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Extinção dos “contratos” de parceria público-privada

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11/07/2015 às 15:02
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Identificam-se as modalidades de extinção das “parcerias público-privadas” (PPPs), bem como o regime jurídico correspondente.

RESUMO: O presente estudo tem por finalidade precípua identificar no sistema normativo as modalidades de extinção das assim chamadas “parcerias público-privadas” (PPPs), bem como o regime jurídico correspondente.  O caminho percorrido, entretanto, foge ao tradicional: discorda-se da doutrina amplamente majoritária, que classifica as concessões administrativas como espécie de “contratos administrativos”. Defende-se que a teoria dos contratos foi concebida para o direito privado, não apresentando compatibilidade com o regime de direito público. Destarte, apresenta-se como alternativa a adoção da teoria dos atos administrativos, no interior da qual se situam os atos administrativos bilaterais ou plurilaterais. Trata-se da hipótese em que a assunção da vontade do(s) administrado(s) não opera apenas como pressuposto para edição do ato, mas como pressuposto para configuração do próprio conteúdo da relação jurídica. Essa nota característica implica soluções dogmáticas relevantes, para as quais a teoria dos princípios pode oferecer contribuição relevante. Assim, apresenta-se essa investigação estruturada em duas partes: na primeira, serão fixadas algumas premissas conceituais, reputadas absolutamente indispensáveis no enfrentamento do tema; na segunda serão examinadas cada uma das modalidades de extinção dos comumente chamados “contratos de concessão”, cuidando de efeitos típicos da extinção, v.g., dos regimes de indenização e de reversão dos bens. Ao fim e ao cabo, chega-se à conclusão, acrescendo-se comentários didáticos ao inventário de propostas feitas ao longo do trabalho.

Palavras-chave: Parceria Público-Privada. Extinção. Atos administrativos bilaterais.

SUMÁRIO: INTRODUÇÃO; 1 Premissas conceituais; 1.1 A norma jurídica e suas múltiplas facetas; 1.2 Contratos no direito privado; 1.3 Notas sobre os chamados “contratos administrativos”; 1.4 Alguns conceitos básicos da teoria do ato administrativo; 2. Breves considerações acerca das parcerias público-privadas; 2.1 Extinção da parceria público-privada; 2.1.1 A extinção pelo “advento do termo contratual”; 2.1.2 A extinção pela “encampação”: razões de interesse público; 2.1.3 A extinção pela “caducidade ou decadência”: culpa do concessionário; 2.1.4 A extinção pela “rescisão” por culpa do poder concedente; 2.1.5 A extinção da concessão por anulação; 2.1.6 A extinção por falência ou extinção da concessionária; 2.1.7 Outras modalidades de extinção; 2.2 Efeitos comuns a todas as modalidades de extinção; 2.3 A teoria dos princípios e os atos administrativos bilaterais ou plurilaterais; CONCLUSÃO; REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.


INTRODUÇÃO

A expressão “parceria público-privada” (doravante também designada simplesmente pela sigla PPP, dado seu uso corrente) e o instituto que ela consagra ingressaram no nosso cenário jurídico por influência de práticas muito difundidas no direito estrangeiro, especialmente no direito europeu (v.g., França, Alemanha e Grã-Bretanha) [1]. Trata-se da importação de um modelo que, segundo relevante parcela da doutrina, não é compatível com a nossa Constituição. Deveras, tem grassado na doutrina pátria controvérsia acerca de possível inconstitucionalidade das chamadas “parceria-público privadas” em sentido estrito[2], isto é, daquelas modalidades contratuais introduzidas no direito positivo pátrio pela Lei Federal nº 11.079, de 30 de dezembro de 2004: a concessão patrocinada e a concessão administrativa.

A despeito de eventuais invalidades da norma[3], certo é que a doutrina não pode ignorar o fato de que a lei existe e de que, ao menos por ora, não foi declarada inválida. Assim, até que sua existência normativa seja desconstituída pela declaração de invalidade promanada por órgão competente, a norma encontra-se vigente e eficaz, gerando os efeitos que lhe são próprios.

