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O garantismo de Luigi Ferrajoli e a discricionariedade judicial

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19/07/2015 às 16:45
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A teoria garantista parte do pressuposto de inevitabilidade e inafastabilidade de espaços de discricionariedade no Estado Constitucional de Direito condicionando o grau de discricionariedade ao grau de ilegitimidade dos poderes.

INTRODUÇÃO

O presente estudo pretende analisar a teoria do garantismo de Luigi Ferrajoli a partir da obra “Direito e Razão: teoria do garantismo penal”, a partir da qual bases garantistas foram trasladadas ao processo civil nos permitindo hoje falar em “garantismos”.

De acordo com o que se verá da teoria garantista, não se nega os espaços de discricionariedade, apesar de se repudiar o ativismo judicial, soando como uma contradição que tenta o autor explicar, em que pese reconhecer não ser uma solução aboslutamente satisfatória.

Sua obra é vasta e certamente a crítica do direito brasileiro não seria a mesma sem a sua teoria garantista.


Noções introdutórias

Para entender sua teoria, é necessário desde já consignar tratar o autor do vocábulo “garantismo” com três designações:

Garantismo como Modelo de direito

Como modelo de direito, garantismo é sinônimo de Estado de Direito. Veja-se:

De início, Ferrajoli já ressalta que "Estado de direito" é conceito amplo e genérico com múltiplas designações na história do pensamento político.

É conceito que vai desde o "governo das leis" em contraposição ao "governo dos homens", em alusão a Platão e Aristóteles, passando pela doutrina do medievo sobre a fundação jurídica da soberania, pelo pensamento político liberal a respeito dos limites da atividade do Estado e sobre o Estado mínimo, pela doutrina jusnaturalista da observância às liberdades fundamentais por parte do direito positivo, o constitucionalismo inglês e norte-americano, a tese da separação dos poderes, a teoria jurídica do Estado elaborada pela ciência juspublicista alemã do século passado e, ainda, pelo normativismo kelseniano[1].

Ferrajoli associa “Estado de direito” à duas noções que elabora correspondentes aos duplos sentidos do princípio da legalidade:  a legalidade em sentido lato, ou validade formal, que requer, tão somente, que todos os poderes dos sujeitos titulares sejam  legalmente predeterminados, bem como as formas de exercício; e à legalidade em sentido estrito, ou validade substancial, que exige, outrossim, que lhe sejam  legalmente preordenadas e circunscritas, mediante obrigações e vedações, as matérias de competência e os critérios de decisão.

Assim, o faz conforme duas designações anteriores de “Estado de direito” feitas por Norberto Bobbio: governo per leges ou mediante leis gerais e abstratas ou governo sub lege ou submetido às leis, podendo este ainda ser entendido num sentido débil (lato ou formal) em que qualquer poder deve ser conferido pela lei e exercitado nas formas e com os procedimentos por ela estabelecidos; e em sentido forte (estrito ou substancial) no qual qualquer poder deve ser limitado pela lei que lhe condiciona tanto formas quanto conteúdos.

De acordo com o primeiro sentido se encontram os Estados de direito de todos os ordenamentos (inclusive autoritários e totalitários) nos quais Lex facit regem, enquanto conforme o segundo sentido (e que engloba o primeiro) estão somente os Estados constitucionais – e em particular aqueles Estados de Constituição rígida – os quais incorporam, nos níveis normativos superiores, limites não somente formais, mas também, substanciais ao exercício de qualquer poder[2].

