2. O DIREITO FUNDAMENTAL AO DESENVOLVIMENTO COMO PRINCÍPIO JURÍDICO E VETOR AXIOLÓGICO DA INTERVENÇÃO DO ESTADO NA ORDEM ECONÔMICA, E SUA PROMOÇÃO VIA AUTARQUIZAÇÃO DAS ESTATAIS
Diante da intenção declarada do presente trabalho no sentido de investigar a possibilidade de a busca pela promoção do direito fundamental ao desenvolvimento servir de substrato legitimador do recente movimento jurisprudencial de autarquização das estatais, se faz necessário apresentar este direito fundamental com um pouco mais de profundidade, pois é um tanto desconhecido pela comunidade jurídica, a qual ainda o vincula a concepções marcadamente liberais.
O professor Robério Nunes dos Anjos Filho se debruçou sobre o assunto e publicou recentemente[12], pela editora Saraiva um livro intitulado Direito ao Desenvolvimento, o qual enfrentou a questão de maneira minuciosa, concluindo que o direito ao desenvolvimento é um direito humano internacionalmente reconhecido, e direito fundamental incorporado à nossa Constituição, consistindo em um direito de amplíssimo espectro, podendo se manifestar de alguma forma nos direitos de todas as gerações (ou dimensões).
A partir do conceito de economia, que será apresentado neste capítulo, é possível perceber a íntima relação que o Direito tem com a Economia. Por exemplo, é sabido que o Custo Brasil é muito alto, os tributos são muito altos, a burocracia para abrir uma empresa é muito grande. Isso é o “Direito que produz”. É um Direito que atrapalha o desenvolvimento.
O Direito também pode trazer ajuda ao desenvolvimento. Passa-se a falar, então do Direito “do” Desenvolvimento, o qual não é um direito humano. Nasce na década de 1960 no bojo das conferências das nações unidas sobre o comércio. Criou-se o Direito Internacional do Desenvolvimento. Os países subdesenvolvidos podem exportar seus produtos com vantagens. Exemplo: Brasil pode vender laranjas para a França pagando alíquota menor do que se tivesse comprado dos EUA. Não é um direito humano, é um direito comercial entre Estados[13].
Já o Direito “ao” desenvolvimento, nascido também no âmbito da ONU, fruto da observação do fenômeno do desenvolvimento por um viés jurídico, o que deu ensejo ao surgimento desse direito humano, que, de acordo com a classificação de Karel Vasak, trata-se de um direito de terceira geração (hoje entende-se que o termo mais apropriado é dimensão). A expressão “Direito ao Desenvolvimento” deve-se ao jurista senegalês Etiene Keba M’Baye, que a utilizou em 1972 na conferência inaugural do Curso de Direitos Humanos do Instituto Internacional de Direitos do Homem de Estrasburgo, publicada com o título de “O direito ao desenvolvimento como um direito do Homem”[14].
A ONU reconheceu oficialmente o direito ao desenvolvimento como um direito humano pela primeira vez em uma resolução da sua Comissão de Direitos Humanos, em 1977. Posteriormente, em 04 de dezembro de 1986, foi aprovada a Declaração das Nações Unidas sobre Direito ao Desenvolvimento (Res. 41/128)[15], a qual teve voto favorável do Brasil. A declaração define o Direito ao desenvolvimento como um direito humano inalienável, em virtude do qual toda pessoa e todos os povos têm o direito de participar, de contribuir e de desfrutar de um desenvolvimento econômico, social, cultural e político no qual todos os direitos humanos e liberdades fundamentais possam ser plenamente realizados[16].
A Resolução estabelece ainda que a pessoa humana é o sujeito central do processo de desenvolvimento e que essa política de desenvolvimento deve assim fazer do ser humano o principal participante e beneficiário do desenvolvimento, e que o direito ao desenvolvimento é um direito humano inalienável e que a igualdade de oportunidade para o desenvolvimento é uma prerrogativa tanto das nações quanto dos indivíduos que compõem as nações. Portanto, resta superada a visão estritamente liberal do direito ao desenvolvimento, passando-se a assimilá-lo com uma visão democrática e democratizante, compatível com o Estado Democrático de Direito que tem por fundamento a dignidade da pessoa humana.
O Direito ao Desenvolvimento ocupa hoje um lugar central no Sistema Internacional de Direitos Humanos, sendo de observância obrigatória para todos os Estados, entendido ainda como integrante do chamado jus cogens, que é o conjunto de normas imperativas de direito internacional, as quais não podem ter sua observância negada sequer pelos Estados vencidos em votações não unânimes[17], vinculando, ainda, Estados não participantes de sua formação, pois já é superada a doutrina voluntarista do Direito Internacional[18].
Flávia Piovesan[19] adverte, ainda, que inclusive no setor privado, no contexto da globalização econômica, faz-se premente a incorporação da agenda de direitos humanos.
A CF de 1988, que surgiu dois anos depois da Declaração das Nações Unidas, já incorporou o desenvolvimento como um direito fundamental. Não há previsão expressa no rol do art. 5º, como existe no dispositivo correspondente da Constituição de Portugal de 1976, entretanto, o art. 5º, § 2º da CF não exclui outros direitos decorrentes de tratados internacionais.
O professor Robério Nunes dos Anjos Filho demonstra que o Direito ao Desenvolvimento está consagrado na CF como direito fundamental. Salienta que, a começar pelo preâmbulo, já se fala no desenvolvimento como valor supremo de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos. O preâmbulo não é norma jurídica, mas é um vetor de interpretação da CF. No art. 3º se encontra o desenvolvimento como um dos objetivos fundamentais da República. É dever do Estado garantir o desenvolvimento nacional[20].
O fato de o preâmbulo da CF tratar do desenvolvimento como um “valor supremo” reforça a ideia central deste trabalho no sentido de que o direito fundamental ao desenvolvimento, além de princípio jurídico, é um grande vetor axiológico do Brasil, sociedade e Estado:
Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL (grifos nossos)
O autor sustenta, ainda, que sendo dever do Estado a garantia do direito fundamental ao desenvolvimento, ele não é apenas um direito coletivo, mas um direito individualmente exigível, ou seja, é um direito que qualquer cidadão tem de exigir. Lembrando-se que não significa exigir o crescimento (aumento da riqueza), mas sim, exigir condições para o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania, sendo o Mandado de Injunção um dos instrumentos.
A ordem econômica tem por finalidade assegurar a todos a dignidade, conforme os ditames da justiça social. O art. 219 fala que a geração de riqueza no Brasil tem por finalidade garantir o desenvolvimento humano. Também o sistema financeiro tem esta finalidade (art. 192). A riqueza serve para melhorar a qualidade de vida de todos, e não apenas de alguns[21].
O pleno desenvolvimento nacional é atingir de forma mais plena possível os objetivos do art. 3º da CF, disso os profissionais e intelectuais do Direito jamais podem esquecer e nem esmorecer, pois se trata de uma norma jurídica, que se revela como verdadeira diretriz conformadora[22], pois sendo a sociedade perfeita um sonho impossível ou muito distante, a persecução destes objetivos é o que nos torna solidários, humanos, menos selvagens.