De fato, diuturnamente contratos de parceria público-privada têm sido celebrados com arrimo na legislação vigente. A formação destes vínculos, a execução dos contratos que deles derivam e, inclusive, as hipóteses de encerramento, antecipado ou não, das relações por eles instituídas, tudo isso é balizado por um complexo microssistema normativo, a envolver a correta interpretação do sentido e alcance de dispositivos constitucionais e legais.

Nada obstante, o exame completo deste microssistema passo ao largo das modestas intenções e finalidades do presente estudo; em realidade, este trabalho preordena-se a tratar de um específico tema que não tem merecido atenção que julgamos devida por parte da doutrina especializada: trata-se das hipóteses de extinção dos “contratos” administrativos de concessão.

Como se verá adiante, a alusão aqui ao gênero (“contrato” de concessão) e não às espécies (comum, patrocinada e administrativa) é absolutamente propositada: em matéria de extinção dos vínculos jurídicos que a tradição linguística designa por “contratos administrativos”, aplicam-se em geral às parcerias público-privadas as regras atinentes ao regime já consagrado para a concessão comum. Há fundamento normativo que embasa essa assertiva.

Cumpre questionar, porém, se: (1) não seria de extraordinária utilidade examinar o tema não à luz de categorias próprias do direito privado (como o são os contratos), senão com base em conceitos radicados na própria intimidade do direito público (como o são a teoria dos atos administrativos e de seus vícios); e (2) se não haveria especificidades que, à luz do regramento das PPPs, justifiquem nesse âmbito um refinamento da doutrina.

Convencidos de que a principal finalidade de toda e qualquer ciência é o progresso, empreendemos esta jornada. Se a nossa proposta não merecer acolhida, ao menos que tenha a virtude de fomentar novas e melhores reflexões.

Apresenta-se, deste modo, o presente estudo, cujo desenvolvimento está estruturado em duas partes: na primeira, serão fixadas algumas premissas conceituais, reputadas absolutamente indispensáveis no enfrentamento do tema; a segunda examinará cada uma das modalidades de extinção dos comumente chamados “contratos de concessão”, cuidando de efeitos típicos da extinção, v.g., dos regimes de indenização e de reversão dos bens. Ao fim e ao cabo, chega-se à conclusão, acrescendo-se comentários didáticos ao inventário de propostas feitas.

O estudo tem caráter dogmático: tem por objetivo examinar o direito positivo brasileiro tal como se revela na Constituição e nas leis. Assim, constitui análise de lege lata e não de lege ferenda.


1. Premissas conceituais

As premissas a seguir fixadas mereceriam cada uma delas uma monografia específica. Contudo, a estreiteza dos nossos propósitos não permitirá maior desenvolvimento dos temas. Sem embargo, há pontos que não poderiam deixar de ser enfrentados, ainda que perfunctoriamente, porque fazem parte do próprio fio condutor do raciocínio desenvolvido neste trabalho. Daí a imperiosa necessidade de se exprimir certos pressupostos epistemológicos, confessadamente adotados, na tentativa de construir um todo coerente.

1.1.A norma jurídica e suas múltiplas facetas

Trata-se de verdade inquestionável: a “vida se desenvolve dentro de um mundo de normas” [4].

Do nascimento até morte são apresentadas ao homem pautas de conduta, que dirigem sua ação nesta ou naquela direção, na medida em que ordenam um comportamento, permitem possa o indivíduo adotá-lo ou o proíbem de fazê-lo. Pode-se afirmar, parafraseando o catedrático italiano Noberto Bobbio, que a vida é uma experiência normativa.

Inserimo-nos, assim em um campo extraordinariamente amplo e variado: seria impróprio reduzir a experiência normativa às normas jurídicas. É necessário ter presente que, ademais das normas jurídicas, há normas morais, religiosas, éticas, sociais, costumes, enfim inúmeras outras pautas de comportamento, que se diferenciam entre si, uma vez mais segundo Bobbio[5], por seu conteúdo, pelo tipo de obrigação que fazem surgir, pelo seu âmbito de validez e existência e pelos sujeitos a quem estão dirigidas.

É certo, porém, que as normas jurídicas são especialmente importantes para a ordem na sociedade. São estas pautas de observância coativa que tornam possível a ideia de sociedade política institucionalizada, isto é, de Estado.

Assim, assume capital importância saber o que se deve entender por norma jurídica.

