberá indenização pelos danos emergentes e, se tiver sido iniciada a execução, pelos bens que forem revertidos em favor do poder concedente e ainda não tiverem sido amortizados. Porém, se o concessionário concorreu para o vício da concessão, não subsiste direito do particular à indenização. É essa também a nossa posição.

2.1.6 A extinção por falência ou extinção da concessionária

A última hipótese legal de extinção da concessão refere-se a eventos relacionados com a existência do concessionário: trata-se das hipóteses de falência ou extinção da empresa concessionária (e de falecimento ou incapacidade do titular, no caso de empresa individual).

A falência ou extinção do concessionário implica no desaparecimento superveniente de condição para a manutenção da concessão. Nesses termos, a hipótese se aproxima da “caducidade ou decadência” (rectius: cassação), porque consiste no ato de retirada em razão do descumprimento, pelo particular, de exigências que lhe são impostas pela ordem jurídica para a manutenção do ato. No caso de falência ou extinção do concessionário, desapareceria um requisito de habilitação (a constituição da pessoa jurídica).

Até aqui as hipóteses de extinção, elencadas na Lei Federal nº 8.987/95, puderam perfeitamente ser aplicadas ao regime de extinção das parcerias-público privadas. Não havia particular incompatibilidade entre os regimes.

A exceção está, precisamente, na presente hipótese de extinção. Com efeito, a PPP é desenvolvida por Sociedade de Propósito Específico (SPE), vale dizer, a contrario senso do disposto no § 2º do artigo 9º da Lei Federal nº 11.079/2004, por pessoas jurídicas de direito privado, cujo capital social pode ser constituído por aportes do parceiro privado e do parceiro público. Com efeito, a Administração Pública não pode ser titular da maior do capital votante da SPE; mas nada impede que seja acionista minoritária. Ora, assim como a Administração Pública não se submete às regras da falência, porque os bens públicos são considerados res extra commercium, com igual razão também a SPE de que participe o parceiro-público não poderá ser submetida ao regime falimentar.

Ademais, tendo em vista que a PPP exige a constituição de SPE, não se aplica em seu âmbito a modalidade de extinção em razão de falecimento ou incapacidade do titular, pois estas são hipóteses aplicadas privativamente às empresas individuais.

Assim, no regime da parceria público-privada, somente se aplicaria a hipótese vertente em caso da extinção da SPE, porque esta acarretaria no desaparecimento superveniente de condição para a manutenção da concessão. Todavia, difícil imaginar como isso sucederia.

De qualquer modo, não haverá direito a indenização por perdas e danos, porque a extinção nesse caso não é imputável ao poder concedente; eventualmente, haverá direito à indenização apenas pelos bens reversíveis não amortizados. Em razão da necessidade de assegurar a continuidade do serviço público, franqueia-se à Administração a possibilidade de apropriação imediata dos bens, podendo o pagamento da mencionada indenização ocorrer posteriormente.

2.1.7 Outras modalidades de extinção

A doutrina cogita de outras hipóteses de extinção, não previstas em lei.

Marçal Justen Filho[48] faz alusão a três hipóteses: (a) a extinção por distrato; (b) a extinção por caso fortuito ou força maior; e (c) a extinção por desaparecimento do objeto.

O “distrato” consiste na extinção pela retirada consensual do ato. Sem desprestigiar o emérito administrativista, não nos parece seja possível o distrato. Com efeito, o Poder Público não pode demitir-se de exigir o cumprimento das obrigações assumidas pelo concessionário ou de impor as sanções correspondentes. O interesse público não pode ficar a mercê do interesse do concessionário (ou do parceiro privado) em desistir dos encargos que assumiu.

A segunda hipótese, apesar do silêncio da lei, é factível. A ocorrência de caso fortuito (evento proveniente de ato humano, imprevisível e inevitável, que impede o cumprimento de obrigação, v.g., guerra, greve etc.) ou força maior (evento inevitável, ainda que previsível, decorrente das forças da natureza, v.g., a tempestade, a seca etc.) durante a execução da concessão pode ensejar uma invalidade superveniente, pelo descumprimento de deveres impostos ao concessionário (no que se aproxima da “caducidade ou decadência” – ou, como preferimos, cassação) ou ao poder concedente. Nesse caso, porém, a concessão se extingue sem que qualquer das partes possa reclamar direito a indenização por perdas e danos, salvo se a extinção acarrete benefício de uma parte em detrimento da outra (por exemplo, os bens já revertidos não forem suficientes para amortizar o investimento até então realizado).

