3. A REPERCUSSÃO DA AUTARQUIZAÇÃO DAS ESTATAIS NO PACTO FEDERATIVO
A autarquização das estatais é fenômeno extremamente problemático, uma espécie de reforma administrativa antineoliberalismo promovida “à força” pela via do Poder Judiciário. Existe uma série de problemas acarretados por tal tendência jurisprudencial, mas neste capítulo, quer se dar especial destaque para o aspecto atinente aos impactos fiscais de tal entendimento.
3.1. Delimitação do tema
A expressão “pacto federativo” possui muitas facetas, pois diz respeito a qualquer aspecto que interfira na distribuição nacional de competências, atribuições e prerrogativas inerentes à cada ente político brasileiro, e isso se dá porque como o próprio nome diz, ele é pactuado, ou seja, deve ser fruto de um consenso profundo entre todos os entes da federação.
O Brasil é uma federação singular, tendo em vista que é composta pela União, pelos estados e também pelos municípios, conforme estabelece a Constituição de 1988, logo em seu art. 1º, possuindo cada um destes entes autonomia política e administrativa, ou seja, capacidade de auto-organização, autonormatização, autogoverno e autoadministração.
Entretanto, o aspecto que se quer destacar neste trabalho é o pacto federativo em seu viés tributário, ou seja, é o denominado “federalismo fiscal”, que diz respeito exatamente à distribuição da arrecadação tributária entre os entes da federação, para que cada um deles possa exercer estas autonomias.
O pacto federativo, neste aspecto, é exaustivamente tratado no texto da Constituição, a qual é pródiga no tratamento da matéria, disciplinando tributos que são de competência da União, dos estados, dos municípios e do Distrito Federal, o qual possui cumulativamente a competência dos estados e dos municípios.
Este trabalho não tratará de fazer a demonstração das repartições de competências tributárias e das receitas dos tributos, mas sim, apenas referirá esta noção genérica sobre o federalismo fiscal para que se possa fixar a seguinte premissa fundamental: qualquer mudança no pacto federativo é extremamente complicada, pois impacta na própria autonomia dos entes federativos, o que sempre atrairá ao debate, a regra prevista no art. 60, § 4º, I da Constituição.
3.2. A imunidade recíproca aplicada às estatais prestadoras de serviços públicos e seu impacto no federalismo fiscal
A Constituição faz expressa menção às pessoas políticas, às autarquias e às fundações como beneficiárias da imunidade tributária recíproca prevista no art. 150, VI, “a” da Constituição, c/c o § 2º do mesmo dispositivo. O STF, contudo, avançou no sentido de que o beneplácito deve ser estendido às empresas públicas e às sociedades de economia mista prestadoras de serviço público.
Por último, o STF tem reconhecido a imunidade até mesmo para atividades típicas do regime concorrencial, desde que o lucro auferido seja revertido para a manutenção do serviço público para o qual serve a respectiva estatal, aplicando-se o que tem se denominado “tese do subsídio cruzado”[86], ou seja, a imunidade se estende às atividades econômicas que servem para financiar o serviço público.
Quando da criação das estatais, existe um debate de natureza política no âmbito dos Poderes Executivo e Legislativo de cada ente público. É de se considerar a possibilidade de que no âmbito da União, por exemplo, o debate sobre a modalidade institucional, após muita negociação política, passa pela melhor técnica de repartição de receitas tributárias.
Em que pese a EC 19/98 ter sido introduzida por um governo de ideologia neoliberal, existe previsão constitucional que claramente ampara a possibilidade de criação de estatais prestadoras de serviços públicos, e o § 2º do art. 173 da Constituição é taxativo: “As empresas públicas e as sociedades de economia mista não poderão gozar de privilégios fiscais não extensivos às do setor privado”, não trazendo nenhuma diferença de tratamento.
Diante destes fundamentos jurídicos, há legítima expectativa no sentido de que os entes federativos possuem o direito de cobrar impostos sobre o patrimônio, a renda e os serviços das empresas públicas de outros entes, e este entendimento que vem se consolidando no STF acaba por impactar gravemente a segurança orçamentária de todos os entes da federação, pois acabam perdendo fatia significativa de sua receita tributária.
Esta preocupação foi objeto de manifestação do Ministro Gilmar Mendes no RE 627051 nos seguintes termos:
… só para que a gente analise também do ponto de vista de consequência, inclusive de distribuição de ônus no plano federativo, porque, quando retiramos determinada área de incidência do ICMS, nós estamos afetando de forma forte a tributação dos Estados. Quando tratamos do ISS, municípios, o IPTU igualmente, e não se pensa em nenhum modelo de compensação, quer dizer, enquanto estivermos falando isoladamente dos Correios, talvez tenhamos uma dimensão (…) veja, por exemplo, o caso do IPTU numa área portuária, caso de uma cidade como Rio de Janeiro, ou cidades menores, o porto de Santos, e a repercussão que isto tem em todo o sistema. E, infelizmente, é difícil encontrar meios de compensação.
As estatais são criadas mediante autorização de lei, e esta lei tem como substrato legitimador o fato de ter sido produzida por representantes do povo, e se estes representantes optaram por criar estas entidades na forma de empresas, podem tê-lo feito assim para facilitar a distribuição de receitas de impostos, ou seja, justamente para fugir da imunidade recíproca.
