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Carnê Fartura

20/07/2015 às 12:24
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Relembramos o rumoroso caso do mentor do “carnê-fartura”, posteriormente foragido, que narra em um livro toda sua aventura e conclui ter sido fácil consumar o golpe, dada a índole dos brasileiros, que, ávidos de lucros fáceis, nem de longe perceberam a arapuca.

No livro “Brasil para principiantes”, Peter Kellemen descreveu o seguinte: “É um fato inegável que a livre iniciativa é a base da vida econômica no Brasil: os impostos são relativamente baixos, a parte do Governo nos lucros anuais é bastante sonegável e não há setor no comércio ou na indústria onde não exista uma brecha para que o novato possa principar”.

Dizia Peter Kelleman que o Brasil “É uma terra talvez um pouco curiosa, mas mil vezes abençoada”, no prefácio da segunda edição de seu livro “Brasil para principiantes – venturas e desventuras de um brasileiro naturalizado”.Ele explicou em seu livro: Se existe no mundo um país com personalidade sex appeal, este é o Brasil. Não deveria ser masculino. O caráter deste país (se é que uma Nação pode ter caráter) é igual ao de certa criatura que todos nós já tivemos na vida. Alguém cheio de contrastes, beleza, sinceridade, um pouco de mistério, insubmisso, de personalidade marcante. Não tente modifica-lo.

O carnê fartura que ele lançaria com audácia, mesmo depois do fracasso do “negócio dos cinco por cento”(colocava-se como intermediário em empréstimos, assumindo o encargo de cobrador: pagava cento por cento, mas recebia percentagens mais elevadas), é considerado mais uma consequência de suas apreciações. Antes foi envolvido na emissão de cheque sem fundos de 200 mil cruzeiros antigos, grande quantia para a época. Posteriormente, instalou-se em Copacabana, na cidade do Rio de Janeiro, com as lojas Burman, e faliu de forma fraudulenta, provocando um estouro de 28 milhões de cruzeiros antigos.

O carnê fartura prometia tudo ao preço de dois mil cruzeiros antigos, que era o quanto custava. Depois acrescentava a publicidade, era só acompanhar os sorteios semanais para ganhar uma casa, um carro, outros prêmios menores, mas também valiosos, ou ainda, “morar e comer um ano inteiramente de graça”.

Com a experiência que teve pelo ramo dos empréstimos a cinco por cento ao mês, Kellemen fundou a Cooperativa Banco de Crédito Itabira, na qual o seu nome não aparecia, como convinha, no expediente. No entanto, gozava das regalias e era tratado como diretor. Processado como agiota, ele não pode se apresentar como a pessoa mais importante do banco, mas era tratado como tal por todos os funcionários.

Os cheques do carnê fartura só podiam ser descontados nesse banco.

No dia 13 de julho de 1965, aconteceu o estouro.

Um comerciante, que fazia parte dos estabelecimentos integrados no negócio do carnê fartura, quis receber um milhão de cruzeiros antigos (em 1968) equivalentes à troca dos produtos que vendera pelos talões do carnê fartura que lhe foram entregues e o não pagamento o irritou.  

A proposta de que voltasse no dia seguinte lhe provocou ainda mais a ira. E quando o gerente não apareceu, vindo em seu lugar um chefe de serviço para atende-lo, sua ira chegou ao extremo. Com a demora no pagamento da quantia, o comerciante puxou do revolver. Parece que foi o que bastou para provocar um pequeno pânico, que se fez maior quando explodiu a noticia de que o carnê fartura estourara.

Necessário dizer que os integrantes da chamada Rede Nacional da Fartura (sobretudo, mercearias, farmácias, lojas de tecidos e roupas) não mantinham contratos escritos com a organização de Kellemen, comprometendo-se apenas a vender as suas mercadorias pelo cheque emitido pelo carnê fartura contra a Cooperativa Banco de Crédito Itabira. Os carnês eram 24 no valor de 1 mil. Havia 48 postos para vender ao públicos os carnês fartura, mas os comerciantes que tinham relacionamento com a organização muitas vezes não sabiam informar onde encontra-los, uma vez que o negócio só os interessava pela publicidade gratuita que representava a sua citação nos anúncios da Rede Nacional da Fartura.