Conclui, então, que o termo “Estado de direito” empregado em sentido substancial ou estrito, no qual o poder possui limites formais e de conteúdo e que designa os Estados constitucionais (em particular, os de Constituição rígida), atrelado à legalidade em sentido estrito ou validade substancial, é sinônimo de garantismo. Explica o autor:

Designa, por esse motivo, não simplesmente um "Estado legal" ou "regulado pelas leis", mas um modelo de Estado nascido com as modernas Constituições e caracterizado: a) no plano formal, pelo princípio da legalidade, por força do qual todo poder público - legislativo, judiciário e administrativo - está subordinado às leis gerais e abstratas que lhes disciplinam as formas de exercício e cuja observância é submetida a controle de legitimidade por parte dos juízes delas separados e independentes (a Corte Constitucional para as leis, os juízes ordinários para as sentenças, os tribunais administrativos para os provimentos); b) no plano substancial da funcionalização de todos os poderes do Estado à garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos, por meio da incorporação limitadora em sua Constituição dos deveres públicos, correspondentes, isto é, das vedações legais de lesão aos direitos de liberdade e das obrigações de satisfação dos direitos sociais, bem como dos correlativos poderes dos cidadãos de ativarem a tutela judiciária[3].

Assim, ultrapassando tanto as garantias liberais consistentes em prestações negativas num Estado cuja regra básica é que nem sobre tudo se pode decidir, quanto as garantias sociais consistentes em prestações positivas num Estado cuja regra é que nem sobre tudo se pode não decidir, tem-se um Estado de direito cuja regra prevalecente é que, sobre a base restante da aplicação das regras anteriores, ou seja, sobre o que se pode decidir e sobre o que não se pode deixar de decidir, se deve decidir por maioria, direta ou indireta, dos cidadãos.

Mas veja: um Estado de direito que reflete não somente a vontade da maioria, mas os interesses e necessidades vitais de todos, resultante da união entre democracia (tanto substancial quanto formal) e garantismo como técnicas de limitação e de disciplina dos poderes públicos.

Nesse Estado de direito, a democracia abrange uma democracia substancial ou social de efetivas garantias e uma democracia formal ou política em que o Estado político representativo baseia-se no princípio da maioria como fonte de legalidade.

Essa democracia, tanto formal quanto substancial, deve ser acoplado ao garantismo focado na máxima aproximação entre texto e efetividade e no mínimo descompasso existente entre a normatização estatal e as práticas que deveriam estar fundamentadas nelas.

Quanto mais um ordenamento expande os direitos e garantias com a incorporação de deveres públicos, mais é ressaltada a divergência entre normatividade e efetividade, entre validade e vigor, entre dever ser e ser do direito.  E a preocupação de Ferrajoli sobre a distância entre o ser o dever ser é explicada porque isto repercute na perda de legitimação jurídica do funcionamento dos poderes públicos e das normas por estes produzidas.

Basicamente, a legitimação formal traduz-se em condições formais ao válido exercício do poder e delineia as regras sobre quem pode e sobre como se deve decidir, relacionando-se assim com a forma de governo.

Por sua vez, a legitimidade substancial traduz-se em condições substanciais que desenham as regras sobre o que se deve ou não se deve decidir, relativas à estrutura dos poderes, dependentes do caráter de direito, do sistema jurídico (absoluto ou autoritário...)[4].

Nesse sentido, a mera legalidade, que submete os atos às leis, coincide com a legitimação formal, enquanto a estrita legalidade, que subordina todos os atos, inclusive as leis, aos conteúdos de direitos fundamentais, coincide com a sua legitimação substancial[5].

Nada impede, obviamente, que uma Constituição possua regras de ambos os tipos, caracterizando o ordenamento como Estado “democrático” e Estado “de direito”.

Ocorre que o Estado de direito delineado como produto da união entre democracia e garantismo não pode se distanciar da estipulação de direitos e garantias e também não pode ignorar a possibilidade da perda de legitimação em decorrência do distanciamento entre efetividade e vigência das normas, de maneira que então se passa para o segundo significado do termo garantismo.[6]

Garantismo como teoria do direito

Viu-se que o garantismo coincide com a forma de tutela dos direitos vitais dos cidadãos por meio de sua positivação pelo Estado de direito, o que se concebe no âmbito da teoria do positivismo jurídico.