Por fim, a extinção por desaparecimento de objeto, trata-se de situação em que não se pode mais continuar a prática da atividade, pois o objeto se tornou materialmente impossível, v.g., no caso em que um hospital é completamente destruído por um terremoto ou no caso em que há desafetação do serviço, transferindo a atividade à iniciativa privada.

No primeiro exemplo, a hipótese é de perda de objeto por força maior, donde não haveria direito de indenização a ser reclamado por qualquer das partes (exceto no caso de não amortização de bens reversíveis). No segundo exemplo, cabe ao Estado indenizar as perdas e danos suportados pelo concessionário, em virtude da intangibilidade da equação econômico-financeira.

2.2 Efeitos comuns a todas as modalidades de extinção

De qualquer das modalidades de extinção da concessão (aqui incluídas as parcerias-público privadas) decorrem alguns efeitos típicos, usuais. A eles já fizemos pontual referência no tópico anterior, mas convém serem sistematizados.

O primeiro deles é o de retomada pelo poder concedente do serviço cuja prestação havia sido outorgada ao concessionário. Trata-se de efeito automático da extinção, prescindindo de maiores formalidades. A princípio da continuidade do serviço impõe que a Administração tome as providências necessárias para que a retomada seja realizada de forma menos traumática possível, não perturbando desnecessária e demasiadamente a prestação.

Outro efeito que decorre logicamente da extinção é o direito da Administração de ocupar as instalações que estavam afetadas ao desempenho da concessão. Se, eventualmente, o concessionário for despojado de bens particulares que estavam afetados a prestação do serviço, a indenização se dará ulteriormente, segundo o procedimento de requisição.

A reversão de bens constitui outro efeito comum a todas as modalidades de extinção[49]. A estreiteza dos nossos propósitos não permite desenvolver o tema como a extensão e intensidade que ele merece. Sem embargo, anote-se que a reversão é a transferência de todos os bens necessários para o exercício do serviço público, por ocasião da extinção da concessão. Pressupõe-se que quando ajustado o prazo da concessão, no momento da extinção já tenha concessionário amortizado o que investiu durante a vigência da concessão. No entanto, não raro se verifica que em muitas situações seria impossível a reversão de tais bens, porquanto não amortizado ainda todo o capital investido pelo particular. Nessa situação, ante a necessidade de despojar o privado de seus bens em nome da continuidade do serviço público, a Administração, com fundamento na supremacia do interesse público sobre o privado, deve desapropriar os bens não revertidos essenciais à execução do serviço, o que ensejará uma indenização prévia, justa e em dinheiro à concessionária, nos termos do artigo 5º, XXIV da CF.

O valor dessa indenização, relativa a bens não depreciados e não amortizados, deve levar em conta a vida útil do bem em questão. Bens inservíveis não são passíveis de indenização. É indenizável o bem que, além de necessário para a não interrupção do serviço, tenha utilidade funcional para o Poder Público. A ressalva parece-nos importante, pois em se tratando de investimentos já efetivados pela concessionária, a não indenização correspondente caracterizaria evidente enriquecimento sem causa por parte do Poder Público, o que é vedado pelo ordenamento, porque ofende o princípio da moralidade administrativa (Constituição, art. 37, caput) e viola abertamente o artigo 884 do Código Civil. Além disso, caso fossem considerados não indenizáveis os investimentos não amortecidos até o advento do termo final da concessão, haveria inequívoco estímulo à má prestação do serviço, com prejuízo ao interesse público, porque o particular, sabendo que o serviço será devolvido ao poder concedente e que, por conseguinte, ele não será ressarcido do que investiu, simplesmente perderia o interesse de atualizar os bens necessários à prestação do serviço, sucateando-o. Evidentemente, tal hipótese consagraria o absurdo e é totalmente contrária ao interesse público.

Por último, outro efeito usual – e que tem especial repercussão no âmbito das parcerias público-privadas – é o de cessamento das garantias inicialmente prestadas pelas partes. Com efeito, tendo em vista o amplo rol de garantias ofertadas pelo parceiro-público em sede das PPPs, este é um efeito de relevância ímpar. Cabe recordar que, nos termos do artigo 8ª da Lei Federal nº 11.079/2004 as obrigações pecuniárias contraídas pela Administração Pública poderão ser garantidas: (a) pela vinculação de receitas; (b) instituição ou utilização de fundos especiais; (c) seguro-garantia; (d) por meio de fundo garantidor ou empresa estatal criada para esta finalidade; (e) por outros mecanismos admitidos em lei (por exemplo, caução). Trata-se de um dos pontos mais problemáticos da Lei de PPPs. Quanto ao específico ponto que nos toca, cumpre dizer que a extinção da PPP implica na extinção da garantia ofertada, mas não acarreta na extinção automática do fundo garantidor ou do fundo especial vinculado ao desempenho da concessão (cuja extinção, por paralelismo, exige lei em sentido formal).

