1 – SISTEMAS PROCESSUAIS
Na história do Direito se alternam as mais duras opressões com as mais amplas liberdades. Segundo Ernest Beling (1943, p. 21), “é natural que nas épocas em que o Estado viu-se seriamente ameaçado pela criminalidade o Direito Penal tenha estabelecido penas severas e o processo tivesse que ser também inflexível”.
Na época em que surgiram os sistemas processuais inquisitivo e acusatório são reflexos da resposta do processo penal frente às exigências do Direito Penal e do Estado, onde atualmente o law and order é mais uma ilusão de reduzir a ameaça da criminalidade endurecendo o Direito Penal e o processo (LOPES JÚNIOR, 2012, p. 123).
Na lição de James Goldshcmidt:
Los principios de la política procesal de uma nación no son otra cosa que segmentos de su política estatal em general. Se puede decir que la estructura del proceso penal de una nación no es sino el termómetro de los elementos corporativos o autoritários de su Constitución. Partiendo de esta experiencia, la ciencia precesal ha desarrollado um número de principios opuestos constitutivos del proceso. (...) El predominio de uno u otro de estos principios opuestos en el derecho vigente, no es tampoco más que un tránsito del derecho pasado al derecho del futuro (GOLDSHCMIDT, 1936, p. 67).
Conforme o ilustre professor Jacinto Nelson de Miranda Coutinho:
Os diversos ramos do Direito podem ser organizados a partir de uma ideia básica de sistema: conjunto de temas colocados em relação por um princípio unificador, que formam um todo pretensamente orgânico, destinado a uma determinada finalidade. Assim, para a devida compreensão do Direito Processual Penal é fundamental o estudo dos sistemas processuais, quais sejam, inquisitório e acusatório, regidos, respectivamente, pelos referidos princípios inquisitivo e dispositivo (COUTINHO, 2001, p. 28).
Enfatizando a importância da gestão da prova na determinação da diferença entre os sistemas processuais inquisitivo e acusatório, nos ensina Jacinto Nelson de Miranda Coutinho:
Destarte, a diferenciação destes dois sistemas processuais faz-se através de tais princípios unificadores, determinados pelo critério da gestão da prova. Ora, se o processo tem por finalidade, entre outras, a reconstituição de um fato pretérito, o crime, mormente através da instrução probatória, a gestão da prova, na forma pela qual ela é realizada, identifica o princípio unificador (COUTINHO, 2001, p. 28).
Cronologicamente, em linhas gerais, o sistema acusatório predominou até meados do século XII, sendo posteriormente substituído, gradativamente, pelo modelo inquisitório que prevaleceu com plenitude até o final século XVIII (em alguns países, até parte do século XIX), momento em que os movimentos sociais e políticos levaram a uma nova mudança de rumos. A doutrina brasileira, majoritariamente, aponta que o sistema brasileiro contemporâneo é misto (predomina o inquisitório na fase pré-processual e o acusatório, na processual) (LOPES JÚNIOR, 2012, p. 124).
1.1 – Sistema Acusatório
A origem do sistema acusatório remonta ao Direito grego, o qual se desenvolve referendado pela participação direta do povo no exercício da acusação e como julgador. Vigorava o sistema de ação popular para os delitos graves (qualquer pessoa podia acusar) e acusação privada para os delitos menos graves, em harmonia com os princípios do Direito Civil (LOPES JÚNIOR, 2012, p. 124).
Enfatizando o sistema processual romano, Aury Lopes Júnior explica:
No Direito romano da Alta República surgem as duas formas do processo penal: cognitio e accusatio. A cognitio era encomendada aos órgãos do Estado – magistrados. Outorgava os maiores poderes ao magistrado, podendo este esclarecer os fatos na forma que entendesse melhor. Era possível um recurso de anulação (provocatio) ao povo, sempre que o condenado fosse cidadão e varão. Nesse caso, o magistrado deveria apresentar ao povo os elementos necessários para a nova decisão. Na accusatio, a acusação (polo ativo) era assumida, de quando em quando, espontaneamente por um cidadão do povo. Surgiu no último século da República e marcou uma profunda inovação no Direito Processual romano. Tratando-se de delictia publica, a persecução e o exercício da ação penal eram encomendados a um órgão distinto do juiz, não pertencente ao Estado, senão a um representante voluntário da coletividade (accusator). Esse método também proporcionava aos cidadãos com ambições políticas uma oportunidade de aperfeiçoar a arte de declamar em público, podendo exibir para os eleitores sua aptidão para os cargos públicos (LOPES JÚNIOR, 2012, p. 124).