Superficial seria somente afirmar que inegavelmente Ferrajoli superou o positivismo[7] exegético, pois também distinguiu-se (ou superou) do positivismo de Kelsen. Faz-se necessário uma explicação mais profunda.

Isso que se chama de exegetismo tem origem num texto específico no qual giravam os mais sofisticados estudos do direito, qual seja, o Corpus Iuris Civilis, em razão da anterior função complementar do direito romanos em relação aos Códigos.  Basicamente, se o direito comum não resolvesse o caso, buscava-se a solução nos estudos sobre o direito romano produzido pelos comentadores ou glosadores[8].

Tal função de complementaridade desaparece totalmente com a vinda dos Códigos Civis (França em 1804 e Alemanha em 1900) que se tornam o dado positivo (“texto sagrado”) com o qual deve se dar a ciência do direito.[9]

Como não poderia deixar de ser, se percebeu que os Códigos não cobriam todas as hipóteses fáticas, o que gerou um problema de interpretação de direito[10] que foi inicialmente respondido pela Escola da Exegese na França e pela Jurisprudência dos Conceitos na Alemanha.

É esse primeiro momento que se designa como positivismo exegético, legalista ou primevo e que é caracterizado principalmente pela consagração de uma análise sintática para resolução do problema interpretativo, ou seja, bastava a simples conexão lógica dos signos[11].

Entretanto, nas primeiras décadas do século XX viu-se a fragilidade dos modelos sintático-semântico de interpretação da codificação.

O problema de indeterminação do sentido do direito elevou-se a foco principal nesse segundo momento designado como positivismo normativista[12], aparecendo os estudos de Hans Kelsen cujo principal objetivo era reforçar o método analítico proposto pelos conceitualistas como respostas às nefastas consequências geradas pela Jurisprudência dos Interesses e pela Escola de Direito Livre como a penetração de argumentos psicológicos, políticos e ideológicos na interpretação do direito.[13]

Kelsen percebe a semântica como problema crucial na interpretação do direito e constata que o espaço de movimentação do intérprete decorre deste problema semântico existente quando da aplicação de um signo linguístico.

Em Kelsen, a interpretação é fruto de uma cisão: a interpretação como ato de vontade que produz normas (aqui exsurge a característica relativista da moral kelseniana) e a interpretação como ato de conhecimento que produz proposições e que decorre, da descrição no plano da metalinguagem, as normas produzidas pelas autoridades jurídicas (relação meramente sintática entre as proposições).[14]

Ensina Lenio Streck:

Portanto, em um ponto específico, Kelsen se rende aos seus adversários: a interpretação do direito é eivada de subjetivismos provenientes de uma razão prática solipsista. Para o autor austríaco, esse desvio é impossível de ser corrigido. (...) O único modo de corrigir essa inevitável indeterminação do sentido do direito somente poderia ser realizado a partir de uma terapia lógica – da ordem do a priori – que garantisse que o direito se movimentasse em um solo lógico rigoso. Esse campo seria o lugar da teoria do direito ou, em termos kelsenianos, da ciência do direito. E isso possui uma relação direta com os resultados das pesquisas levadas a cabo pelo Círculo de Viena.[15]

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Isto é, Kelsen privilegiou as dimensões semânticas e sintáticas, deixando a pragmática para a discricionariedade.

A questão não explicada pelo positivismo jurídico é a justificação das decisões, que, como menciona Rosemary Cipriano da Silva[16], abre margem a discricionariedades. Nesse ponto o positivismo é dicisionista: a escolha vale por ela mesma.

Ou seja, Kelsen superou o exegetismo, mas não tratou da aplicação do direito.

Já a teoria do professor Ferrajoli afirma a existência de aspectos formais e substanciais no mundo jurídico.