Antes de conceituá-las, todavia, convém asseverar que toda definição de termo científico é convencional e estipulativa[6]. Isto significa, na magistral lição de Manuel Atienza, “que la relación entre las palabras y sus significados (entre significante e significado) no tiene caráter necesario, esencial”; por essa razão, “no pueden calificarse de verdaderas o falsas”. Coaduna deste entendimento Carrió, para quem os conceitos não são verdadeiros ou falsos, mas úteis ou inúteis[8].

Afigura-se útil, ao presente trabalho, o conceito imortalizado pelo saudoso mestre Goffredo Telles Júnior, segundo o qual “norma jurídica se define: imperativo autorizante”[9]. Com efeito, na lição do citado autor, “toda norma jurídica tem estrutura hipotética”[10]. Na hipótese de se verificar a circunstância para a qual foi enunciada, então deve ser a consequência nela descrita. Esquematicamente, resume logo adiante: “se A é, B deve ser”. Cuidam, as normas jurídicas, do mundo do “dever-ser”. Assim, a norma jurídica não descreve o comportamento efetivamente verificado no mundo fenomênico, mas sim aquele que deve ser mantido, em dada circunstância. A norma jurídica “não descreve o que é, mas o que deve ser. Ela não é a norma do ser, mas do dever-ser”[11].

Antes de prosseguir, deve-se sublinhar que nenhuma norma jurídica ingressa no direito positivo sem que seja introduzida por outra norma, isto é, por um veículo introdutor de normas, podendo-se então distinguir a norma introduzida da norma introdutora. Esta se afigura como enunciação e aquela como o seu enunciado[12]. Diversos serão os possíveis veículos introdutores: Constituição e emendas constitucionais; leis complementares, ordinárias ou delegadas; medidas provisórias; decretos legislativos; resoluções; regimentos; acórdãos; sentenças; decisões interlocutórias; despachos; atos administrativos; e, finalmente, no âmbito privado, os negócios jurídicos.

Em efeito, os órgãos públicos competentes e os particulares expedem normas introdutoras, por meio das quais os últimos veiculam normas individuais e abstratas ou individuais e concretas; e os primeiros além destas, também veiculam normas gerais e abstratas ou gerais e concretas[13].  

Destarte, a norma poderá assumir variadas formas, a depender do sujeito que a emane e do veículo que a introduza. O atributo da generalidade guarda relação com o destinatário da norma: são gerais as normas dirigidas a um conjunto de sujeitos indeterminados; são individuais, as que individualizarem o receptor normativo. Já as normas abstratas são universais quanto à ação prescrita, contrapondo-se às concretas, que regulam uma ação particular.

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Ante o direito positivo pátrio não se afigura correta a corriqueira noção de associar a produção de normas jurídicas à atividade legislativa. A restrição só se explica sob o prisma ideológico[14], ligado à concepção de lei tal qual encetada por Rousseu, ou seja, como único instrumento hábil a legitimar o contrato social[15], porquanto fruto da vontade geral do povo. Note-se, contudo, que esse equívoco esboroa-se quando analisado o sistema constitucional, o qual prevê outros tipos de normas legislativas, assim as gerais e concretas[16], as individuais e abstratas[17] e as individuais e concretas[18].

Ademais, acolhe-se aqui a teoria normativa dos negócios jurídicos de Hans Kelsen[19]: por meio dos negócios jurídicos, os particulares instituem verdadeiras normas jurídicas, as quais criam, modificam ou extinguem relações jurídicas, que vinculam as partes que deles participam. Com efeito, os negócios jurídicos consistem em veículos introdutores de normas jurídicas elaboradas pelos particulares, com fundamento na chamada autonomia da vontade[20].

Em suma: norma jurídica é um imperativo autorizante. Seu conteúdo varia segundo a combinação de dois atributos (generalidade e abstração). Assim, temos: normas gerais e abstratas, normas gerais e concretas, normas individuais e abstratas e normas individuais e concretas. Para que tais normas sejam postas no sistema é necessário expressá-las em um veículo introdutor. Este se afigura como enunciação, sendo o seu produto, isto é, a norma jurídica, o enunciado. Os veículos introdutores constituem fontes normativas: tanto o Estado como os indivíduos possuem o poder de disciplinarem comportamentos por meio de normas jurídicas.