Não havia contratos escritos entre a organização Carnet Fartura e os comerciantes integrados à Rede Nacional da Fartura. As casas de comércio (abrangendo todos os gêneros, mas sobretudo mercearias, farmácias e lojas de tecidos e roupas) apenas se comprometiam a vender as suas mercadorias pelo cheque emitido pelo Carnet Fartura, contra a Cooperativa Banco de Crédito Itabira.

Para Kellemen “no Brasil, não se paga pela mercadoria adquirida e não se recebe pelos artigos fornecidos. Aliás, você pagará e receberá... mas não já... daqui a algum tempo, dentro de alguns meses, se Deus quiser, essas contas serão saldadas”.

O Departamento Jurídico do Banco Central recebeu, à época do golpe, julho de 1965, o primeiro relatório dos interventores na Cooperativa de Crédito Itabira, que confirmaram a existência de um desfalque de Cr$500 milhões, cuja autoria foi de Peter Kellemen, que geria o estabelecimento. Para resguardar o dinheiro dos correntistas foi tomada medida de bloqueio de operações da Cooperativa. Como dito, os carnets eram 24 no valor de cr$1 mil ou seis no valor de cr$ 4 mil cada um, mas, nem sempre, o portador do Carnet Fartura saia da loja com cr$24 mil de mercadorias; não precisando ou não se interessando, guardava parte do crédito para outra ocasião. Os cheques eram descontados pelos comerciantes somente na Cooperativa Banco de Crédito Itabira. Mas os comerciantes pouco sabiam da Organização Carnet Fartura, além dos dados publicados nos anúncios.

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Peter kellemen fugiu do Brasil com passaporte falso, tendo sido condenado em primeira instância a pena de 4 anos e 8 meses, sendo metade pelo regime de reclusão e o resto na detenção, além de multa de 28 cruzeiros novos, à época.

Pelos  diversos crimes de estelionato que cometeu poderia pegar 30 anos de pena. 

Informou-se que Kellemen, brasileiro naturalizado, em agosto de 1968, estava preso em Assunção, no Paraguai, época em que o Itamarati remeteu documentação para sua extradição.

O mentor do “carnê-fartura”, posteriormente foragido do país, ainda teve a ousadia de escrever um livro, em que narra toda a sua aventura em detalhes, concluindo ter sido fácil consumar o golpe, dada a índole dos brasileiros, que, ávidos de lucros fáceis, nem de longe perceberam tratar-se de uma bem montada arapuca.

Os fatos narrados envolvem crimes contra a economia popular e se somam a um longo catálogo de escândalos praticados no Brasil.

Nos crimes contra a economia popular a vítima é uma coletividade, com um número expressivo de vítimas, quando se tem o chamado estelionato massivo.

É o que se costuma denominar no mercado financeiro de “ciranda”, “corrente” ou “pirâmide”, por se tratar de negócio baseado sobre um conjunto crescente de investidores,  que são ludibriados com a expectativa de ganhos irreais e impossíveis de serem gerados pelo funcionamento lícito e regular da economia.

As vítimas são induzidas e mantidas em erro quanto à situação da empresa, sendo-lhes sonegadas as  informações, que são prestadas falsamente, além da conduta envolver veiculação, por intermédio dos meios de comunicação, de informações enganosas e, com isso, acarretam maior confiabilidade ao empreendimento, ludibriando, assim, centenas de consumidores, insuflando-os a ingressarem no negócio. A esse propósito, leia-se o artigo 2º, IX, da Lei 1.521/51.

Trata-se de crime material que exige o dolo como elemento do tipo penal. 

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Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. Carnê Fartura. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4401, 20 jul. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/40976. Acesso em: 2 nov. 2024.

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