2.3 A teoria dos princípios e os atos administrativos bilaterais ou plurilaterais

Aqui e acolá antecipamos o que vamos tratar neste tópico. Com efeito, sustentamos algumas premissas que, de fato, não encontram respaldo na doutrina majoritária. Se assim fizemos, não o foi por mero espírito novidadeiro, mas pela convicção de que, contemporaneamente, o Direito só pode ser corretamente compreendido se levarmos em consideração o paradigma do neoconstitucionalismo, que se assenta, essencialmente, sobre o entendimento que o sistema jurídico é composto de duas espécies de normas jurídicas, quais sejam as regras e os princípios jurídicos, ambos possuindo a mesma estrutura lógica “se A, deve ser B”. Reconhece-se, portanto, normatividade aos princípios jurídicos; estes não apenas presidem a intelecção do sistema normativo, mas podem incidir diretamente nas situações concretas, como normas jurídicas autônomas.

Ao longo do tempo a comunidade científica tem feito largo uso do signo “princípio”, tendo em mira os mais variados fenômenos, muitas vezes sem justificar em qual sentido se emprega o termo. Como resultado instaurou-se uma enorme confusão, pela perda de clareza que ameaça a evolução da própria ciência. Para resgatar a clareza perdida, deve sempre ser esclarecido o significado que se empresta, em determinado contexto, ao signo princípio e o fenômeno a que alude. A aceitação de que não há uma definição unitária, mas variados conceitos que coexistem (diferenciação tipológica de princípios), é importante instrumento para que não se incorra em incoerência discursiva.

É muito difundida a visão de que os princípios constituem os elementos estruturantes, as vigas-mestras sobre as quais se erige o sistema normativo. Adota precisamente esse critério de fundamentalidade o famoso conceito do mestre Celso Antônio Bandeira de Mello[50].:

Princípio é, pois, por definição,mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico.

Essa ideia de princípio como base ou fundamento do sistema sem dúvida reconhece em seu favor alguma juridicidade. Por meio dela, os princípios assumiram importante papel como vetores interpretativos cuja inobservância implica grave violação ao direito. Cuida-se, porém, de aspecto necessário, mas nitidamente insuficiente para descrever o papel dos princípios na atual quadra do direito contemporâneo.

Na acepção adotada neste trabalho, que em geral não discrepa da doutrina mais moderna sobre o assunto, o termo “princípio” não é tomado apenas como elemento de fecundação da ordem jurídica, não serve apenas como prisma que orienta a interpretação das demais normas. Sem embargo, considera-se que essa é tão somente parcela de sua função. Demais disso, emprega-se aqui a palavra princípio como espécie do gênero norma jurídica, tencionando ressaltar a virtualidade que possui de expressar comandos do dever-ser.

Os princípios, assim como as regras, são normas jurídicas, porque ambos dizem o que deve ser. Daí a relação que guardam: de espécies do mesmo gênero. Cuida-se, portanto, de concepção confessadamente neoconstitucionalista da matéria, cuja ideia central é destacar a normatividade dos princípios jurídicos.

Vários foram os critérios oferecidos pela doutrina para distinguir princípios e regras, a refletir, efetivamente, a evolução conceitual do tema. As contribuições de Dworkin e Alexy mostram que a diferença entre princípios e regras é qualitativa e não apenas de grau.

Com efeito, Dworkin propôs que as regras são aplicadas do modo “tudo ou nada” (all-or-nothing), ou seja, preenchida a hipótese de incidência de uma regra, ou ela considerada válida e a consequência normativa deve ser aceita, ou ela é considerada inválida. No caso de conflito entre regras, uma delas deve ser considerada inválida. Diversamente, no caso de colisão entre princípios, afere-se a dimensão de peso (dimension of weight) de cada princípio colidente, de modo que o princípio com peso relativo maior se sobrepõe ao outro, sem que isto implique na declaração de invalidade do princípio afastado[52].

Robert Alexy aprofundou o exame da questão[53]. Traz-se ao cerne do debate a sua teoria dos princípios, segundo a qual os princípios constituem mandados de otimização, isto é, “são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, dentre as possibilidades jurídicas e reais existentes”.