O desenvolvimento, em suas diversas manifestações, é a única forma de um ser humano ser verdadeiramente livre, com vida digna. O art. 2º, §3 da Resolução 41/128 da ONU estabelece que
Os Estados têm o direito e o dever de formular políticas nacionais adequadas para o desenvolvimento, que visem ao constante aprimoramento do bem-estar de toda a população e de todos os indivíduos, com base em sua participação ativa, livre e significativa, e no desenvolvimento e na distribuição equitativa dos benefícios daí resultantes.
Em suma, diante do exposto, adota-se integralmente o posicionamento do professor Robério Nunes dos Anjos Filho como premissa categórica de onde se deduzirá o tema central do trabalho, tomando-se por verdade que o direito ao desenvolvimento é um direito da pessoa humana reconhecido no plano internacional com status de jus cogens, e que é um direito fundamental reconhecido na Constituição de 1988, e que, além de norma jurídica, é um “valor supremo” da nossa República, interpretação esta que resulta de toda a construção do tema no plano do Direito Internacional, e da posição de destaque que ele encontra no texto da nossa Lei Fundamental, a qual teve o cuidado, inclusive, de deixar expresso em seu preâmbulo.
Diante do comprovado caráter de fundamentalidade que possui o direito ao desenvolvimento, de sua íntima relação com o princípio da dignidade da pessoa humana, de sua manifestação como norma jurídica do plano internacional e do plano interno constitucional, e também, diante de sua manifestação enquanto valor supremo da nossa República, é de se concluir que é uma norma principiológica, que serve como vetor axiológico vinculante para qualquer atuação do Estado, ou seja, tudo que o Poder Público faz, por qualquer de seus órgãos e entidades, deve passar pela prova da compatibilidade com este valor supremo.
A Convenção da ONU de 1986 traz em seu preâmbulo:
Reconhecendo que o desenvolvimento é um processo econômico, social, cultural e político abrangente, que visa ao constante incremento do bem-estar de toda a população e de todos os indivíduos com base em sua participação ativa, livre e significativa no desenvolvimento e na distribuição justa dos benefícios daí resultantes;
Isso somado à norma prevista já em seu art. 1º:
Artigo 1º. §1. O direito ao desenvolvimento é um direito humano inalienável, em virtude do qual toda pessoa e todos os povos estão habilitados a participar do desenvolvimento econômico, social, cultural e político, para ele contribuir e dele desfrutar, no qual todos os direitos humanos e liberdades fundamentais possam ser plenamente realizados.
Somando-se, ainda às disposições do seu art. 2º:
Artigo 2º. §1. A pessoa humana é o sujeito central do desenvolvimento e deveria ser participante ativo e beneficiário do direito ao desenvolvimento. §2. Todos os seres humanos têm responsabilidade pelo desenvolvimento, individual e coletivamente, levando-se em conta a necessidade de pleno respeito aos seus direitos.
E art. 6º:
Artigo 6º. (…) §2. Todos os direitos humanos e liberdades fundamentais são indivisíveis e interdependentes; atenção igual e consideração urgente devem ser dadas à implementação, promoção e proteção dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais. §3. Os Estados devem tomar providências para eliminar os obstáculos ao desenvolvimento resultantes da falha na observância dos direitos civis e políticos, assim como dos direitos econômicos, sociais e culturais.
Diante destes dispositivos selecionados já se pode adiantar que fica evidente que o direito ao desenvolvimento se concretiza com a intervenção do Estado na ordem econômica, pois, conforme será demonstrado em linhas posteriores, o mercado, por si só, não se mostrou capaz de promover o desenvolvimento, considerado como o conjunto de condições indispensáveis à liberdade e à vida digna das pessoas.
Para a melhor compreensão do direito fundamental ao desenvolvimento e de sua função legitimadora da intervenção do Estado na ordem econômica, inclusive por intermédio do Poder Judiciário, faz-se necessário dar um passo atrás para compreender aspectos básicos sobre estes institutos, o que se passa a fazer no próximo subcapítulo.
2.1. Conceitos e noções propedêuticas para a melhor compreensão do direito fundamental ao desenvolvimento como princípio da ordem econômica
O presente trabalho revela uma certa interdisciplinaridade, especialmente entre o Direito e a Economia. Isso tende a trazer um plus de complexidade para a compreensão do tema, o que ora pretende-se minorar com a apresentação dos conceitos e noções básicas que são de assimilação necessária por aqueles que não possuem afinidade entre estas ciências.
A apresentação destes conceitos e noções neste capítulo tem por finalidade demonstrar o seguinte enunciado básico[23]: “o direito ao desenvolvimento, como norma que se espalha por todo o ordenamento jurídico, é também princípio da ordem econômica”.
Para conduzir a esta compreensão, é importante mencionar que, com base em Sartre, Eros Roberto Grau[24] diferencia conceito de noção. Para ele, “conceito” é algo atemporal. Pode-se estudar como os conceitos se engendram uns aos outros no interior de categorias determinadas. Nem o tempo e nem a história podem ser objetos de um conceito.
Já “noção”, para o mesmo autor, é a ideia que se desenvolve a si mesma por contradições e superações sucessivas e que é, pois, homogênea ao desenvolvimento das coisas. A doutrina jurídica quando se refere a um “conceito jurídico indeterminado” quer, na verdade, se referir a uma noção.
Os conceitos e noções que aqui serão apresentados podem ser entendidos como “paradigmas” que, salvo leves digressões úteis à sua compreensão, não terão a pretensão de investigar os “primeiros princípios”, tarefa esta que se deixa para os livros especializados em cada matéria pertinente, sob pena de tornar muito extenso e desvirtuar o objetivo deste trabalho[25].
Assim, sem pretender desenvolver com muita densidade os conceitos e noções que serão abordados neste capítulo, apresentam-se a seguir alguns tópicos selecionados[26], com intuito de que eles induzam a uma compreensão mais abrangente do problema proposto. Logicamente tais tópicos não são de leitura necessária para aqueles já versados nas noções introdutórias de Direito e de Economia.
2.1.1. Noções sobre direitos fundamentais
Para tomar como premissa o direito ao desenvolvimento como um direito fundamental, é preciso primeiramente saber o que é um direito fundamental, para que se possa entender em que sentido e em que contexto se faz esta afirmação.
Falar sobre direitos fundamentais, entretanto, é tarefa impossível sem noções propedêuticas, portanto, primeiramente é importante esclarecer, especialmente para a comunidade não vinculada especificamente às ciências jurídicas, que “direito” é uma palavra plurissignificativa, Montoro[27], sem pretender exaurir, apresenta cinco significações possíveis:
a) norma: significa a norma, a lei, a regra social obrigatória. Exemplo: “o ‘direito’ não permite o duelo;
b) faculdade: “direito” significa a faculdade, o poder, a prerrogativa que o Estado tem de criar leis. Exemplo: “o Estado tem o ‘direito’ de legislar”;
c) justo: “direito” significa o que é devido por justiça. Exemplo: “a educação é ‘direito’ da criança”;
d) ciência: significa a ciência do direito. Exemplo: “cabe ao ‘direito’ estudar a criminalidade”. Como tal, convencionou-se escrevê-lo com letra maiúscula “Direito”, bem como, as suas subespécies: “Direito Constitucional”, “Direito Administrativo”, “Direito Econômico”, “Direito Civil”, “Direito Penal” etc.;
e) fato social: o “direito” é considerado como fenômeno da vida coletiva, ao lado dos fatos econômicos, artísticos, culturais, esportivos, etc. Exemplo: “o ‘direito’ constitui um setor da vida social”.