Conforme Luigi Ferrajoli (2006, p. 518), “são características do sistema acusatório a separação rígida entre o juiz e acusação, a paridade entre acusação e defesa, e a publicidade e a oralidade do julgamento”.
No sistema acusatório, a gestão da prova é função das partes, cabendo ao juiz um papel de garante das regras do jogo, salvaguardando direitos e liberdades fundamentais. Diversamente do sistema inquisitorial, o sistema acusatório caracteriza-se por gerar um processo de partes, em que autor e réu constroem através do confronto a solução justa do caso penal. A separação das funções processuais de acusar, defender e julgar entre sujeitos processuais distintos, o reconhecimento dos direitos fundamentais ao acusado, que passa a ser sujeito de direitos e a construção dialética da solução do caso pelas partes, em igualdade de condições, são, assim, as principais características desse modelo (LIMA, 2011, p. 40).
Pelo exposto, observa-se que o sistema acusatório tem como principais características a separação das funções de acusar e julgar, como também a gestão da prova fica a cargo das partes, não cabendo ao juiz gerir a produção probatória, mantendo-se como um terceiro imparcial, buscando desta forma democratizar o processo, colocando-o no horizonte constitucional, em respeito às bases acusatórias sedimentadas pela Carta Magna de 1988.
1.2 – Sistema Inquisitório
O sistema inquisitório remonta à Inquisição, como a própria nomenclatura indica. A Inquisição não tinha relação qualquer com o fenômeno criminoso, não objetivava enfrentar altos índices de criminalidade da época. O seu principal foco era o desvio em relação aos dogmas estabelecidos pela Igreja Católica Apostólica Romana, que alegava estar ameaçada pela proliferação das novas crenças heréticas, no contexto da reforma religiosa do século XVI. A estrutura repressiva inquisitorial apresentava características peculiares, tendo como fundamentação uma série de verdades absolutas que giravam em torno do arcabouço ideológico oferecido pelo dogmatismo religioso da época (KHALED JÚNIOR, 2010, p.295).
Tratava-se de um sistema de envergadura considerável, se analisadas as diversas técnicas para atingir os objetivos pretendidos, previstas estas no Manual dos Inquisidores de Eymerich. Tratava-se de um conhecimento nada ingênuo, mas de um complexo ideológico lógico e interligado, muito bem elaborado a fim de justificar as diversas atrocidades cometidas com a justificativa de estar fazendo a vontade de Deus. Este sistema proposto na Inquisição, serviu de base e referência para grande parte dos modelos autoritários contemporâneos, alguns ainda em vigor nos dias atuais.
O juiz inquisidor atuava como parte, investigava, dirigia, acusava e julgava. Convidava o acusado a declarar a verdade sob pena de coação. Tamanha era a característica persecutória do sistema, que sequer havia constatação de inocência na sentença que eximia o réu, mas um mero reconhecimento de insuficiência de provas para sua condenação (KHALED JÚNIOR, 2010, p. 295).
Explicando de forma pormenorizada a problemática da gestão probatória no seio do sistema inquisitório, aponta Jacinto Nelson de Miranda Coutinho:
A característica fundamental do sistema inquisitório, em verdade, está na gestão da prova, cominada essencialmente ao magistrado que, em geral, no modelo em análise, recolhe-a secretamente, sendo que “a vantagem (aparente) de uma tal estrutura residiria em que o juiz poderia mais fácil e amplamente informar-se sobre a verdade dos fatos – de todos os factos penalmente relevantes, mesmo que não contidos na ‘acusação’ – dado seu domínio único e onipotente do processo em qualquer das suas fases”. O trabalho do juiz, de fato, é delicado. Afastado do contraditório e sendo o senhor da prova, sai em seu encalço guiado essencialmente pela visão que tem (ou faz) do fato (COUTINHO, 2001, p. 24).