Pode ser que o STF tenha adotado uma concepção contábil, econômica, ideológica ou, até mesmo, de mera estética, ao simplesmente dar tratamento típico de autarquias para as estatais, à revelia do texto constitucional, pois, data venia, não há juridicidade na fundamentação, a qual se deu, inclusive sem considerar os impactos no federalismo fiscal, acabando por centralizar ainda mais as receitas nas mãos da União, no que se refere às estatais federais, vindo por enfraquecer os demais entes.
Ocorre que o STF não é órgão escolhido pelo povo, e não possui legitimidade democrática para subverter as opções políticas tomadas no âmbito dos demais poderes, salvo nos casos de defesa dos direitos fundamentais das minorias, onde a Corte Constitucional possui legitimidade constitucional para agir de forma contramajoritária, fora isso, não pode o STF subverter o pacto federativo entabulado pelos legítimos representantes do povo, em que pese o atual cenário de falta de credibilidade destes.
Não reside nenhuma violação a direitos individuais ou coletivos de ordem civil, política, econômica, social e nem cultural que legitime a atuação do STF no sentido de desprezar a escolha do regime jurídico das entidades da administração indireta, o que faz concluir que a decisão tem como fundamento exclusivamente premissas não jurídicas que não são idôneas para subverter o pacto federativo.
O direito até pode ser construído com base em axiomas não juridicizáveis, mas isto no momento de sua elaboração, em sede legislativa. Ao aplicador, o norte que cabe seguir é pelo caminho a partir do caso concreto, investigando-se e aplicando-se o que de direito existe no ordenamento jurídico, não sendo lícito ao Judiciário de um Estado Democrático de Direito que possui constituição, se basear em ideologias, filosofias, religiões ou simples razões estéticas para fundamentar suas sentenças, podendo tão somente fundamentar suas decisões nas leis, na Constituição e nas normas decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. Para além disso, carece de legitimidade democrática.
A tendência de autarquização das estatais prestadoras de serviços públicos somente se legitimaria se previamente houvesse uma emenda constitucional que deixasse esta situação muito clara, sob pena de criar grave insegurança orçamentária e desequilíbrio financeiro em diversos entes da federação, os quais contam de boa-fé com os recursos dos impostos sobre o patrimônio, a renda e os serviços destas entidades.
Portanto, conclui-se que, data venia, a autarquização das empresas estatais é inconstitucional por violar o pacto federativo, não existindo amparo jurídico para conferir regime jurídico de Direito Público para as empresas estatais, notadamente no tocante aos impostos sobre o patrimônio, a renda e os serviços destas entidades, receitas estas que podem fazer muita falta na hora da aquisição de remédios e merenda escolar para as crianças carentes, falando-se apenas a título de exemplo.
O STF acabou violando as normas constitucionais que se referem à autonomia administrativa, as quais permitem que os entes públicos possam promover a descentralização pela forma mais oportuna e conveniente para o interesse público. E quanto a este expansionismo de privilégios às empresas estatais, acabou promovendo uma espécie de “mutação constitucional inconstitucional”[87], por desprezar, dentre outros, o previsto no art. 173, §§ 1º e 2º da CF.
3.3. A possibilidade de superação do pacto federativo para promover o direito ao desenvolvimento
Diante da abrangência e da fundamentalidade do direito fundamental ao desenvolvimento, faz-se necessária uma breve manifestação acerca da possibilidade de superação (defeasibility) das regras relativas ao pacto federativo, quando tal medida, na prática, se revela como ingrediente de promoção concreta e materialmente demonstrável do direito fundamental ao desenvolvimento.
Quer-se deixar ressalvado o entendimento no sentido de que na hipótese em que seja cabal e concretamente demonstrada a promoção fática do direito fundamental ao desenvolvimento pela via da autarquização das estatais – tal direito, que hoje tem uma abrangência extremamente ampla, abrangendo todas as espécies de avanço de natureza civil, política, econômica, social e cultural –, nesta estrita hipótese, pode-se cogitar na derrotabilidade de regras, mesmo tão sensíveis quanto às atinentes ao pacto federativo.
Assim como a supremacia e a indisponibilidade do interesse público são, nas palavras de Celso Antonio Bandeira de Mello, “pedras de toque” do Direito Administrativo, o direito fundamental ao desenvolvimento, ao lado da dignidade da pessoa humana e do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, se mostra como verdadeira pedra de toque de todos os ramos do Direito brasileiro, assim, se uma atitude passar pela prova da promoção inequívoca do direito ao desenvolvimento, sopesando-se todos os demais fatores, é possível de se cogitar na superação de regras constitucionais e de opções políticas e administrativas legítimas advindas dos demais poderes da República.
Todavia, atitudes judiciais de tal ordem só podem ser tomadas em casos extremos, onde haja prova manifesta de uma profunda transformação social pela via da autarquização das estatais, caso contrário, não existe legitimidade em uma postura que subverte todo o sistema constitucional, a fim de satisfazer concepções de ordem extrajurídica, advindo dos recônditos da consciência dos ministros do STF, o que não é compatível com um Estado que se diz Democrático de Direito[88].