Nader[28], após demonstrar minuciosamente a celeuma em torno do tema, se abstém de apresentar um conceito definitivo, limitando-se a mencionar os mais variados conceitos conforme diversos pontos de vista, o que serve para concluir que o Direito não possui um conceito que possa ser dado como absoluto, existindo sobre ele apenas as mais variadas noções, levando em conta diversos enfoques. Destes, o enfoque normativo é o que interessa para este trabalho.
Sob o enfoque normativo, Direito é “a ordenação heterônoma, coercível e bilateral atributiva das relações de convivência, segundo uma integração normativa de fatos segundo valores”[29].
Importante trazer à tona o ensinamento de Norberto Bobbio, no livro “Da estrutura à função: novos estudos de teoria do direito”[30] o qual traz uma nova ideia orientadora do estudo do Direito, no sentido não de buscar saber o que é o Direito, mas para que ele serve, pois adiante será visto que, se a chamada “autarquização das estatais” servir para alguma coisa, especialmente para promover algum direito fundamental, ela passa a ser defensável.
Sobre “direitos fundamentais”, da mesma forma, seria possível a criação das mais variadas teorias, sob diversos pontos de vista, como teorias históricas, filosóficas ou sociológicas[31]. Diante dessa dificuldade, a noção de direitos fundamentais, aqui apresentada, se limitará ao seu enfoque normativo.
Ingo Wolfgang Sarlet[32] ensina, com base em Canotilho, que o que torna um direito fundamental é a circunstância de que esta fundamentalidade é simultaneamente formal e material. A “fundamentalidade formal” diz respeito a posição constitucional do direito em questão: a) como parte da Constituição escrita, os direitos fundamentais se encontram no ápice do ordenamento, ou seja, com supremacia hierárquica; b) formas rígidas para a mutabilidade ou, até mesmo, imutabilidade (cláusulas pétreas); c) possuem eficácia e aplicabilidade direta e imediata, vinculando tanto as entidades públicas quanto as relações privadas.
A “fundamentalidade material”, para o autor, diz respeito ao conteúdo desses direitos, ou seja, para ser fundamental o direito precisa tratar das decisões fundamentais sobre a estrutura do Estado e da sociedade, e, especialmente, aqueles que se ligam a questões existenciais da pessoa humana. A noção de fundamentalidade material torna a noção de fundamentalidade meramente formal insuficiente, pois traz à tona o fato de que podem existir direitos fundamentais não necessariamente expressos no texto da Constituição.
Partindo-se desta premissa, quando este trabalho afirmar que o direito ao desenvolvimento é um direito fundamental, está-se falando em sentido normativo, com força jurídica formal e materialmente constitucional, inclusive invocável perante o Poder Judiciário.
2.1.2. Noções sobre desenvolvimento
Com base em Norbert Rouland, Robério Nunes dos Anjos Filho[33] afirma que a palavra “desenvolvimento” teve origem entre os séculos XII e XIII, quando significava revelar, expor, sendo que somente por volta de 1850 a palavra passou a significar “… a progressão de estágios mais simples, para outros mais complexos, superiores…”.
O mesmo autor explica que é muito difícil encontrar uma definição unívoca da palavra, pois a depender do prisma em que é analisada, pode vir acompanhada de adjetivos que a tornam muito específica, v.g., desenvolvimento: social, político, humano, econômico, ambiental, infantil, nacional, regional, equilibrado, sustentável, dentre outros. Aponta, ainda, a variação de concepções de acordo com a “… heterogeneidade cultural das mais diversas nações e Estados…” e a constante ampliação de seu conteúdo, o qual acompanha a evolução histórico-social (caráter dinâmico), como fatores que tornam a palavra “plurívoca”.
A noção de desenvolvimento – aqui já se fala em desenvolvimento econômico – foi desenvolvida pelos economistas clássicos associada à ideia de poder econômico. Eis um excerto do livro Uma Investigação Sobre a Natureza e as Causas da Riqueza das Nações[34] que bem exemplifica este momento histórico:
Em meio a todas as exceções feitas pelo governo, esse capital foi sendo silenciosa e gradualmente acumulado pela frugalidade e pela boa administração de indivíduos particulares, por seu esforço geral, contínuo e ininterrupto no sentido de melhorar sua própria condição. Foi esse esforço, protegido pela lei e permitido pela liberdade de agir por si próprio da maneira mais vantajosa, que deu sustentação ao avanço da Inglaterra em direção à grande riqueza e ao desenvolvimento em quase todas as épocas anteriores, e que, como é de esperar, acontecerá em tempos futuros.
Esta noção associa o desenvolvimento ao crescimento, ou seja, desenvolver-se significaria simplesmente elevar o Produto Interno Bruto (PIB) de um Estado. Esta noção está há muito ultrapassada, pois a ideia de desenvolvimento está atrelada a uma gama extremamente variada de fatores que deixam de compreender o desenvolvimento como um dado meramente quantitativo e passam a qualificá-lo sob aspectos qualitativos, ligados à qualidade de vida das pessoas[35].
Amartya Kumar Sen[36] é o precursor da ideia e foi prêmio Nobel de economia em 1988. Desenvolvimento é um processo de expansão das liberdades reais dos indivíduos e da sociedade. Para que as pessoas sejam plenamente livres é preciso que tenham acesso aos bens. A riqueza é um instrumento que pode ser usada para o bem e para o mal[37].
Isso remete à filosofia de Kant, na diferenciação entre pessoas e coisas: a) pessoas: a pessoa é um fim em si mesmo, tem dignidade, autonomia, é insubstituível; b) coisas: são instrumentos para realizar a dignidade, possuem preço econômico ou afetivo. Dizer que o crescimento é importante e o desenvolvimento não, equivaleria a dizer que as coisas são mais importantes que as pessoas[38].
Por isso, a medida do desenvolvimento deixa de se basear exclusivamente no PIB e passa a se basear no IDH – Índice de Desenvolvimento Humano. A explicação extraída do site do PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – bem explica esta transição:
O conceito de desenvolvimento humano nasceu definido como um processo de ampliação das escolhas das pessoas para que elas tenham capacidades e oportunidades para serem aquilo que desejam ser.
Diferentemente da perspectiva do crescimento econômico, que vê o bem-estar de uma sociedade apenas pelos recursos ou pela renda que ela pode gerar, a abordagem de desenvolvimento humano procura olhar diretamente para as pessoas, suas oportunidades e capacidades. A renda é importante, mas como um dos meios do desenvolvimento e não como seu fim. É uma mudança de perspectiva: com o desenvolvimento humano, o foco é transferido do crescimento econômico, ou da renda, para o ser humano.
O conceito de Desenvolvimento Humano também parte do pressuposto de que para aferir o avanço na qualidade de vida de uma população é preciso ir além do viés puramente econômico e considerar outras características sociais, culturais e políticas que influenciam a qualidade da vida humana. Esse conceito é a base do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e do Relatório de Desenvolvimento Humano (RDH), publicados anualmente pelo PNUD[39].
Dentre as diversas manifestações possíveis do desenvolvimento, como forma de desde já ressaltar a fundamentalidade do tema, destacam-se o desenvolvimento econômico, social, cultural e político dos povos.