O aspecto formal está no procedimento já traçado previamente pelo ordenamento jurídico para a validade de uma nova norma, similar à Teoria Pura do Direito de Kelsen que estabelece na validade de uma outra norma anterior no tempo e superior na hierarquia que prevê as diretrizes formais para que seja válida.

Contudo, Ferrajoli acrescenta ao aspecto formal o elemento substancial, isto é, a validade para este autor também traria elementos de conteúdo, materiais, como fundamento da norma, os quais seriam os direitos fundamentais.

Assim, para Ferrajoli, se a norma ingressasse no ordenamento pelo procedimento formal – que para ele configurava vigência – mas não estivesse substancialmente de acordo com os direitos fundamentais, tal norma seria inválida. Nesse sentido é que conclui que o conceito de validade de Kelsen se confunde com o conceito de vigência.

Observa-se, nesse sentido, consagrar-se como juspositivista crítico[17] (não dogmático) por fazer críticas ao direito positivo tanto do ponto de vista interno quanto externo.

Uma teoria garantista do direito pressupõe a distinção do vigor das normas, tanto de sua validade quanto de sua efetividade, essencial diferenciação para se compreender a estrutura normativa do Estado de direito[18].

E nesse sentido, o juspositivismo dogmático contraria sua teoria na medida em que encampa a orientação teórica que não distingue o conceito de vigor das normas como categoria independente da validade e da efetividade[19], englobando tanto os ordenamento normativos, que reconhecem a vigência somente das normas válidas, quanto os ordenamentos realistas, que reconhecem a vigência somente das normas efetivas[20].

Afinal, a incorporação limitativa dos deveres nos níveis mais altos do ordenamento desacompanhada de efetividade é o que produz a ilegitimidade jurídica já apresentada, tema fucral numa teoria de direito garantista que se autoconfigura principalmente como crítica do direito positivo vigente.

Esta orientação de crítica ao direito positivo vigente sob uma perspectiva tanto externa[21], ou política, quanto interna[22], ou jurídica, voltada à inefetividade e invalidade, é designada pelo autor como “juspositivismo crítico” (distinção que substancialmente coincide com a tradicionalmente existente entre justiça e validade), e reflete no trabalho do juiz e do jurista colocando em xeque os dogmas do juspositivismo dogmático da fidelidade do juiz à lei e da função meramente descritiva e valorativa do jurista na observação do direito positivo vigente[23].

O primeiro dogma, que de Bentham até Kelsen forma o postulado teórico do juspositivismo, qual seja, a obrigação judicial de aplicar as leis vigentes, é facilmente relativizada pela concepção de que as leis vigentes podem ser suspeitas de invalidade e, portanto, nesses casos em particular, deveriam os juízes não aplicá-la, ressaltando seu poder de interpretar as leis e suspender-lhes a aplicação se as consideram inválidas por contraste à Constituição[24].

Por sua vez, o segundo dogma se refere à atitude do jurista e à função da ciência jurídica no tocante ao direito positivo. As doutrinas juspositivistas apontam o caráter avalorativo da ciência jurídica e a não possibilidade de crítica das leis vigentes a partir de seu interior, mas tão somente do exterior, ou seja, em sede de moral e política. Em Kelsen a teoria do direito como “pura” assim é porque isenta de juízos subjetivos de valor.

Ferrajoli[25] critica os dois dogmas a partir da análise dos juízos de validade e aponta que, ao menos nos ordenamentos complexos próprios dos Estados de direito tais juízos distinguem dos juízos sobre o vigor das normas. Explica o autor:

Para que uma norma exista ou esteja em vigor, é suficiente que satisfaça as condições de validade formal, as quais resguardam as formas e os procedimentos do ato normativo, bem como a competência do órgão que a emana. Para que seja válida, é necessário que satisfaça ainda as condições de validade substancial, as quais resguardam o seu conteúdo, ou seja, o seu significado (...) Todavia, enquanto as condições formais de vigor consistem em adimplemento de fato, na ausência dos quais o ato normativo é imperfeito e a norma por ele ditada não vem à existência, as condições substanciais da validade, e exemplarmente as de validade constitucional, consistem habitualmente no respeito aos valores (...)[26].