Conforme o exposto, o que se nota na estrutura inquisitória, portanto, é uma fusão das funções de acusador e juiz e a consequente confusão entre os que seriam métodos para acusar e métodos para julgar. O juiz, senhor da prova, sai em seu encalço guiado essencialmente pela visão que tem (ou faz) do fato, privilegiando-se o mecanismo “natural” do pensamento da civilização ocidental que é a lógica dedutiva, a qual deixa ao inquisidor a escolha da premissa maior, razão por que pode decidir antes e, depois, buscar, quiçá obsessivamente, a prova necessária para justificar a decisão (COUTINHO, 2008, p. 12).
O juiz, como o senhor da prova, mentaliza o que considera como sendo a linha de busca a ser traçada, ou até mesmo, já decide em sua consciência qual destino deve tomar a persecução judicial, onde para legitimar seu encalço, sai em busca de um arcabouço probatório, que sirva como base para a implementação de suas premissas subjetivas.
Segundo o professor Fábio Presoti Passos:
O modelo inquisitorial, regido pelo princípio inquisitivo, essencialmente consiste em fundir na figura do Estado a atividade persecutória e a atividade judicial, predominando uma excessiva e grandiosa valoração de aspectos subjetivos, pois somente o inquisidor é dotado de capacidade sobre-humana, ficando a gestão da prova a seu cargo. O inquisidor atua como verdadeira parte, pois investiga, instrui, acusa e julga (PASSOS, 2012, p. 30-31).
No sistema inquisitório, há a formação de um quadro mental paranoico, pois como explica Jacinto Nelson de Miranda Coutinho:
Quando se autoriza ao juiz a instauração ex officio do processo, como era típico no sistema inquisitório puro, permite-se a formação do quadro mental paranoico, ou seja, abre-se ao juiz a “possibilidade de decidir antes e, depois, sair em busca do material probatório suficiente para confirmar a ‘sua’ versão, isto é, o sistema legitima a possibilidade da crença no imaginário, ao qual toma como verdadeiro”. Diante disto, parece sintomático que o princípio da inércia da jurisdição é um dos pressupostos para que se tenha um processo penal democrático (COUTINHO, 2001, p. 37).
O quadro mental paranoico consta-se no ato do magistrado em recolher a prova, antecipando desta forma o seu juízo, pois é evidente que o juiz como ser humano irá tender para um dos lados, culpado ou inocente, ao ter contato com o material probatório produzido e encontrado por ele mesmo.
O sistema inquisitório predominou até finais do século XVIII e início do XIX, momento em que a Revolução Francesa, os novos postulados de valorização do homem e os movimentos filosóficos que surgiram com ela repercutiram no processo penal, removendo paulatinamente as notas características do modelo inquisitivo. Coincide com a adoção dos Júris Populares, e se inicia a lenta transição para o sistema misto, que se estende até os dias de hoje.
1.3 – Sistema Misto
A inquisição sucumbiu em suas próprias estruturas, pois era evidente a falha deste sistema altamente autoritário e desumano, sem falar das injustiças cometidas no tramitar de “processos” que de nada tinham como objetivo a busca pela “verdade”, mas sim pela “punição rápida e efetiva”, demonstrando a suprema eficiência do Estado/Igreja na solução de “controvérsias hereges”.
Segundo Jacinto Nelson de Miranda Coutinho (2009, p. 103): “Todos os sistemas processuais penais conhecidos mundo afora são mistos. Isto significa que não há mais sistemas puros, ou seja, na forma como foram concebidos”.
Segundo Salah Hassan Khaled Júnior:
Não basta definir que apenas certas condutas são criminosas, através de processos de criminalização e depois de constatar a ocorrência de tais condutas (criminação) imputá-las arbitrariamente a quem bem entenda o poder estabelecido, desfigurando o aspecto de possível garantia ritualizada através da incriminação (KHALED JÚNIOR, 2010, p. 298).
Com o fracasso do sistema inquisitório e a gradual adoção do modelo acusatório, o Estado mantinha a titularidade absoluta do poder de punir, onde não poderia abandoná-la em mãos de particulares. Desta forma, mostra-se ser imprescindível uma divisão do processo em fases e encomendar as atividades de acusar e julgar a órgãos e pessoas distintas. Neste modelo que surge, o Estado continua detendo o monopólio da acusação, mas esta é realizada através de um órgão distinto do juiz.