Admita-se, ainda, com especial destaque o exemplo de espécie de direito ao desenvolvimento denominado “desenvolvimento sustentável”, que nada mais é do que a manifestação do direito ao desenvolvimento no direito ambiental, pois “… o crescimento econômico, calcado na mutilação do mundo natural e na imprevisão das suas funestas consequências…” pode acabar por tornar inócuas todas as demais concepções de desenvolvimento, pois sem ambiente sadio, não haveria lugar para nenhum outro bem da vida, por ser ele condição indispensável não somente a uma vida digna, mas para a própria “vida na terra” em todas as suas formas[40].
2.1.3. Noção sobre a existência de um vetor axiológico subjacente a uma norma jurídica
Toda norma jurídica tem por base um valor, valor este que enquanto tal, não tem força jurídica, mas se for escolhido pelo Legislador para fazer parte do conjunto de normas que regulam a vida humana em sociedade, não deixa de ser valor, mas assume uma nova roupagem, que é a de norma jurídica[41].
O presente trabalho tem como premissa o fato de o direito fundamental ao desenvolvimento ser tido como um forte “vetor axiológico” para intervenção do Estado na ordem econômica, mas não como um simples valor exortativo, e sim, como valor presente na estrutura de um princípio jurídico. Para tanto, é preciso saber qual a significação que é dada para que a compreensão do trabalho não reste comprometida.
Em matemática, “vetor” é uma grandeza determinada em quantidade, direção e sentido. É habitualmente representado por uma flecha[42]. O significado de vetor é apropriado por este trabalho como forma de identificar o sentido, o objetivo a ser tomado pelo Estado em suas diversas formas de atuação na ordem econômica.
“Axiologia”, por sua vez, é tida como a "teoria dos valores". Já fora entendida como parte importante da filosofia ou mesmo como toda a filosofia pela chamada "filosofia dos valores" e por outras tendências radicais[43]. A palavra “vetor” adjetivada com a palavra “axiológico” quer reforçar a ideia de que o sentido das ações estatais tem como fundamento um valor.
A noção que será aqui apresentada de que o direito fundamental ao desenvolvimento se baseia em um axioma (valor), inclusive internacionalmente reconhecido e cogente para o Brasil[44], reforça o caráter de sua juridicidade, pois, conforme será demonstrado, este direito fundamental está positivado em nosso ordenamento, e mesmo que não estivesse, ele comporia o nosso ordenamento com status constitucional e exigibilidade jurídica como decorrência de uma série de fatores que não convém adentrar agora.
O que se pretende reforçar é a utilidade da noção moderna de desenvolvimento como “valor” a ser perseguido pelo Estado como agente da atividade econômica, valor este positivado constitucionalmente em uma norma principiológica cogente, o que será tratado em seção própria.
2.1.4. Conceito de Economia
Antes de adentrar nos temas seguintes, notadamente na noção de ordem econômica, é importante trazer de maneira sintética o que se entende por Economia, pois este conhecimento é uma premissa lógica para o entendimento daquele.
Etimologicamente, economia vem do grego oikos (οικοσ), que significa casa e de nomos (νόμος), que significa lei, considerando-se “casa” no sentido mais antigo, onde o pater familias era responsável por gerir o consumo e a produção no âmbito de sua propriedade, em que participavam todos os membros da família, escravos e demais dependentes. É importante trazer à tona a etimologia da palavra porque desde já se destaca a afinidade que o Direito tem com a Economia. Além disso é notável que quanto mais escassos os bens e mais aguçados os interesses sobre eles, maior a quantidade de conflitos e maior a necessidade de normas para regrar a situação[45].
Filosoficamente a palavra “Economia” é frequentemente associada à conquista do máximo com o mínimo de esforço. Avenarius e Mach[46] chegam a afirmar que “Os métodos pelos quais se constitui o saber são de natureza econômica.” Segundo Mach, é esse princípio que orienta à elaboração dos conceitos, “… que nascem da situação de desequilíbrio entre o número das reações biologicamente importantes, que é bastante limitado, e a variedade, quase ilimitada, das coisas existentes.” Isso permite enfrentar essa grande variedade de forma econômica, isto é, “… com o mínimo de esforço”.
Importante mencionar que a designação “Economia Política” caiu em desuso como designativo de uma ciência. Ela surgiu quando ainda não tinha sido desenvolvida a ciência econômica tal como é vigente, não havendo, na época, portanto, uma nítida separação entre os fenômenos econômicos e os políticos. Isso apesar de que no livro Política[47], escrito há mais de dois mil anos, já se podia concluir que tarefa da Política seria outra: investigar qual a melhor forma de governo e instituições capazes de garantir a felicidade coletiva
Pode-se dar como exemplo desta fusão entre economia e política o pensamento David Ricardo, no livro Princípios de Economia Política e Tributação[48], donde pode-se colacionar o seguinte excerto que bem exemplifica esta fusão entre economia e política: “Não existe na Economia Política questão melhor estabelecida do que aquela que sustenta que um país rico não pode aumentar sua população à mesma taxa que um país pobre, devido à sua crescente dificuldade na obtenção de alimentos.”.
Marx sempre desdenhou a Economia Política na visão clássica: “Se o capitalista quer vos alimentar com batatas, em vez de carne, ou com aveia, em vez de trigo, deveis acatar a sua vontade como uma lei da economia política e vos submeter a ela”[49]. Marx enxergava no Estado um mero instrumento de repressão da burguesia (o capitalista) contra o proletariado, o qual desapareceria naturalmente com a ascensão do proletariado ao poder[50].
O livro Esboço de uma Crítica da Economia Política[51] focalizou as obras desses economistas como expressão da ideologia burguesa da propriedade privada, da concorrência e do enriquecimento ilimitado. Ao enfatizar o caráter ideológico da Economia Política, negou-lhe significação científica, tendo prevalecido a ideia de economia e política como fenômenos autônomos, embora não estanques.
Pede-se vênia para citar diretamente concepção atual de Economia extraída de um dicionário especializado na matéria, o qual chama atenção pela precisão:
ECONOMIA. Ciência que estuda a atividade produtiva. Focaliza estritamente os problemas referentes ao uso mais eficiente de recursos materiais escassos para a produção de bens; estuda as variações e combinações na alocação dos fatores de produção (terra, capital, trabalho, tecnologia), na distribuição de renda, na oferta e procura e nos preços das mercadorias. Sua preocupação fundamental refere-se aos aspectos mensuráveis da atividade produtiva, recorrendo para isso aos conhecimentos matemáticos, estatísticos e econométricos. De forma geral, esse estudo pode ter por objeto a unidade de produção (empresa), a unidade de consumo (família) ou então a atividade econômica de toda a sociedade. No primeiro caso, os estudos pertencem à microeconomia e, no segundo, à macroeconomia. A palavra “economia”, na Grécia Antiga, servia para indicar a administração da casa, do patrimônio particular, enquanto a administração da polis (cidade-estado) era indicada pela expressão “economia política”. A última expressão caiu em desuso e só voltou a ser empregada, na época do mercantilismo, pelo economista francês Antoine Montchrestien (1615); os economistas clássicos utilizavam-na para caracterizar os estudos sobre a produção social de bens visando à satisfação de necessidades humanas no capitalismo. Foi somente com o surgimento da escola marginalista, na segunda metade do século XIX, que a expressão “economia política” foi abandonada, sendo substituída apenas por “economia”. Desde então, é a denominação dominante nos meios acadêmicos, enquanto o termo “economia política” ficou restrito ao pensamento marxista. Modernamente, de acordo com os objetivos teóricos ou práticos, a economia se divide em várias áreas: economia privada, pura, social, coletiva, livre, nacional, internacional, estatal, mista, agrícola, industrial etc. Ao mesmo tempo, o estudo da economia abrange numerosas escolas que se apóiam em proposições metodológicas comumente conflitantes entre si. Isso porque, ao contrário das ciências exatas, a economia não é desligada da concepção de mundo do investigador, cujos interesses e valores interferem, conscientemente ou não, em seu trabalho científico. Em decorrência disso, a economia não presenta unidade nem mesmo quanto a seu objeto de trabalho, pois este depende da visão que o economista tem do processo produtivo.[52]
Conclui-se, portanto, que Economia é a ciência que estuda o comportamento humano e os fenômenos dele decorrentes, que se estabelecem em sociedade permanentemente confrontada com a escassez[53].