Ao definir princípios como mandados de otimização aplicáveis em vários graus, de acordo com as possibilidades fáticas e jurídicas, Alexy colocou em relevo a relação de tensão que ocorre em caso de colisão entre tais normas: a relação de prevalência de um princípio sobre outro é estabelecida em função da ponderação entre os princípios colidentes, em face de determinadas circunstâncias. Nesse sentido, os princípios são normas de acentuado grau de relatividade, já que podem ser cumpridos em diferentes graus a depender das circunstâncias apresentadas pelo caso concreto, especialmente pela incidência de princípios e regras opostos que determinarão o peso do princípio prevalente[54].

Em nenhuma hipótese, porém, se afeta a validade dos princípios colidentes: apenas afasta-se aquele que, diante daquelas específicas circunstâncias, assumir menor peso. Observa-se assim que, solucionada a colisão, as circunstâncias concretas que determinaram a incidência de um princípio (e não a do oposto) valerão em todas as hipóteses idênticas. Em outras palavras, a solução de um conflito entre princípios gera a edição de uma regra, cujo suposto de fato são as condições nas quais um princípio prevaleceu sobre o outro e a consequência jurídica é aquela determinada pelo princípio de maior peso. A esta conexão entre relações de precedência condicionada e regras Robert Alexy chamou de “lei de colisão”[55].

Percebe-se que, nessa medida, também os princípios podem ser aplicados ao modo “tudo ou nada”. A diferença é que, enquanto o conflito de regras se resolve pela declaração de invalidade de uma das regras ou pela introdução de cláusula de exceção, que remova a antinomia, a colisão de princípios não importa na invalidade de nenhum deles, mas apenas no afastamento (parcial ou total) daquele que no caso concreto tiver menor peso. As regras estabelecem obrigações absolutas, já que “só podem ser cumpridas ou não”[56], ao passo que os princípios instituem obrigações prima facie, as quais podem ser superadas em razão da incidência de princípios colidentes.

Em suma: segundo Robert Alexy, princípios e regras distinguem-se quanto à forma e consequência da colisão/conflito e quanto às obrigações que instituem. E é exatamente essa a posição adotada no presente trabalho.

Alexy também ofereceu importante aporte científico no que se refere à forma de positivação ou origem dos princípios jurídicos, ao demonstrar que as normas jurídicas, especialmente as de envergadura constitucional – e, dentre essas, as que asseguram direitos fundamentais –, abrigam os valores positivados, ou seja, aqueles que foram albergados pelo ordenamento jurídico, expressa ou implicitamente. Com a positivação, esses valores, que de início pertenciam ao plano axiológico (âmbito do que é bom), ingressam no plano deontológico (âmbito do que é devido; dever-ser)[57], sobretudo na forma de princípios jurídicos.

Os princípios, não é demais repetir, como qualquer norma jurídica, dizem o que é devido, através dos comandos deônticos básicos: mandado, permissão e proibição. Bem diversa é a situação dos valores, que dizem sobre o próprio ser, conforme os critérios de valoração eleitos. Sem embargo, cumpre notar que há estreito vínculo entre os princípios e os valores. Na verdade, todo princípio provém de um valor e todo valor pode vir a se tornar um princípio.

Afirma-se, assim, com apoio na doutrina de Alexy, que os princípios podem ser cumpridos em variados graus, conforme as possibilidades fáticas e jurídicas do caso concreto. Vale dizer: os princípios oferecem razões prima facie, que ordenam, permitem ou proíbem que algo seja realizado na maior medida possível, dadas certas condições fáticas e jurídicas. Tal é assim precisamente porque os princípios positivam valores, e não há valor absoluto.

Aprofundando a abordagem realizada comumente pela doutrina, Ricardo Marcondes Martins esclarece que toda regra jurídica é a positivação de um princípio constitucional, expresso ou implícito – conclusão essa que decorre do esquema piramidal de esclarecimento recíproco, de Joaquim José Gomes Canotilho, e da teoria do círculo hermenêutico, de Karl Larenz. Em decorrência disso, nem sempre uma regra exige cumprimento pleno, pois efetuando ponderação entre princípios colidentes, a regra concretizadora do princípio menos pesado no caso concreto pode ser total ou parcialmente afastada pela regra concretizadora do princípio mais pesado[58].