Do que se conclui pela possibilidade de se predicar os juízos de vigor como verdadeiros ou falsos, o que já não se consegue realizar com os juízos de validade, vez que não são esses, como os primeiros, juízos de fato, mas sim juízos de valor, e como tais, nem verdadeiros nem falsos[27].

Observe-se, contudo, que a sujeição à lei deve ser aqui entendida como observâncias às leis constitucionais, ou seja, à Constituição do Estado de direito “sobre cuja base o juiz tem o dever jurídico, e o jurista tem a tarefa científica, de valorar - eventualmente de censurar – as leis ordinárias vigentes”[28].

Assim, juspositivismo crítico exclui a sujeição acrítica e avalorativa das leis vigentes, pois a sujeição cega à lei omitiria a complexidade estrutural do Estado de direito e a potencial ilegitimidade das leis nele geradas por desníveis normativos.

Consequentemente, desconsagra tanto a coerência quanto a completude[29], postulados do juspositivismo dogmático, afirmando e explicando a existência de antinomias e lacunas.

Garantismo como filosofia política

Como doutrina filosófico-política, o garantismo permite a crítica e a perda da legitimação desde o exterior das intituições jurídicas positivas, baseadas na rígida separação entre direito e moral, ou entre validade e justiça, ou entre ponto de vista jurídico ou interno e ponto de vista ético-político ou externo ao ordenamento, aderindo-se à filosofia analítica.

Em síntese, o pressuposto do garantismo é sempre uma visão pessimista do poder como maléfico independentemente de quem o detenha, porque tem-se em vista o despotismo.


A teoria do garantismo de Luigi Ferrajoli

O garantismo germinado na cultura jurídica do Iluminismo possui sua maior referência na reflexão teórica de Luigi Ferrajoli.

Nas esfera penal, o modelo garantista clássico funda-se nos princípios da legalidade estrita (que não se confunde com mera legalidade como se verá), da materialidade e da lesividade dos delitos, da responsabilidade pessoal, do contraditório entre as partes e da presunção de inocência, frutos da tradição jurídica do iluminismo e do liberalismo[30].

Aliás, foi exatamente pela prevalência do princípio da estrita legalidade na jurisdição penal que parece ter o autor escolhido aqui seu laboratório de análise, já que esta é especialmente voltada ao nexo existente entre a verdade da motivação e a validade da decisão.

Mas a variedade de linhas que se misturam na tradição iluminista e liberal são muitas e distintas, o que justifica não serem filosoficamente homogêneas entre si nem tampouco estritamente liberais vez que podem fundamentar concepções por vezes opostas, como penas como mínima aflição e, por outro lado, penas autoritárias e antigarantistas orientadas à máxima segurança possível.

Grande exemplo é o positivismo jurídico que se baseia no princípio da estrita legalidade e contrariamente também pode fundamentar modelos penais absolutistas por “ausência” de limites ao poder normativo.

Os mencionados princípios garantistas consolidados nas constituições e codificações modernas formam um sistema coerente e unitário, configurando ainda um esquema epistemológico de identificação do desvio penal voltado a assegurar o máximo grau de racionalidade e confiabilidade do juízo com vistas à limitação do poder punitivo de tutela do indivíduo contra a arbitrariedade[31].

A teoria de Ferrajoli apresenta dois elementos constitutivos ressaltados e que são importantes para qualquer redimensionamento que se faça a partir do âmbito penal: um relativo à definição legislativa e outro à comprovação jurisdicional do desvio punível correspondentes respectivamente às garantias penais e às garantias processuais (do sistema punitivo que fundamentam).