2.1.5. Conceito de intervenção
Neste tópico cumpre apenas mencionar que na concepção de Eros Grau[54], “atuação” é um vocábulo mais lato que “intervenção”. “Intervenção” é a atuação estatal no campo da atividade econômica em sentido estrito. “Atuação” é a atuação do Estado na atividade econômica em sentido amplo.
O vocábulo “intervenção” tem um sentido forte, “como atuação na esfera alheia”, pressupondo-se que a atividade econômica em sentido estrito é do domínio econômico (domínio do mercado), ou seja, não é uma área própria do Estado. Contudo o autor defende que o Estado não é e não deve ser um mero observador do mercado, mas sim, um ator muito ativo e com extensas responsabilidades como promotor do desenvolvimento.
Apenas para esclarecer, Eros Grau trata atuação do Estado como gênero, dos quais são espécies, de um lado, a já mencionada atividade econômica em sentido estrito (o mercado) e, de outro, o serviço público, que não deixa de ser uma atividade de administração de recursos escassos.
2.1.6. Conceito de mercado
Observa-se que quando se fala em Economia, costuma-se aparecer no mesmo contexto a palavra “mercado”. Mas o que ele é? Em sentido geral, o termo significa um grupo de compradores e vendedores cujas negociações afetem os negócios de terceiros, influenciando em preço e demais condições[55].
O mercado é típico dos sistemas de autonomia (capitalista). Nusdeo[56] ensina que o mercado (que significa troca) sempre existiu e existiu, ao menos informalmente, inclusive nos outros sistemas (tradição e autoridade), o que o torna uma instituição natural, que surge naturalmente, conforme as necessidades humanas existentes em qualquer sociedade. O sistema de mercado é que é algo diferente, pois faz do mercado o sistema vigente.
Aqui reside uma grande divergência entre o entendimento de Fábio Nusdeo e Eros Grau[57], pois este entende que o mercado é uma “instituição jurídica” constituída pelo direito positivo, o direito posto pelo Estado Moderno. Antes, porém, deve ser compreendido como uma instituição social, produto da criação histórica da humanidade, e uma instituição política, destinada a regular e manter determinadas estruturas de poder que asseguram a prevalência de certos grupos sobre outros, como princípio de organização social. Segundo o autor o mercado não é uma instituição espontânea, mas uma instituição "operando com fundamento em normas jurídicas que o regulam, o limitam, o conformam..."
O mercado, para o ex-ministro do STF, é, ainda, uma ordem, no sentido de regularidade e previsibilidade de comportamentos, cujo funcionamento pressupõe a obediência, pelos agentes que nele atuam, de determinadas condutas. Essa regularidade se pode assegurar apenas por critérios objetivos, daí porque se exige um sistema de normas jurídicas uniformes e um sistema de decisões políticas integrado em relação a determinado território. "O fato é que (...) a burguesia apropriou-se do Estado e é a seu serviço que este põe o direito, instrumentando a dominação da sociedade civil pelo mercado".
Basicamente é aí (no mercado) que ocorre a chamada “intervenção do Estado na ordem econômica”, a que é comumente citado como fundamento para tanto, o cumprimento do art. 170 da CF, no qual também encontraria seu limite[58].
2.1.7. Noção de ordem econômica
Inicialmente, é de se esclarecer que, conforme ensina Eros Grau[59], a expressão ordem pública é o conjunto de normas imperativas que prevalece sobre o universo das normas dispositivas de direito privado (ordem privada). É nítida expressão da ideologia liberal, a qual considerava que a ordem econômica pertencia exclusivamente à ordem privada, apartada de qualquer ingerência estatal (laissez faire, laissez passer…).
No entanto, o mesmo autor ensina que a ordem econômica, embora consagrada como uma ordem “pública” econômica, na verdade é um conjunto de “normas de intervenção por direção”, o que é diferente de normas de ordem pública no seguinte sentido:
a) Normas de ordem pública: aplicam-se de imediato às situações às quais se voltam, fatos futuros e fatos pendentes. Estão voltadas para a preservação das condições que asseguram e sobre as quais repousa a estrutura orgânica da sociedade. São o núcleo da ordem jurídica liberal. São voltadas ao estabelecimento de um regime de segurança social, mediante a vedação de comportamentos que afetem o status quo, prevalente na organização social, incidem sobre a generalidade dos agentes, setores e atividades econômicas, de modo indistinto. Compreendem uma norma de exceção, de conteúdo proibitivo, negativas, externas ao direito privado. Não superpõe a ordem pública e o Direito Público de um lado, e de outro, a ordem privada e o Direito Privado
b) Normas de intervenção por direção[60]: aplicam-se somente aos fatos futuros. Instrumentam políticas públicas cuja dinamização envolve não meramente a paz social, mas a perseguição de determinados fins, nos mais variados setores da atividade econômica. Conduzem a transformação da ordem jurídica liberal. Preenchem o conteúdo funcional de determinadas situações jurídicas, distinguindo-as de outras. Não expressam noção de exceção, compõe ordenação concorrente com a definida pelo direito privado, respeitando à regulação das obrigações, em geral, e dos contratos, de modo a configurá-los como verdadeiros instrumentos de política econômica, transformados menos em uma livre construção da vontade humana do que em uma contribuição das atividades humanas, coordenadas pelo Estado, à arquitetura geral da economia nacional.
Para Vital Moreira[61], a "ordem econômica" tem três sentidos: a) "modo de ser empírico de uma determinada economia concreta, (...) um conceito de fato e não de um conceito normativo ou de valor (é o conceito do mundo do ser, portanto)"; b) "expressão que designa o conjunto de todas as normas (ou regras de conduta), qualquer que seja a sua natureza (jurídica, religiosa, moral, etc), que respeitam à regulação do comportamento dos sujeitos econômicos"; c)"ordem jurídica da economia".
Abstendo-se de fazer digressões históricas, traz-se a baila o fato de que Constituição de 1988 trouxe em seu Capítulo VII a ordem econômica para dentro de seu texto. Convém aqui destacar que ela não se limitou a institucionalizar o mundo do ser, isto é, consolidar positivamente o que existe no mundo fático, mas foi além, trazendo mandamentos que a caracterizam a como do tipo dirigente[62].