1.2.Contratos no direito privado

No âmbito privado, a vontade assume papel fundamental. A liberdade pressupõe a vontade: livre é aquele que age não por decisão de outrem, mas por sua própria decisão. O desenvolvimento da personalidade, portanto, depende da possibilidade de exercício da própria vontade.

No entanto, uma vontade exercida de forma absoluta, ilimitada, não poderia ser exercida por todos os indivíduos simultaneamente: a vontade de uns (e, portanto, a liberdade que ela encerra), fatalmente esbarraria na vontade de outros. Por tal razão, a ordem jurídica estabelece restrições às liberdades dos indivíduos: eles podem fazer ou deixar de fazer o que quiserem, desde que respeitadas as limitações impostas pelo sistema. Assim, devem apurar em cada situação o âmbito de liberdade que possuem: somente ali onde não existam proibições ditadas pelo sistema normativo (pelo conjunto de regras e princípios que formam tal sistema) é que se apresenta a chamada liberdade jurídica.

O exercício efetivo dessa liberdade pressupõe tanto a possibilidade de disciplinar a própria esfera jurídica como de interferir na esfera jurídica alheia. Para a autodisciplina da conduta basta a própria vontade; já para a disciplina da esfera jurídica alheia, exige-se a conjugação da vontade própria e da vontade alheia.

Essa interferência na esfera jurídica alheia dá-se por meio dos negócios jurídicos. Estes se aperfeiçoam ou com a aquiescência ou com a concordância alheia. Com efeito, negócio jurídico unilateral consiste no veículo introdutor de normas jurídicas que criam, modificam ou extinguem relações jurídicas, em que um só indivíduo as formula, mas subordina sua eficácia ao assentimento de outrem (p. ex: o testamento tem sua eficácia subordinada à aceitação do legado). Por sua vez, negócio jurídico bilateral ou plurilateral consiste no veículo introdutor de normas, que criam, modificam ou extinguem relações jurídicas, elaboradas conjuntamente por dois ou mais sujeitos ou elaboradas por um e assumidas como produto por todos (p. ex: contratos).

Os negócios jurídicos, especialmente os negócios jurídicos bilaterais, trazem consigo longa tradição privatista. O instituto dos contratos foi gestado, nasceu e se desenvolveu na seara do direito privado. Por isso mesmo, como nota característica das relações travadas entre os particulares, o instituto assentou-se sob a máxima pacta sunt servanda, que informa, por exemplo, três princípios fundamentais na matéria: (a) a paridade jurídica entre os contratantes (nenhuma das partes pode impor a outra o conteúdo do contrato, nem alterá-lo unilateralmente); (b) a intangibilidade do contrato (seus termos não podem ser modificados sem o consentimento das partes); (c) a obrigatoriedade do contrato (o contrato faz lei entre as partes, devendo ser cumprido)[21].

Tendo em vista estes caracteres e o regime jurídico que eles traduzem, é de se questionar se a categoria jurídica “contratos” é passível de ser transplantada sem mais para a seara do direito público ou se, dadas as substanciais modificações que o direito público exigiria, não seria algo que a ciência desenvolvesse a tal título uma categoria jurídica própria. Afinal, é apropriado dizer que existem “contratos” administrativos?

1.3. Notas sobre os chamados “contratos” administrativos

Há na doutrina viva polêmica acerca da existência de contratos administrativos. Formaram-se quatro posições.

A primeira corrente, com origem na doutrina francesa, distingue entre contratos da Administração (regidos pelo direito privado) e contratos administrativos (regidos pelo direito público). Nestes últimos, por imposição do interesse público, seria comum a presença de cláusulas exorbitantes, que outorguem à Administração Pública poderes que não encontram paralelo no âmbito privado. No Brasil, ao que parece, ganhou foros de maioria, especialmente pela influência de autores como Hely Lopes Meirelles, Maria Sylvia Zanella Di Pietro e outros[22].

A segunda posição, oriunda da doutrina alemã, nega a existência de contratos administrativos: em algumas hipóteses, pode haver contratos privados submetidos a certas regras especiais expressamente previstas; noutras, pode haver atos unilaterais da Administração atrelados a um contrato privado complementar, (especialmente quanto à equação econômico-financeira). Como representantes dessa linha, temos, exemplificativamente, Oswaldo Aranha Bandeira de Mello[23].