Em suma: os princípios impõem o cumprimento de determinadas finalidades; as regras constituem o meio de concretização. Ora, se toda regra concretiza um princípio, certo é afirmar que as regras têm especial importâncias para o sistema normativo. As competências dentro do sistema não podem ser desprezadas. Por essa singela razão, convém explicitar como cada função estatal é exercida, à luz da teoria dos princípios[59].

Com efeito, a ponderação efetuada pelo constituinte é inaugural de todo o processo de ponderação e concretização dos princípios constitucionais, pois a positivação de um princípio indica que o constituinte já efetuou ponderações e atribuiu, por força delas, pesos diferenciados prima facie aos valores que positivou. As regras constitucionais, todas sem exceção, quer sejam de comportamento ou de estrutura, consistem na concretização de um princípio constitucional, decorrente de uma ponderação efetuada pelo constituinte. Quanto mais regras concretizarem um princípio, tanto maior será o peso abstrato atribuído a este princípio pelo constituinte. Ademais, decorre do postulado da supremacia da Constituição o dever de que todos agentes públicos, incluindo-se aí o legislador, nas ponderações por ele efetuadas, observem as ponderações efetuadas pelo próprio constituinte. Há, portanto, no sistema, um princípio formal que dá primazia às ponderações do constituinte, ou seja, que acresce um reforço de peso às escolhas do constituinte.

Na ponderação legislativa, cumpre ao legislador examinar todos os valores positivados na Constituição e os respectivos pesos que o constituinte estabeleceu em abstrato e, partindo daí, compete-lhe apurar quais fins a serem concretizados pelo Estado, e qual a medida, diante das circunstancias fáticas em que atua e do próprio sistema constitucional, de concretização exigida pelo constituinte. Nesse passo só poderia afastar a ponderação inicialmente efetuada pelo constituinte se o exame das circunstâncias indicasse que o princípio por ela afastado (P2) é mais pesado que a soma do peso do princípio concretizado pela regra constitucional (P1) e do peso do princípio formal que dá primazia às ponderações do constituinte (PFc). Donde: P2 > P1+PFc. Apurado os fins a realizar e a medida de exigência de sua realização, incumbe também ao legislativo fixar, em abstrato, os meios (M1, M2, M3... Mn) para o cumprimento desses fins, numa antecipação do caso concreto em que esses meios serão concretizados – também chamada de prognose.

Já a ponderação realizada pela Administração se dá a partir da apuração diante do caso concreto, de quais os fins a serem concretizados pelo Estado e a medida de exigência do cumprimento destes, tendo em vista não só as circunstâncias do caso e o sistema constitucional vigente, mas as ponderações efetuadas pelo legislador e a diretriz existente no sistema de que estas, em princípio, sejam acolhidas (PFl > PFa). Dessa forma, a Administração só poderá afastar a ponderação efetuada pelo legislador se a proporcionalidade indicar que o princípio por ela afastado (P3) é mais pesado que a soma do peso do princípio concretizado pela lei (P4) e do peso do princípio formal que dá primazia às ponderações do legislador (PFl). Donde: P4 > P3+PFl. A seguir, incumbe à Administração fixar, com vistas ao caso concreto e ao resultado da ponderação por ela efetuada, as medidas a serem efetivadas.

Por fim, os particulares também realizam ponderações: o sistema exige que apurem qual âmbito efetivo de sua liberdade e que, ao praticar condutas ou ao interferir na esfera alheia por meio da edição de normas jurídicas, fundamentadas na autonomia privada, atentem para as regras e para os princípios positivados. Assim, devem observar as normas constitucionais, legais e administrativas para verificar se a conduta que pretendem praticar não é vedada pela ordem jurídica.

Como se vê, os princípios formais são princípios que garantem as competências normativas no sistema, pois eles conferem um reforço de peso às escolhas do editor da regra; vale dizer, asseguram a discricionariedade[60] (entendida como a possibilidade de escolher entre duas ou mais alternativas igualmente admitidas em Direito, tendo em vista a melhor forma de realizar o interesse público) do constituinte originário, do constituinte derivado, do legislador e do administrador e a liberdade dos particulares (entendida como a possibilidade de escolher entre duas ou mais alternativas, tendo em vista a realização dos próprios interesses). Note-se que o juiz não possui nem discricionariedade nem liberdade, mas dever de dizer o direito segundo a melhor interpretação, isto é, de apontar solução jurídica, verificando se estão corretas as ponderações efetuadas pelas partes.

Há, consequentemente, um princípio formal garantidor da competência de cada um deles dos centros normativos, cujo peso pode ser assim graduado, estabelecendo uma “lei das competências normativas”[61]: PF constituinte originário > PF constituinte derivado > PF legislador > PF administrador > PF particulares.