Isto deixa claro que o modelo penal garantista sustenta a insuficiência da análise apenas sobre o plano legislativo, considerando necessário o plano judicial pela constatação de espaços inevitáveis de discricionariedade dispositiva como se verá.

Tratando do primeiro elemento, o legislativo, ele resulta do princípio da legalidade estrita, qual seja, o convencionalismo penal. Exige além de uma condição formal ou legal, uma condição empírica ou fática.

Segundo a condição formal ou legal, o desvio penal é aquele formalmente indicado pela lei como pressuposto necessário para a aplicação de uma pena (nulla poena et nullum crimen sine lege) desgarrada de juízos de valor, de entendimentos pessoais sobre a imoralidade ou anormalidade social da conduta.

Esta condição equivale ao “princípio da mera legalidade” designado por Ferrajoli[32] como garantia da submissão do juiz à lei, sendo assim claramente direcionado aos julgadores e correspondente ao conhecido princípio da reserva legal.

Por sua vez, de acordo com a condição empírica ou fática, a definição legal do desvio punível deve levar em consideração tão-somente aspectos objetivos do comportamento que se deseja punir a configurar figuras empíricas desprovidas de subjetividades sobre eventuais características do autor.

Esta condição corresponde ao que Ferrajoli expressa por “princípio da estrita legalidade” como garantia do caráter deôntico da proibição a excluir qualquer configuração ontológica ou extralegal[33], sendo assim claramente direcionado ao legislador.

Nesse sentido, é possível compreender que a segunda condição ratifica e fortalece a primeira como reforço de que a submissão do juiz seja somente à lei, em caráter absoluto[34].

Ambas as condições são garantias de liberdade que asseguram a punição somente quando em conformidade com o que está proibido na lei, e obliquamente, a permissão de tudo que não esteja proibido pela lei. Ainda, atinge consequentemente a igualdade jurídica dos cidadãos ao restar previsto legalmente apenas tipos objetivos de desvio[35].

Tratando agora do segundo elemento da epistemologia garantista, o jurisdicional, consiste ele no cognitivismo processual na determinação concreta do desvio punível e configura, portanto, influência na formulação das motivações dos pronunciamentos jurisdicionais.

Corresponde essa garantia no que Ferrajoli chama de “princípio da estrita jurisdicionariedade” que assegura “a verificabilidade ou refutabilidade das hipóteses acusatórias, em virtude de seu caráter assertivo, e sua comprovação empírica, em virtude de procedimentos que permitem tanto a verificação como a refutação”[36].

Isto porque as figuras legais delituosas com indeterminação de suas definições legais acabam por remeter, mais do que a provas, a discricionárias valorações do juiz de maneira que, o princípio da estrita jurisdicionariedade visa a que também o juízo, além da lei, tenha caráter recognitivo (de direito) das normas e cognitivo (de fato) dos fatos por ela regulados, mas jamais constitutivo.

Basicamente, a comissão de um fato necessita ser suscetível de prova ou de confrontação judicial segundo a máxima nulla poena et nulla culpa sine judicio ao mesmo tempo em que as hipóteses acusatórios necessitam condicionalmente ser passíveis de submissão a verificações e refutações segundo a fórmula nullum judicium sine probatione:

A juris-dição, na realidade, segundo as palavras de Francis Bacon, é – ou pelo menos pretende ser – jus dicere e não jus dare: quer dizer, é uma atividade normativa que se distingue de qualquer outra – não só da legis-lação, senão também da administração e da atividade negocial – enquanto motivada por afirmações supostamente verdadeiras e não apenas por prescrições, de modo que não é meramente potestativa nem sequer discricionárias, mas está vinculada à aplicação da lei aos fatos julgados, mediante o reconhecimento da primeira e o conhecimento dos segundos.[37]

Ocorre que, como confessa o autor, “o juiz não é uma máquina automática na qual por cima se introduzem os fatos e por baixo se retiram as sentenças”[38] sendo uma ilusão a ideia de um silogismo perfeito.