Os partidários da terceira corrente negam a possibilidade de a Administração celebrar contratos regidos pelo direito privado, pois todas as avenças firmadas pelo Poder Público seriam, em maior ou menor medida, regidas pelo direito público; constituiriam, portanto, contratos administrativos. Filiam-se a ela, ilustrativamente, Lúcia Valle Figueiredo[24].

Por fim, recentemente surgiu uma nova tese, concebida por Ricardo Marcondes Martins[25] que nega a existência tanto de “contratos da Administração” como de “contratos administrativos”: sustenta que existem tão somente atos administrativos bilaterais, que se submentem a regime de direito público, ainda quando eventualmente admitem a aplicação de certas regras de direito privado.

Apesar de absolutamente minoritária, há fortes razões para aderir a quarta corrente. Por primeiro, convence-nos o argumento de que a primeira e segunda posições encarnam grave vício metodológico, consistente em supor que o Estado possa assumir a situação jurídica de um particular e, por conseguinte, submeter-se (ainda que parcialmente), ao regime de direito privado.

Ora, o Estado é meio, não é um fim em si mesmo. Ele existe, por implícita autorização da sociedade, apenas e tão somente para a satisfação do bem comum. Em outras palavras, o homem vive em sociedade e a ela se subordina, porque o bem comum é o meio ou instrumento de que ele necessita para atingir seus próprios fins, para a consecução de seus projetos e para a expansão de sua personalidade e para atingir a felicidade. Mas a sociedade existe para servir ao homem e não para torturá-lo. Se os homens se subordinam à sociedade é para que esta os sirva e seja para eles um instrumento na realização de seus objetivos.

 A ideia basilar, sobre a qual se edificam as sociedades racionais, é a de respeito à personalidade humana, ou seja, a expansão do homem, a afirmação de sua dignidade. Assim, a causa precípua das organizações sociais é a consecução desse objetivo. Também é assim em relação ao Estado. Este reduz à unidade os diversos grupos sociais, ainda que heterogêneos em sua formação, submetendo-os à sua soberania, com o fim maior de atingir o bem comum, não para diminuir o bem particular, mas, pelo contrário, para fortalecê-lo[26].

Neste sentido, não passa o Estado de meio, instituído para que a pessoa humana atinja suas finalidades[27]. É, aliás, “meio natural, de que pode e deve servir-se o homem, para a consecução do seu fim, sendo o Estado para o homem e não o homem para o Estado”[28].

Eis uma dicotomia que, conquanto trivial, representa uma das realidades primordiais das sociedades humanas: para o Estado o bem comum é a sua própria razão de existir; é a função que ontologicamente lhe incumbe realizar. Logo, o Estado jamais pode buscar a realização de interesses privados, tal qual um particular. Pelo contrário: toda atuação estatal deve pautar-se pela satisfação do bem comum, isto é, pela concretização do interesse púbico[29].

Há, todavia, uma razão ainda mais forte para se rechaçar as três primeiras correntes, qual seja a de que todas elas incorrem no mesmo vício metodológico, consistente em assumir um conceito de direito privado (no caso o conceito de contrato) como se se tratasse de um conceito próprio da teoria geral do direito, adequado tanto o direito público como para o direito privado.

Com efeito, não se ignora que, o direito enquanto ciência é uno. Mas como negar a extraordinária utilidade didática de subdividi-lo em dois grandes ramos, em virtude das peculiaridades próprias de cada regime jurídico?

Note-se que o direito privado foi construído sobre duas pedras fundamentais: a liberdade individual e a autonomia da vontade. Nem liberdade, nem autonomia são compatíveis com a orientação finalística a qual está adstrito o Estado: perseguir o interesse público, em cumprimento da função que lhe incumbe. A Administração Pública desconhece a liberdade: suas competências ou são exercidas de forma vinculada ou discricionária[30], mas nunca livre.

Por tal singela razão, a Administração Pública não pode simplesmente escolher submeter-se a regime de direito privado. O direito administrativo é um direito estatutário: toda vez que estiver presente a Administração Pública em quaisquer dos polos de uma relação jurídica, incidirá, inexoravelmente, o regime de público.