O modelo descrito ilumina de modo particularmente útil a compreensão do regime jurídico dos atos administrativos bilaterais ou plurilaterais: trata-se de atos submetidos a regime de direito público, caracterizados pela bilateralidade ou plurilateralidade, isto é, a assunção da vontade do(s) administrado(s) não apenas como pressuposto para edição do ato, mas como pressuposto para configuração do conteúdo da relação jurídica. Essa nota característica implica no reconhecimento de um argumento a favor da manutenção destes atos, isto é, o agente público deve, diante do caso concreto, sopesar razões jurídicas favoráveis a não extinção do ajuste e as razões favoráveis à alteração. Por assim dizer: a celebração do “contrato administrativo” gera, por si, uma razão contrária prima facie à alteração do vínculo.

É a ponderação das circunstâncias fáticas e jurídicas que indicará se é o caso de alterar unilateralmente o “contrato” (hipótese de saneamento do vício de invalidade superveniente) ou de extingui-lo unilateralmente (hipótese de retirada do ato do sistema, pelas modalidades de cassação, caducidade ou decaimento ou invalidação) ou, finalmente, de deixar tudo como está (v.g., estabilização do vício).

Vale dizer: a alteração das circunstâncias (fáticas ou jurídicas) pode implicar na alteração do resultado da ponderação dos princípios incidentes no momento da edição do ato, fazendo surgir uma invalidade superveniente (isto é, uma desconformidade ao Direito surgida força da modificação das circunstâncias), contra a qual o sistema pode exigir a retirada do ato.

Há, todavia, que se observar uma regra de ouro: assim a edição de um ato de caducidade (seja a retirada em virtude da alteração das circunstâncias fáticas, seja a retirada em decorrência da modificação da ordem jurídica) ou de cassação devem respeitar os direitos adquiridos, por força do disposto no inciso XXXVI do art. 5º da Constituição Federal.

A invalidade superveniente por alteração das circunstâncias fáticas ou jurídicas, de modo similar à invalidade originária, não conduz, necessariamente, à retirada do ato (extinção), à caducidade ou ao decaimento. Pode levar, isto sim, apenas à alteração do ato administrativo. Este, porém, é um tema que foge ao objeto desta exposição. Quiçá numa próxima oportunidade.

Por fim, cumpre ressaltar que a revogação não figura entre as hipóteses de extinção dos atos administrativos bilaterais (“contratos administrativos”). Com efeito, a revogação é um fenômeno normativo: é o efeito principal de uma norma jurídica – uma norma concreta (N2) retira do mundo jurídico outra norma, concreta ou abstrata (N1). O objeto principal da revogação é a retirada da norma revogada. O objeto secundário: atinge os efeitos (as relações que institui) da norma revogada. O fundamento da revogação é o domínio da situação jurídica. Ela é possível somente nos casos em que a Administração possui a prerrogativa de manter ou alterar a situação anterior. Assim, em regra, todo ato abstrato pode ser revogado (princípio da ampla admissibilidade de revogação de atos abstratos). Já com relação aos atos concretos a situação é inversa: em regra, não podem ser revogados (princípio da excepcionalidade da revogação dos atos concretos). O motivo da revogação é a inconveniência e a inoportunidade administrativa; isto é: a nova opinião do agente sobre a melhor forma de concretizar o interesse público.

Como se vê, há diferenças entre revogação e caducidade ou decaimento: i) a principal diferença, é que a revogação decorre de competência discricionária (o Direito faculta sua adoção), enquanto a caducidade decorre de competência vinculada (o Direito exige sua adoção); ii) a revogação não pode ser efetuada por órgãos de controle, sendo impossível revogação jurisdicional, ao passo que é possível a caducidade ou decaimento efetuado pelo controle administrativo ou jurisdicional; iii) a revogação é sempre ex nunc, enquanto a caducidade não tem eficácia ex tunc, nem tampouco ex nunc, porquanto seus efeitos retroagem à data em que desapareceram os pressupostos fáticos ou jurídicos exigidos para a manutenção do ato no sistema jurídico.

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Sobre o autor
Rodrigo Ramos Figueiredo

Advogado e Professor. Especialista em Processo Civil e em Direito Administrativo. Mestrando em Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FIGUEIREDO, Rodrigo Ramos. Extinção dos “contratos” de parceria público-privada. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4392, 11 jul. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/40781. Acesso em: 29 mar. 2024.

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