O art. 170 da CF diz: “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios”.
Conforme o ensinamento acima declinado[63], o dispositivo deveria estar tratando de uma parcela da ordem jurídica (ordem econômica), isto é, do mundo do ser, mas na verdade, conforme o autor, deve ser relido o art. 170 de maneira adequada, com caráter normativo, do mundo do dever ser, nos seguintes termos:
As relações econômicas – ou atividade econômica – deverão ser (estar) fundadas na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tendo por fim (fim delas, relações econômicas ou atividade econômica) assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios.
Ressalte-se, “ordem econômica” possui significado polissêmico que pode dar a entender se tratar de uma realidade do mundo do ser, harmônica, autorregulada e auto-ordenada, e que prescindiria de qualquer outra ordenação ou regulação (mundo do ser). Um outro significado de “ordem” é o conjunto ou sistema de normas, neste sentido, ordem econômica é uma parcela da ordem jurídica (mundo do dever ser).
No entendimento de Bernardo Gonçalves Fernandes, a palavra “ordem” utilizada pelo constituinte de 1988 quer designar “uma estrutura organizada, uma seleção de elementos integrantes de um conjunto que se destina a uma finalidade específica”, e conclui dizendo que esta noção de “ordem” visa “um lançar-se ao futuro”, o seja, uma busca por constante melhoria ou progressão, entendimento este que reforça o caráter desenvolvimentista da Constituição[64].
O domínio econômico ou ordem econômica, no sentido adotado por este trabalho, é o campo de atuação próprio dos particulares, tendo como fundamentos a valorização do trabalho humano e a livre-iniciativa. O Estado somente pode interferir no domínio econômico como agente normativo e regulador. A exploração direta de atividade econômica pelo Estado, “ressalvados os casos previstos na Constituição Federal” (Existem apenas dois casos desse tipo “ressalvados” na CF: a) inciso XXIII do art. 21 – atividades nucleares – são atividades econômicas em sentido estrito e não serviços públicos – por isso se fala em “monopólio”; b) art. 177 – monopólio sobre explorações de petróleo), só será possível quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou à relevante interesse coletivo (art. 173). Nessas hipóteses, a atuação estatal na exploração direta de atividade econômica ocorrerá por meio das empresas públicas e sociedades de economia mista[65].
Por fim, cumpre mencionar que as disposições constitucionais sobre a ordem econômica não se limitam ao Título VII da CF, estando elas espalhadas por todo o seu texto, das quais se destaca o art. 3º, cujo conteúdo econômico é indubitável, o qual se configura em um rol de objetivos que vinculam tanto o Estado agente normativo e regulador da atividade econômica, quanto à própria sociedade civil, no qual o mercado se enfatiza, não podendo ele deixar de se vincular a tais responsabilidades, sendo este ideal chamado de “eficiência de mercado”, que importa na busca da maximização dos ganhos, mas também de uma solidariedade, equivalência e distribuição equitativa, justa e segura destes recursos[66].
A Constituição de 1988 é um centro irradiador e marco da reconstrução do direito privado de um Brasil mais social e preocupado com os vulneráveis de nossa sociedade[67]. Isto é, inclusive, uma característica que marca o rompimento com a ordem liberal clássica, a qual é amplamente conhecida como “eficácia horizontal dos direitos fundamentais”[68].
2.1.8. Da intervenção do Estado na ordem econômica
A crença na capacidade coordenadora do mercado com liberdade para os indivíduos e abstenção do Estado, junto com o princípio hedonista (lei da maximização dos resultados com o menor esforço) aliados, ainda, ao utilitarismo (crença de que certas tendências da natureza humana, como a ambição, o desejo de desfrutar dos bens do mundo, a procura por ascensão social, devidamente canalizadas poderiam ser úteis a todos, desde que elaboradas as instituições próprias ao seu adequado equacionamento), como pressupostos psicológico-comportamentais do liberalismo clássico formaram um ingênuo otimismo acerca deste sistema[69].
A tal liberdade na ordem econômica garantida pelo Estado surtiu efeito contrário, mostrando-se como uma verdadeira forma de “… alargar os abismos entre as classes sociais tornando o pobre cada vez mais pobre e o rico cada vez mais abastado…”. Isto gerou, na prática, uma verdadeira escravidão para as classes desfavorecidas. O Estado, diante disso, não poderia ficar inerte, assistindo silente o crescimento alarmante das desigualdades sociais, e a constante prática das empresas de capitalizar as externalidades positivas e socializar as externalidades negativas. Daí surge a ideia de legitimá-lo a intervir, a fim de corrigir estas distorções[70].
O ideário do liberalismo pressupunha uma situação de equilíbrio real e constante, algo abstrato e ilusório, equivalente a conceitos físicos como o vácuo ou a inexistência de atrito, ou seja, algo que serve como simplificação da realidade para a elaboração de modelos científicos, mas sem existência prática[71]. A propósito, Keynes já preconizava:
Argumentarei que os postulados da teoria clássica se aplicam apenas a um caso especial e não ao caso geral, pois a situação que ela supõe acha-se no limite das possíveis situações de equilíbrio. Ademais, as características desse caso especial não são as da sociedade econômica em que realmente vivemos, de modo que os ensinamentos daquela teoria seriam ilusórios e desastrosos se tentássemos aplicar as suas conclusões aos fatos da experiência[72].
Esta atribuição de poder de intervenção ao Estado inaugurou a chamada fase do “dirigismo econômico”, em que o Poder Público age com base em planos estratégicos, sistematicamente, sobre fatos econômicos[73].
Houve quem entendesse que a Constituição de 1988 restringiu as possibilidades de interferência do Estado na ordem econômica[74], mas prevalece o entendimento de que a Constituição é um dinamismo[75], podendo os autorizativos constitucionais de atuação do Estado poderem assumir feição ora mais, ora menos ortodoxos, sem que para isso seja preciso a mudança formal de seu texto. A esta abertura interpretativa se dá o nome de mutação constitucional.
Sobre o tema Inocêncio Mártires Coelho observa:
Consequência dessa abertura para o mutante, toda interpretação é apenas um ‘experimento em marcha’, assim como a ideia de uma interpretação definitiva é uma contradição nos termos, na sempre oportuna lição de Hans-Georg Gadamer. Afinal, se tudo se transforma, ‘se ninguém se banha duas vezes no mesmo rio’ – com [sic] se aprende com Heráclito –, seria uma excrescência que só a vida do direito escapasse ao ‘panta rhei’ da eterna transformação[76].
Foi declinado supra (item 1.5) a posição de Eros Grau no sentido de que a atividade econômica pode ser tida em sentido amplo, como gênero, dos quais são espécies a atividade econômica em sentido estrito e os serviços públicos. Cumpre mencionar a posição de Celso Antônio Bandeira de Mello[77], para o qual, além destas duas espécies há uma terceira, que são as atividades que podem ser prestadas tanto por um (setor público) quanto pelo outro (setor privado).