Diz-se que um direito é estatutário quando voltado à regulação de singulares espécies de sujeitos que se agrupam sob um dado nome (p.ex.: Administração Pública), subtraindo-se os mencionados sujeitos da normação do Direito comum. O conjunto normativo próprio a que está submetida a Administração (direito público) é distinto do conjunto normativo a que estão submetidos os particulares (direito privado). Em apertada síntese, pode-se dizer que o regime de direito público é composto de normas que estabelecem prerrogativas (meramente instrumentais ao cumprimento do dever de tutelar o interesse público) à Administração e de normas que lhe estabelecem restrições.

O Direito Administrativo é estatutário, pois as relações a que dá origem, isto é, as relações administrativas, são regidas por normas próprias, pelo regime jurídico administrativo, erigido sob as ideias-matrizes (mandamentos nucleares de um sistema) da indisponibilidade do interesse público e da supremacia do interesse público sobre o privado[31]-[32]. A exigência de proteção do interesse público nos impele a rechaçar possa a Administração submeter-se a regime de direito privado.

Se as avenças que a Administração Pública celebra com os particulares não configuram, a rigor, “contratos da administração” e nem “contratos administrativos”, qual seria então sua natureza jurídica? A resposta foi irretocavelmente desenvolvida por Ricardo Marcondes Martins[33], em artigo monográfico de indispensável leitura, que constitui verdadeira teoria geral do tema.

Quanto ao papel que desempenha a vontade dos particulares na formação dos atos administrativos, assevera o aludido autor que podem ser distinguidos dois grandes grupos: (a) atos administrativos em cuja formação do conteúdo a vontade do particular é irrelevante (assim os atos administrativos unilaterais em sentido amplo, que compreendem os atos administrativos em sentido estrito e os atos administrativos cuja validade ou eficácia está condicionada à manifestação do administrado); e (b) atos administrativos para cuja formação do conteúdo é imprescindível reunir duas ou mais vontades: ou a de dois entes administrativos ou a de um ente administrativo e um particular (chamados de atos administrativos bilaterais ou plurilaterais). Estes últimos se subdividem em duas subclasses: (b1) atos administrativos relativos a interesses contrapostos (v.g., o particular pretende satisfazer seu interesse pecuniário e a Administração pretende concretizar o interesse público) e (b2) atos administrativos relativos a interesses comuns (v.g., convênio administrativo ou consórcios administrativos).

Em suma: nos atos administrativos bilaterais, não somente a formação do vínculo, mas o próprio conteúdo da relação é resultado da reunião de duas ou mais vontades. Pode-se dizer, para fins didáticos, que a edição do ato perfaz, portanto, uma espécie de ato complexo.

Anote-se que os atos administrativos bilaterais constituem aquilo que a doutrina tradicional designa por contratos administrativos. Mas a questão não envolve uma mera troca de rótulos: a figura dos tais contratos administrativos evoca a ideia, a nosso juízo equivocada, de que o regime de direito privado seria integral ou parcialmente aplicável nesta seara. Nada mais enganoso. Como já se disse alhures, o sistema repudia essa assertiva: o regime de direito público é sempre aplicável nas relações que envolvam o Estado.

Isso não quer dizer, entretanto, que algumas regras do direito privado não possam ser aplicadas à Administração; isto é, os atos administrativos bilaterais comportam nova subdivisão: há atos administrativos bilaterais que se submetem exclusivamente a regras de direito público e há atos administrativos bilaterais que se submetem também a regras de direito privado. Ou seja, dependendo do objeto do contrato, o direito admite que o ajuste seja parcialmente submetido às regras de direito privado. Sem embargo, isso não desnatura o regime estatutário da relação: em nenhum caso se tratará de aplicação pura e simples do direito privado, mas de submissão ao regime de direito público, com influxo de uma ou outra regra privada.

