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O Estatuto da Pessoa com Deficiência e o sistema jurídico brasileiro de incapacidade civil

30/07/2015 às 09:35
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Com a nova lei, a pessoa com deficiência não deve ser mais tecnicamente considerada civilmente incapaz.

Profundo será o impacto da Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015Estatuto da Pessoa com Deficiência – a partir da sua entrada em vigor, em janeiro de 2016.

Esta Lei, nos termos do parágrafo único do seu art. 1º, tem como base a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, ratificados pelo Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo nº 186, de 9 de julho de 2008, em conformidade com o procedimento previsto no § 3º do art. 5º da Constituição da República Federativa do Brasil, em vigor para o Brasil, no plano jurídico externo, desde 31 de agosto de 2008, e promulgados pelo Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009, data de início de sua vigência no plano interno.

Em verdade, este importante Estatuto, pela amplitude do alcance de suas normas, traduz uma verdadeira conquista social.

Trata-se, indiscutivelmente, de um sistema normativo inclusivo, que homenageia o princípio da dignidade da pessoa humana em diversos níveis.

A nossa tarefa, neste breve editorial, é fazer um recorte em um específico campo de impacto deste novo diploma: o sistema jurídico brasileiro de incapacidade civil.

E trata-se de um efeito devastador.

Ao utilizar o qualificativo “devastador”, não o fazemos em sentido depreciativo, mas sim, para que o nosso querido leitor possa perceber o imenso alcance da mudança normativa que se descortina: o Estatuto retira a pessoa com deficiência 1 da categoria de incapaz.

Em outras palavras, a partir de sua entrada em vigor 2, a pessoa com deficiência - aquela que tem impedimento de longo prazo, de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, nos termos do art. 2º - não deve ser mais tecnicamente considerada civilmente incapaz, na medida em que os arts. 6º e 84, do mesmo diploma, deixam claro que a deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa:

Art. 6º. A deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa, inclusive 3 para:

I - casar-se e constituir união estável;

II - exercer direitos sexuais e reprodutivos;

III - exercer o direito de decidir sobre o número de filhos e de ter acesso a informações adequadas sobre reprodução e planejamento familiar;

IV - conservar sua fertilidade, sendo vedada a esterilização compulsória;

V - exercer o direito à família e à convivência familiar e comunitária; e

VI - exercer o direito à guarda, à tutela, à curatela e à adoção, como adotante ou adotando, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas.

Art. 84. A pessoa com deficiência tem assegurado o direito ao exercício de sua capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas.

Esse último dispositivo é de clareza meridiana: a pessoa com deficiência é legalmente capaz.

Considerando-se o sistema jurídico tradicional, vigente por décadas, no Brasil, que sempre tratou a incapacidade como um consectário quase inafastável da deficiência, pode parecer complicado, em uma leitura superficial, a compreensão da recente alteração legislativa.

Mas uma reflexão mais detida é esclarecedora.

Em verdade, o que o Estatuto pretendeu foi, homenageando o princípio da dignidade da pessoa humana, fazer com que a pessoa com deficiência deixasse de ser “rotulada" como incapaz, para ser considerada - em uma perspectiva constitucional isonômica - dotada de plena capacidade legal, ainda que haja a necessidade de adoção de institutos assistenciais específicos, como a tomada de decisão apoiada 4 e, extraordinariamente, a curatela, para a prática de atos na vida civil.

De acordo com este novo diploma, a curatela, restrita a atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial (art. 85, caput), passa a ser uma medida extraordinária 5:

Art. 85, § 2º. A curatela constitui medida extraordinária, devendo constar da sentença as razões e motivações de sua definição, preservados os interesses do curatelado.

Temos, portanto, um novo sistema que, vale salientar, fará com que se configure como “imprecisão técnica” considerar-se a pessoa com deficiência incapaz.

Ela é dotada de capacidade legal, ainda que se valha de institutos assistenciais para a condução da sua própria vida.

Em outros pontos, percebemos que esta mudança legislativa operou-se em diversos níveis, inclusive no âmbito do Direito Matrimonial, porque o mesmo diploma estabelece, revogando o art. 1.548, inciso I, do Código Civil, e acrescentando o §2º ao art. 1.550, que a pessoa com deficiência mental ou intelectual, em idade núbil, poderá contrair núpcias, expressando sua vontade diretamente ou por meio do seu responsável ou curador.