Admite, assim, espaços de poder insuprimíveis na atividade judicial.

Da mesma forma que a interpretação da lei não é exclusivamente recognitiva, a prova dos fatos não é apenas cognitiva, pois ao final serão sempre fruto de escolhas a respeito das hipóteses interpretativas no caso da primeira e explicativas no caso da segunda.

Tais espaços formam, na teoria de Luigi Ferrajoli, o poder judicial, e são quatro: o poder de indicação, de interpretação ou de verificação jurídica; o poder de comprovação probatória ou de verificação fática; o poder de conotação ou de compreensão equitativa; reunidos esses três primeiros poderes no poder de cognição, de certa forma irredutíveis e fisiológicos; e o poder de disposição ou de valoração ético-política, produto patológico de desvios e disfunções politicamente injustificadas dos três primeiros tipos de poder[39].

Ou seja, o modelo garantista penal não nega (tampouco se considera incompatível com) a presença de momentos valorativos do que se reconhece que afasta qualquer ideologia de aplicação mecanicista da aplicação da lei.

Mas é notório que apesar de reconhecer a presença da discricionariedade, o faz porque a considera inafastável mesmo diante de uma concepção formalista e convencional.

Contudo, também não se identifica com a concepção formalista e convencional pois se assim não fosse não rechaçaria frontalmente, como faz, a epistemologia antigarantista que defende a configuração do delito conforme o desvio criminal considerado imoral ou anti-social e com referências à características da pessoa do delinquente[40].

Afinal, a aceitação dessa configuração gera a desvalorização do papel da lei além de difundir a previsão legal de figuras delituosas elásticas e indeterminadas[41], o que vai contra sua teoria, pois estar-se-ia esvaziando o princípio da estrita legalidade[42] e perseguindo o indivíduo pelo que ele é.

Ademais, este modelo substancialista enfraqueceria a autoridade da lei por permitir a interpenetração entre direito e moral em busca de uma pretendida “verdade” de cunho social.

Note: Ferrajoli esclarece que não é possível pragmaticamente controlar a integralidade dos procedimentos probatórios e interpretativos, mas isso não exclui a possibilidade de se ter um controle máximo de tais procedimentos pelo sistema normativo. Acredita que isso é possível por meio das garantias de estrita legalidade e estrita jurisdicionariedade, ou seja, pelos dois elementos constitutivos ressaltados de sua teoria. O segundo elemento é um reforço do primeiro, é sua condição de efetividade, já que nada adianta a lei se o juiz dela fizesse o que quisesse e bem entendesse!

Veja: A epistemologia antigarantista compõe-se de um decisionismo processual repleto de subjetividade presente esta tanto na descrição típica do delito ao vincular fatos a condições e qualidades pessoais do autor (e portanto, subjetiva, numa nítida pretensão de analisar a interioridade da pessoa julgada, como na inquisição relatada por Alvarado Velloso), quanto do juízo, que, em vista da subjetividade da descrição, recaindo em valorações e suspeitas que  desprivilegiam provas de fato, transmudando uma verdade empírica e controlável em convencimento subjetivo e irrefutável do julgador[43].

 Essa visão penal da teoria de Ferrajoli é necessária para uma melhor compreensão das preocupações presentes no pensamento do Autor e que foram posteriormente trasladadas para o processo civil[44].

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Sobre a autora
Amanda Lobão Torres

Mestranda em Direito Processual Civil pela PUC/SP Integrante da Comissão de Direito Eleitoral da OAB/SP Integrante da ABRADEP e IBDPUB Advogada- Lobão Torres & Campos Machado Advogados Associados

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TORRES, Amanda Lobão. O garantismo de Luigi Ferrajoli e a discricionariedade judicial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4400, 19 jul. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/40995. Acesso em: 26 abr. 2024.

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