Eros Grau[78] distingue 4 modalidades formais pelas quais os Estados se fazem presentes no modelo econômico dual: a) por direção: normas que impõem determinada conduta. Ex. quota de importação, tabelamento, filtros antipoluentes, depósitos obrigatórios pelos bancos no BACEN; b) por absorção: é o exercício de determinada atividade econômica diretamente pelo Estado através de monopólio; c) por participação: é o exercício de determinada atividade econômica diretamente pelo Estado, misturando-se com as demais, exercendo poder de influência (obs. neste livro estas também serão chamadas de “por absorção”); d) por indução: o estado não impõe e nem absorve, mas induz determinados comportamentos ou decisões mediante sanções premiais (no dizer de Bobbio) ou “punições”. Ex. eleva impostos para desestimular determinada atividade como a produção de cigarro. Isenção de impostos em determinadas regiões para reduzir as desigualdades.
Ressalte-se que a exploração da atividade econômica é uma prerrogativa dos particulares, diante da adoção do sistema capitalista pela Constituição de 1988. Entretanto, extrai-se do texto constitucional a adoção do princípio da subsidiariedade, o qual autoriza o Estado a intervir no domínio econômico[79].
Esta possibilidade de intervenção encontra limites no texto constitucional, principalmente nas regras e princípios contidos no art. 170 da CF, de modo que se o Estado extrapolar estes limites, poderá ser responsabilizado civil e objetivamente com base no art. 37, § 6º da CF[80].
Já se pode, neste ponto, adiantar que é aí que reside a questão que serve de premissa para a resposta final deste trabalho, ou seja, que o direito fundamental ao desenvolvimento deve servir como mais um princípio jurídico de forte carga axiológica para nortear a intervenção do Estado na ordem econômica, mesmo não expressamente positivado no referido art. 170, e como tal, deve servir como fundamento também no caso em que esta intervenção provenha do Poder Judiciário, sob pena de se traduzir em uma profunda antijuridicidade.
2.2. O direito ao desenvolvimento na Constituição de 1988
A Constituição de 1988, que surgiu dois anos depois da Declaração das Nações Unidas Sobre o Direito ao Desenvolvimento tratou de positivar a Dignidade da pessoa humana como fundamento de nossa nação, já em seu art. 1º e como um dos objetivos centrais da República Federativa do Brasil, no seu art. 3º, a garantia do desenvolvimento nacional[81].
Não é apenas este dispositivo que trata expressamente do direito fundamental ao desenvolvimento, apenas ele está aqui mencionado a título de exemplo. O direito ao desenvolvimento é extremamente amplo, tendo, além das diversas convenções internacionais que visam assegurá-lo[82], muitos dispositivos constitucionais que a ele se referem[83], podendo-se afirmar categoricamente que toda a elaboração da Constituição de 1988 foi influenciada pela noção de Direito ao Desenvolvimento, sob esta concepção democrática.
Diante de tal constatação, se mostra de suma importância o aprofundamento do estudo em torno do direito ao desenvolvimento, tendo em vista que somente é possível afirmar-se conhecedor da Constituição de 1988 aquele que compreender a visão desenvolvimentista que serviu de vetor axiológico para a sua elaboração. Não se trata de um direito em disputa entre visões privatistas ou estatizantes, mas sim, de um direito fundamental que serve ao fortalecimento da democracia e à promoção da igualdade e da dignidade da pessoa humana.
A Constituição indica que o direito ao desenvolvimento, ao lado da dignidade da pessoa humana, é um princípio de forte carga valorativa, e que se manifesta ao menos implicitamente em todos os dispositivos materialmente constitucionais, despontando como se fizesse um corte transversal sobre todos os ramos do Direito, vinculando-os aos seus ditames.
2.3. O direito ao desenvolvimento como princípio da ordem econômica
O já citado art. 170 da CF, menciona a ordem econômica tem por fim assegurar a todos a existência digna, conforme os ditames da justiça social. Está aí o vínculo com o direito ao desenvolvimento, pois conforme já demonstrado, não se pode falar em vida digna sem a plena igualdade de acesso aos bens escassos e à liberdade que disso é decorrente.
Dentre os princípios da ordem econômica destaca-se o caráter desenvolvimentista nos dispositivos que tratam da defesa do consumidor (V); da defesa do meio ambiente (VI); da redução das desigualdades regionais e sociais (VII); e da busca do pleno emprego (VIII).
O art. 173 diz o seguinte:
Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.
Até mesmo este caso de intervenção por absorção (ou participação), conforme a classificação de Eros Grau (op. cit.), não pode olvidar de sempre ter em mente a eterna busca pelo desenvolvimento, pois isto impera sobre todo o ordenamento, e não apenas sobre fragmentos dele. Segundo as palavras dele, “Não se interpreta a Constituição em tiras”.
O art. 174 também é de suma importância:
Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado. § 1º - A lei estabelecerá as diretrizes e bases do planejamento do desenvolvimento nacional equilibrado, o qual incorporará e compatibilizará os planos nacionais e regionais de desenvolvimento.
Nota-se que o § 1º se mostra como um verdadeiro vetor interpretativo do caput. Em outras palavras: sempre que o Estado normatizar, regular, fiscalizar (intervenção por direção) incentivar e planejar (intervenção por indução) a atividade econômica – sendo o planejamento determinante para o setor público e indicativo para o setor privado – não poderá ter por norte critérios arbitrários, políticos, ideológicos ou de compadrio, mas sim, sempre deverá ter em mente o que consta no § 1º que trata do direito ao desenvolvimento.
É inegável a influência do ideal de desenvolvimento desatrelado do mero ideal de crescimento em toda a elaboração do texto constitucional. Diante disso, é de se concluir que, apesar de não estar expressamente previsto no art. 170 o direito ao desenvolvimento como diretriz informadora de toda e qualquer intervenção do Estado na ordem econômica, isso não significa que esta atividade estatal não esteja vinculada a ele.
É importante que esta conclusão seja afirmada com veemência, de maneira clara. Diante de todo o exposto neste trabalho até aqui, resta demonstrado que o direito fundamental ao desenvolvimento, como norma do tipo principiológico que deve servir de mandamento de otimização a ser cumprido na maior medida possível[84], é vetor axiológico da intervenção do Estado na ordem econômica.
E vai-se adiante, pode-se dizer que não é apenas mais um valor a ser perseguido pelo Estado e pela sociedade, mas sim, um dos mais importantes princípios da atual ordem constitucional, pois nele estão inseridas todas as condições indispensáveis para que se possa falar em existência digna, por isso, inegável a presença de uma forte carga axiológica, que deve ser observada em todas as espécies de intervenção do Estado na ordem econômica, sob pena de ilegitimidade, inconstitucionalidade e de inconvencionalidade da medida.
Não há liberdade, não há sustentabilidade, não há vida digna sem que haja desenvolvimento, o que o torna um direito fundamental, não apenas coletivo, mas também exigível individualmente. Trata-se de um direito ao desenvolvimento condizente com o Estado Democrático de Direito, e não como atrelado a uma noção singela de “crescimento”, típica do Estado liberal. Estas são as premissas categóricas das quais se deduz a resposta para a questão proposta por neste capítulo.
O tema do direito ao desenvolvimento tem especial atenção na ordem jurídica internacional. Além disso, conforme foi demonstrado, a Constituição de 1988 foi elaborada com destaque profundo que ao assunto. É de se concluir, portanto que as disposições acerca da intervenção do Estado na ordem econômica não escapam de uma vinculação normativa principiológica com forte carca axiológica com o dever de busca pelo desenvolvimento, cujo próprio preâmbulo constitucional brasileiro o adjetiva como “valor supremo”.