Neste momento surge a figura do Ministério Público, onde é evidente o nexo entre este novo órgão e o sistema inquisitivo, pois com a divisão da atividade estatal, há obviamente a exigência de duas partes. O Parquet surge da necessidade do sistema acusatório, garantindo assim a imparcialidade do juiz.
O processo democrático demanda a adoção do processo acusatório que, por sua vez, demanda um processo de partes. E, para a configuração de um processo de partes, é imprescindível a existência de duas partes, aquela que acusa (Ministério Público ou querelante) e aquela que sofre a acusação (SANTIAGO NETO, 2011, p. 147).
Com relação a separação de funções como condicionante para um sistema ser considerado acusatório, critica Aury Lopes Júnior:
Portanto, é reducionismo pensar que basta ter uma acusação (separação inicial das funções) para constituir-se um processo acusatório. É necessário que se mantenha a separação para que a estrutura não se rompa e, portanto, é decorrência lógica e inafastável, que a iniciativa probatória esteja (sempre) nas mãos das partes. Somente isso permite a imparcialidade do juiz (LOPES JÚNIOR, 2012, p. 135).
2. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Atualmente, há uma insistência geral em manter raízes inquisitórias no seio do sistema processual penal brasileiro, incidindo em permanente conflito com a Constituição Federal, que prevê um modelo de processo firmado e direcionado pelo princípio do devido processo legal, sendo este absolutamente incompatível com o modelo inquisitorial, onde o juiz é o senhor do processo e gestor da prova nele a ser utilizada como sucedâneo de sua “justa” decisão. Nesta “inquisição processual”, o juiz decidi antes, e depois sai a procura das provas adequadas para justificar o seu “juízo consciente”, configurando um quadro mental paranoico.
A maioria esmagadora da doutrina considera ser um sistema misto aquele formado por uma fase pré-processual inquisitiva e sem a presença do contraditório, onde há uma maior relativização dos direitos e garantias fundamentais constitucionalmente previstos, e uma fase processual, momento no qual todas estas garantias são previstas com a força que a Constituição exige no seio da persecução penal. Desta forma, a divisão do processo penal em duas fases (pré-processual e processual propriamente dita) possibilita o predomínio, em geral, da forma inquisitiva na fase preparatória e acusatória na fase processual, surgindo assim o caráter misto.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BELING, Ernest. Derecho Procesal Penal. Trad. Miguel Fenech. Barcelona: Labor, 1943.
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O Papel do Novo Juiz no Processo Penal, in crítica à Teoria Geral do Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 24.
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Introdução aos princípios gerais do Direito Processual Penal Brasileiro. Revista de Estudos Criminais. Porto Alegre, ano 1, nº 1, 2001.
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Um Devido Processo Legal (Constitucional) é Incompatível com o Sistema do CPP, de Todo Inquisitorial. Processo Penal e Democracia: Estudos em Homenagem aos 20 anos da Constituição da República de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Sistema acusatório. Cada parte no lugar constitucionalmente demarcado. Revista de Informação Legislativa. Brasília, ano 46, nº 183, Jul./Set. 2009.
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. As reformas parciais do CPP e a gestão da prova: segue o princípio inquisitivo. In Boletim do IBCCRIM. São Paulo. Ano 16. N. 188. Junho/2008, p. 12.
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.
GOLDSCHMIDT, James. Principios Generales del Proceso. Trad. Prieto Castro. Barcelona: Labor, 1936.
KHALED JÚNIOR, Salah Hassan. O Sistema Processual Penal Brasileiro. Acusatório, misto ou inquisitório? v.10, n.2. Porto Alegre: Civitas, 2010.
LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal vol I. Niterói: Impetus, 2011.
LOPES JÚNIOR, Aury. Direito Processual Penal. 9. ed. . rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2012.
PASSOS, Fábio Presoti. A participação do investigado na instrução preliminar como manifestação dos direitos fundamentais. Belo Horizonte: Dissertação de Mestrado – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Direito, 2012.
SANTIAGO NETO, José de Assis. Estado democrático de direito e processo penal acusatório: a participação dos sujeitos no centro do palco processual. Belo Horizonte: Dissertação de Mestrado – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Direito, 2011.