Isso só comprova a premissa apresentada no início do texto.

A pessoa com deficiência passa a ser considerada legalmente capaz.

Por consequência, dois artigos matriciais do Código Civil foram reconstruídos.

O art. 3º do Código Civil, que dispõe sobre os absolutamente incapazes, teve todos os seus incisos revogados, mantendo-se, como única hipótese de incapacidade absoluta, a do menor impúbere (menor de 16 anos).

O art. 4º, por sua vez, que cuida da incapacidade relativa, também sofreu modificação. No inciso I, permaneceu a previsão dos menores púberes (entre 16 anos completos e 18 anos incompletos); o inciso II, por sua vez, suprimiu a menção à deficiência mental, referindo, apenas, “os ébrios habituais e os viciados em tóxico”; o inciso III, que albergava “o excepcional sem desenvolvimento mental completo”, passou a tratar, apenas, das pessoas que, “por causa transitória ou permanente, não possam exprimir a sua vontade” 6; por fim, permaneceu a previsão da incapacidade do pródigo.

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Certamente, o impacto do novo diploma se fará sentir em outros ramos do Direito brasileiro, inclusive no âmbito processual. Destacamos, a título ilustrativo, o art. 8º da Lei 9.099 de 1995, que impede o incapaz de postular em Juizado Especial. A partir da entrada em vigor do Estatuto, certamente perderá fundamento a vedação, quando se tratar de demanda proposta por pessoa com deficiência.

Pensamos que a nova Lei veio em boa hora, ao conferir um tratamento mais digno às pessoas com deficiência.

Verdadeira reconstrução valorativa na tradicional tessitura do sistema jurídico brasileiro da incapacidade civil.

Mas o grande desafio é a mudança de mentalidade, na perspectiva de respeito à dimensão existencial do outro.

Mais do que leis, precisamos mudar mentes e corações.


Notas

1 Art. 2º Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.

2 Art. 127. Esta Lei entra em vigor após decorridos 180 (cento e oitenta) dias de sua publicação oficial.

3 Note-se que o emprego da expressão “inclusive" é proposital, para afastar qualquer dúvida acerca da capacidade de pessoa com deficiência, até mesmo para a prática dos atos mencionados nesses incisos.

4 Trata-se de instituto consagrado pelo Estatuto. Sempre que possível, deve ser a primeira opção assistencial, antes de se pretender a sujeição à curatela: “TÍTULO I - Da Tutela, da Curatela e da Tomada de Decisão Apoiada. Art. 116. O Título IV do Livro IV da Parte Especial da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), passa a vigorar acrescido do seguinte Capítulo III: Da Tomada de Decisão Apoiada. Art. 1.783-A. A tomada de decisão apoiada é o processo pelo qual a pessoa com deficiência elege pelo menos 2 (duas) pessoas idôneas, com as quais mantenha vínculos e que gozem de sua confiança, para prestar-lhe apoio na tomada de decisão sobre atos da vida civil, fornecendo-lhes os elementos e informações necessários para que possa exercer sua capacidade.

5 A Lei não diz que a curatela será uma medida “especial”, mas sim, “extraordinária”, o que reforça o seu aspecto acentuadamente excepcional.

6 Não convence tratar essas pessoas, sujeitas a uma causa temporária ou permanente impeditiva da manifestação da vontade (como aquele que esteja em estado de coma) no rol dos relativamente incapazes. Se não podem exprimir vontade alguma, a incapacidade não poderia ser considerada meramente relativa. A impressão que temos é a de que o legislador não soube onde situar a norma. Melhor seria, caso não optasse por inseri-lo no artigo anterior, consagrar-lhe dispositivo legal autônomo.

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Sobre o autor
Pablo Stolze Gagliano

Juiz de Direito. Mestre em Direito Civil pela PUC-SP. Membro da Academia Brasileira de Direito Civil, do Instituto Brasileiro de Direito Contratual e da Academia de Letras Jurídicas da Bahia. Professor da Universidade Federal da Bahia. Co-autor do Manual de Direito Civil e do Novo Curso de Direito Civil (Ed. Saraiva).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GAGLIANO, Pablo Stolze. O Estatuto da Pessoa com Deficiência e o sistema jurídico brasileiro de incapacidade civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4411, 30 jul. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/41381. Acesso em: 21 nov. 2024.

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