A proposta, portanto, não é de taxionomia; mas de distinção do regime jurídico aplicável. Para sustentar a aplicação ao direito público da teoria dos contratos – cujos lineamentos estão enraizados profundamente na consciência jurídica do mundo ocidental, em virtude da tradição romano-germânica em que inserida – a doutrina administrativista teve de conceber grande esforço. A teoria das cláusulas exorbitantes é um exemplo pragmático. Decerto, ela se constitui aberrante no campo privado, na seara da igualdade entre os contratantes. Daí a pertinência da iniciativa inovadora: quiçá a teoria dos atos administrativos em matéria de “contratos administrativos” confira a necessária racionalidade ao sistema, eliminando as incongruências e os desconfortos causados pela utilização (não raro sem a apropriada ressignificação) da velha teoria dos contratos nesse âmbito.

1.4 Alguns conceitos básicos da teoria do ato administrativo

É até mesmo intuitivo: antes de tratar do regime jurídico dos atos administrativos bilaterais, imperativo fixar o que se entende por ato administrativo.

Em alguma medida isso já foi fixado no item 1.1 supra: ato administrativo é a designação por meio da qual genericamente são referidos os veículos introdutores de normas administrativas. Mais: atos administrativos não são apenas os veículos, mas, por transnominação, também as normas por eles introduzidas. Ou seja: trata-se de conceito anfibológico, que designa dois objetos: o veiculo e a norma por ele posta no sistema.

Os atos administrativos podem resultar do exercício de dois tipos distintos de competências: vinculadas ou discricionárias.

Existe vinculação quando, diante do caso concreto, o sistema jurídico globalmente considerado (a correta intelecção das regras e dos princípios incidentes) oferece ao agente competente apenas uma solução ótima para a concretização do interesse público.

Existe discricionariedade quando, de acordo com as circunstâncias do caso concreto, o sistema jurídico globalmente considerado (vale repisar: a correta intelecção das regras e dos princípios jurídicos Incidentes) oferece ao agente competente duas ou mais soluções igualmente ótimas tendo em vista a necessidade de concretização do interesse público. Nesse caso, o sistema imputa a escolha ao agente competente, pois não é possível objetivamente dizer qual a melhor solução para o caso. Há aqui insolúvel dúvida a respeito de qual a melhor opção, porque, inexoravelmente, a decisão variaria de acordo com a visão de mundo e os valores de cada pessoa. Por essa razão, para superar as divergências próprias do pluralismo, é outorgado ao agente competente a prerrogativa de eleger entre os indiferentes jurídicos, aquele caminho que a seu juízo seja o melhor para a fiel concretização do interesse público que lhe incumbe tutelar[34].

Como toda norma jurídica, o ato administrativo pode ser decomposto em três planos: da existência, da validade e da eficácia. Existência é a aptidão de ingressar no mundo jurídico. Validade é a relação de conformidade entre o ato e o sistema normativo. Eficácia é a capacidade de operar os efeitos que lhe são próprios. Essa a clássica proposta de Celso Antônio Bandeira de Mello aqui integralmente acolhida[35].

O tema central deste estudo é o da extinção dos atos administrativos bilaterais (se se quiser: “contratos administrativos”) que constituem parcerias-público privadas. Somente se fala em extinção de normas existentes. Daí a extraordinária utilidade da proposta por Celso Antônio Bandeira de Mello: o ato administrativo eficaz é retirado do mundo jurídico por retirada (invalidação, revogação, cassação, caducidade) ou por autorretirada (esgotamento do conteúdo jurídico; execução material, implemento de condição resolutiva ou termo final). A seu devido tempo, examinaremos pormenorizadamente as causas de extinção das PPPs, categorizando-as em hipóteses de retirada ou de autorretirada.

Com efeito, antes de prosseguir cumpre fixar alguns conceitos basilares em matéria de extinção de atos administrativos[36].

O primeiro é o conceito de vício. O vício consiste numa contrariedade ao Direito. Ato viciado significa ato praticado em desconformidade com a ordem jurídica, globalmente considerada (ato que atente contra regras ou princípios jurídicos do sistema). Os vícios podem ser subdivididos quanto à gravidade em: (a) vícios de pouco ou nenhuma relevância para o Direito: não geram o efeito de impor sua correção, isto é, não impõem sua sanatória (ou salvamento) nem sua eliminação. Atos atingidos por este tipo de vício são atos irregulares, em relação os quais o sistema não exige, mas apenas faculta a correção; (b) vícios graves, particularmente relevantes para o Direito: nesse caso o vício é de tal magnitude que o sistema exige, no momento imediatamente posterior à constatação do vício, que o ato seja corrigido (sanatória ou eliminação) pela edição de outro ato jurídico, administrativo ou jurisdicional. Trata-se das hipóteses de invalidade, que pode ser originária ou superveniente à edição do ato administrativo. Com efeito, a invalidade superveniente resulta de um vício do ato administrativo que venha a surgir posteriormente à sua edição ou, noutras palavras, que a desconformidade com o Direito ocorra no momento posterior ao da edição do ato, fazendo com que o sistema jurídico exija a correção do ato maculado.