Esta conclusão afasta do poder público qualquer possibilidade de tomada de decisões, que se traduzam em intervenções na ordem econômica, que não sejam decorrentes da diretriz fundamental da busca pelo desenvolvimento. Assim, cumpre ao Estado assegurar o desenvolvimento, como direito fundamental de todos os indivíduos, devendo este ser o fundamento para toda e qualquer intervenção na ordem econômica, afastadas todas as formas de arbitrariedades e subjetivismos.
Nota-se que mesmo se apegando às premissas do eminente Eros Grau, há de se concluir que a autarquização das estatais é flagrantemente uma intervenção na ordem econômica pelo Poder Público, feita pela via do Poder Judiciário, à revelia dos demais poderes da República, portanto, se faz necessário investigar se tal “intromissão” se legitima à luz do direito fundamental ao desenvolvimento, e para isto resta assentada a premissa de que este direito fundamental é extremamente amplo, sendo princípio de observância obrigatória para sempre que o Estado quiser intervir na ordem econômica.
Ressalte-se: o direito fundamental ao desenvolvimento, enfim, é o grande vetor axiológico positivado em um princípio jurídico de fonte interna e internacional, que vincula a intervenção do Estado na ordem econômica, inclusive quando for praticada pelo Poder Judiciário. Deve ser observado que mesmo isto não estando expressamente previsto topograficamente no art. 170 da Constituição, ali está implicitamente quando se fala em “existência digna”.
2.4. Promoção do direito ao desenvolvimento pela via da autarquização das estatais?
Diante da premissa assentada no sentido de que, em que pese discussões doutrinárias, a Constituição permite a criação de empresas estatais para a prestação de serviços públicos, pode-se concluir desde já que o fenômeno jurisprudencial chamado de autarquização das estatais contraria a Constituição.
Entretanto, essa tendência de dar regime jurídico de Direito Público às estatais poderia ser dada como “salva” se servissem à promoção de direitos fundamentais, caso se estivesse diante de um extreme case onde fosse possível a ocorrência da chamada defeasibility, que diz respeito a casos raros em que regras devem ceder diante de princípios[85].
Não há nenhuma argumentação nesta jurisprudência no sentido de que estão praticamente transformando empresas estatais em autarquias de fato para atender algum direito fundamental, portanto, faz-se uma análise com base em um direito fundamental extremamente amplo como o Direito ao Desenvolvimento, para ver se há alguma razão, mesmo de ordem pragmática, que fundamente a autarquização das empresas estatais via Poder Judiciário.
Não é possível afirmar, a priori, que os serviços públicos prestados pelo setor privado ou pelo setor público são mais eficientes por ser submissos a este ou àquele regime. Tal constatação somente se mostra possível em cada setor, e em cada caso concreto, com base em fatos concretamente demonstráveis, e isto não foi demonstrado em nenhum dos julgados do Poder Judiciário brasileiro.
Existem concepções ideológicas que defendem os dois regimes jurídicos como forma mais eficiente de prestação de serviços públicos. Há aqueles que entendem que um serviço é mais eficiente quando prestado sob o regime jurídico de Direito Público, e há aqueles que entendem que o serviço mais eficiente é aquele prestado sob o regime jurídico de Direito Privado.
Despiciendo declinar aqui os fundamentos de uma ou outra concepção, pois este trabalho é jurídico, e sob esta ótica não interessam correntes de pensamento que se valem exclusivamente de teses ideológicas. O Direito, por seu turno, deve investigar os fatos frente ao ordenamento jurídico, e o que se tem de fato, é que nenhuma decisão jurisprudencial decidiu pela autarquização das estatais pelo fato de assim promover o direito ao desenvolvimento, ainda que indiretamente, com base em fatos concretamente demonstráveis.
Portanto, limitando e confundindo, de certa forma, neste caso, o direito ao desenvolvimento, com melhor desempenho e eficiência dos serviços públicos, não há como afirmar abstratamente que a autarquização das estatais promove de alguma forma este direito fundamental. Além disso, para uma decisão judicial ser dada com base neste fundamento, deve haver provas no sentido de que “autarquizando” a estatal, o serviço público será mais eficiente, caso contrário, deve prevalecer a vontade legítima do Legislador e do Administrador.
Além de tudo isso consequências da autarquização das estatais é a impossibilidade de cobrança de impostos destas, uma das principais entidades prestadoras de serviços públicos, o que limita ou impede, em tese, que os entes prejudicados promovam o desenvolvimento de outros serviços públicos, cada um em seu âmbito.
Esta consequência é mais marcante no que se refere às estatais da União, tendo em vista que os Estados perdem altas receitas de ICMS, os municípios perdem altas receitas de IPTU e de ISS etc., as quais acabam ficando integralmente nas mãos da administração indireta da União.
Tirar as receitas destes impostos dos estados e dos municípios e centralizar nas estatais da União promove de alguma forma o direito ao desenvolvimento? Não há nenhum dado empírico que indique que a resposta possa ser dada positivamente, o que induz a se pensar que o STF está anulando decisões políticas sem razão alguma, o que pode ser interpretado como uma espécie de discriminação dos entes prejudicados, e uma predileção pelos entes beneficiados, o que é incompatível com o espírito de igualdade que deve nortear a relação entre os entes da federação, não podendo haver qualquer hierarquia entre eles.
Diante destas constatações, pode-se concluir que mesmo se apegando em um direito fundamental extremamente amplo como o direito fundamental ao desenvolvimento, não é possível concluir que, com a autarquização das estatais, o Judiciário estaria superando regras postas na Constituição para a sua promoção.
Como dito anteriormente, o STF se apega nas premissas de um mundo que seus ministros consideram “ideal” onde autarquias prestam serviços públicos e estatais desempenham atividade econômica, mas tal entendimento não é jurídico, mas sim, ao que parece, meramente estético, pois jurídico é o que prevê a Constituição, e esta diz que podem existir estatais prestadoras de serviços públicos (§ 1º do art. 173), e que estas não podem ter privilégios não extensíveis às empresas privadas (§ 2º do art. 173).
Diante da sensibilidade do tema, o Poder Judiciário não pode tomar decisões levianas, desprezando-se ao mesmo tempo: o texto constitucional; a autonomia administrativa do Poder Executivo; e a vontade política do Poder Legislativo, sem que isto possua, ao menos, a finalidade nobre de promover algum direito fundamental. O que se pode afirmar até aqui, é que o direito fundamental ao desenvolvimento não está sendo promovido pela via dessa autarquização das estatais, não existindo nenhum dado concreto a este respeito, a não ser ranços ideológicos de toda ordem.
Agindo assim, o Poder Judiciário aparece como o mais forte ator de nossa ordem jurídica, capaz de intervir na ordem econômica, à revelia das demais instituições democráticas, podendo para tanto desprezar a vontade do Administrador e do Legislador, violar a constituição, e sem precisar observar o direito ao desenvolvimento como principal fundamento axiológico para a intervenção do Estado na ordem econômica.
Toda esta argumentação traçada até aqui não pretende colocar um ponto final sobre o tema, mas sim, quem sabe, criar uma discussão, no sentido de que se for possível comprovar que a autarquização das estatais promove, de alguma forma o direito fundamental ao desenvolvimento, tal medida se justificaria por este fundamento, e aqui, humildemente abre-se margem ao falseamento de todo o sobredito.