Não se deve confundir invalidade do ato com invalidação do ato. Invalidade é uma qualidade dos atos viciados que gera o efeito de impor ao Estado o dever de correção do vício. Invalidação é apenas uma das formas de correção do vício do ato administrativo prevista no sistema: é o ato de retirada cujo fundamento reside numa invalidade original do ato retirado. Cassação e caducidade (ou decaimento) são atos de retirada fundamentados na invalidade superveniente do ato retirado. Vale dizer: em razão da alteração das circunstâncias fáticas ou jurídicas o ato administrativo anteriormente válido, torna-se viciado. A cassação é o ato de retirada em razão do descumprimento, pelo particular, de exigências que lhe são impostas pela ordem jurídica para a manutenção do ato. A caducidade (ou decaimento) diz respeito a retirada do ato em razão da alteração de outras circunstâncias fáticas ou jurídicas, incidentes no momento da edição do ato, que alteram o resultado da ponderação, tornando o ato viciado.

Por outro lado, são formas de sanatória (ou salvamento) do ato administrativo: (a) conversão: consiste na edição de um ato administrativo que tem por efeito a transformação de um ato viciado em outro ato, de forma que o ato viciado seja saneado. É uma modalidade de sanatória, pois há o aproveitamento dos efeitos do ato inválido para o outro ato; (b) redução ou reforma: consiste na edição de um ato administrativo que tem por efeito a exclusão da parte inválida do ato viciado, mantendo a parte válida; corresponde, portanto, a uma invalidação parcial. O ato redutor retira o ato inválido do sistema e toma para si parte dos efeitos produzidos por ele. É uma modalidade de sanatória porque há aproveitamento (ainda que parcial) do ato viciado; (c) convalidação: consiste na edição de um ato administrativo que retira, com efeitos retroativos, o vício do ato administrativo inválido, mantendo-se, no mais, o ato tal como editado. Ou seja, a convalidação corrige o vício e mantém o ato e todos os efeitos gerados por ele. Trata-se da modalidade de sanatória mais eficaz, pois o aproveitamento do ato viciado é total. A convalidação é chamada de ratificação se efetuada pela mesma autoridade que editou o ato viciado e de confirmação se efetuada por autoridade distinta.

Por fim, há outra hipótese de correção: trata-se da Invalidação e concomitante edição de outro ato. Nesse caso, trata-se da hipótese de invalidação total da norma e concomitante edição de outro ato administrativo, com efeitos para o futuro. A hipótese lembra a redução, se o conteúdo do novo ato é parcialmente equivalente ao anterior; lembra a conversão, se inexiste identidade entre o conteúdo do novo ato e do ato anterior; lembra convalidação se o conteúdo do novo ato é idêntico ao do ato anterior; e, por isso, podem impropriamente ser chamadas respectivamente de redução irretroativa, conversão irretroativa e convalidação irretroativa. Diz-se impropriamente porque não havendo o aproveitamento dos efeitos do ato anterior, não há que se falar em redução, conversão ou convalidação, mas em invalidação e concomitante edição de novo ato.

Expostos sumariamente estes conceitos basilares da teoria dos atos administrativos, pode-se, finalmente, examinar o tema central de nossa exposição. O objetivo mediato é que os elementos trazidos ofereçam grande valia no enfrentamento central deste estudo: as causas de extinção das PPPs.

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Sobre o autor
Rodrigo Ramos Figueiredo

Advogado e Professor. Especialista em Processo Civil e em Direito Administrativo. Mestrando em Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FIGUEIREDO, Rodrigo Ramos. Extinção dos “contratos” de parceria público-privada. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4392, 11 jul. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/40781. Acesso em: 24 abr. 2024.

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