A discussão sobre o crime de porte de arma de fogo desmuniciada

16/09/2015 às 13:49
Leia nesta página:

Uma breve análise sobre a celeuma jurisprudencial e doutrinária que gravita em torno da constitucionalidade do art. 14 da Lei nº 10.826/03, em especial ao porte de arma de fogo desmuniciada.

INTRODUÇÃO

A questão do crime esculpido no art. 14 da Lei 10.826/03 tem fomentado controvérsias tanto na doutrina quanto na jurisprudência, em especial ao porte de arma de fogo desmuniciada.

Há argumentos relevantes em ambos os posicionamentos, seja aqueles que defendem pela constitucionalidade do referido crime, seja àqueles que posicionam-se pela inconstitucionalidade, entretanto, tal questão não está próxima de ser esgotada, ao contrário, tal celeuma tem provocado divergências, inclusive, entre as turmas do Supremo Tribunal Federal, não havendo, ainda, entendimento pacífico na Suprema Corte.

Sendo assim, apresentaremos neste artigo os principais argumentos de ambas as correntes e a qual nos filiamos, sem a pretensão de esgotarmos o assunto.

A DISCUSSÃO DO PORTE DE ARMA DE FOGO DESMUNICIADA

Como alhures aludido, duas correntes se formaram para tentar solucionar a referida celeuma.

Os adeptos da corrente que entendem que o porte de arma de fogo desmuniciada é crime defendem tratar-se de crime de perigo abstrato e, sendo assim, seria dispensável quando da análise do tipo penal a existência de efetiva lesão ou risco concreto de lesão ao bem jurídico.

Parte-se de uma análise predominantemente formalista do direito penal. Para esta corrente, tem-se ignorada uma análise valorativa da norma penal. Nesse sentido, já decidiu a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, através do HC 96.922/RS, cite-se:

“PENAL. PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. PORTE DE ARMA DE FOGO. ART. 10 DA LEI 9.437/97 E ART. 14 DA LEI 10.826/2003. PERÍCIA PARA A COMPROVAÇÃO DO POTENCIAL LESIVO DA ARMA. DESNECESSIDADE. ORDEM DENEGADA. I - Para a configuração do crime de porte de arma de fogo não importa se a arma está ou não municiada ou, ainda, se apresenta regular funcionamento. II - A norma incriminadora prevista no art. 10 da Lei 9.437/97 não fazia qualquer menção à necessidade de se aferir o potencial lesivo da arma. III - O Estatuto do Desarmamento, em seu art. 14, tipificou criminalmente a simples conduta de portar munição, a qual, isoladamente, ou seja, sem a arma, não possui qualquer potencial ofensivo. IV - A objetividade jurídica dos delitos previstos nas duas Leis transcendem a mera proteção da incolumidade pessoal, para alcançar também a tutela da liberdade individual e de todo o corpo social, asseguradas ambas pelo incremento dos níveis de segurança coletiva que ele propicia. V - Despicienda a ausência ou nulidade do laudo pericial da arma para a aferição da material; idade do delito. VI - Ordem denegada”.

Em contrapartida, a segunda corrente defensora da atipicidade do porte de arma de fogo desmuniciada, parte de análise valorativa da norma, com atenção, em especial, à finalidade do direito penal e na real necessidade de proteção do bem jurídico.

Para a existência de crime seria necessário uma efetiva ofensa ou perigo concreto de ofensa ao bem jurídico, ou seja, seria necessário a configuração de tipicidade material, sob pena de ofensa ao princípio da ofensividade.

Neste diapasão, já decidiu a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, através do RHC 99.449/MG, in verbis:

“AÇÃO PENAL. Crime. Arma de fogo. Porte ilegal. Arma desmuniciada, sem disponibilidade imediata de munição. Fato atípico. Falta de ofensividade. Atipicidade reconhecida. Absolvição. HC concedido para esse fim. Inteligência do art. 10 da Lei n° 9.437/97. Voto vencido. Porte ilegal de arma de fogo desmuniciada, sem que o portador tenha disponibilidade imediata de munição, não configura o tipo previsto no art. 10 da Lei n° 9.437/97”.

Para esta corrente, o fato do agente trazer consigo arma de fogo sem munição ou a munição desacompanhada de arma, não existiria ofensa a nenhum bem jurídico, motivo pelo qual não haveria crime em razão da atipicidade material.

Também com base no princípio da lesividade, leciona Rogério Greco que “Atualmente, os crimes de perigo abstrato têm sido combatidos pela doutrina, uma vez que não se verifica, no caso concreto, a potencialidade de dano existente no comportamento do agente, o que seria ofensivo ao princípio da lesividade”[1].

É a corrente que nos parece acertada. Não podemos ignorar a própria finalidade do direito penal, qual seja a proteção de bens jurídicos, de forma a admitir crimes de perigo abstrato. Em um direito penal garantista não se pode ultrapassar a análise do fato típico sem um juízo de valor, vale dizer: sem a concreta aferição de tipicidade material, sob pena de violação aos princípios da ofensividade e lesividade. Ademais, não prospera o argumento de que o objetivo da lei do desarmamento foi a proteção da paz pública, no sentido de coibir coletivamente o livre trânsito de armas, como forma de evitar a facilitação de acesso àqueles que usariam em práticas criminosas. Isso porque, no caso concreto, não existiria qualquer ofensividade ao bem jurídico, mesmo que de forma individual.

Outrossim, o direito penal como ultima ratio e, também, em respeito aos princípios da fragmentariedade e subsidiariedade, não deve intervir em tais questões por envolver uma política de segurança pública em conflito com direitos fundamentais como o patrimônio ou a liberdade, uma vez que tais condutas seriam perfeitamente regulamentáveis por normas administrativas específicas, lembrando que intervenção do direito penal deverá ser sempre mínima quando houver eventuais limitações à direitos e garantias fundamentais. Entendendo pela inconstitucionalidade dos crimes de perigo abstrato, com o costumeiro acerto, preleciona Luiz Flávio Gomes:

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“Em virtude do princípio da ofensividade, de outro lado, está proibido no Direito penal o perigo abstrato. Porte de arma de fogo quebrada ou desmuniciada: para quem não considera o princípio da ofensividade, há crime. Essa concepção, entretanto, segundo nosso ponto de vista, é inconstitucional, pois não se pode restringir direitos fundamentais básicos como a liberdade ou o patrimônio sem que seja para tutelar concretas ofensas a outros direitos fundamentais”.[2]

Portanto, seguindo a moderna concepção de um direito penal garantista, o porte de arma de fogo desmuniciada deverá ser interpretado de forma restritiva e valorativa, excluindo a tipicidade material e, por conseguinte, o próprio crime, uma vez que a análise puramente legalista e formalista da norma penal não se sustenta ante a nossa atual Constituição Federal.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Supremo Tribunal Federal. Penal. Processual penal. Habeas corpus. Porte de arma de fogo. Art. 10 da lei 9.437/97 e art. 14 da lei 10.826/2003. Perícia para a comprovação do potencial lesivo da arma. Desnecessidade. Ordem denegada. HABEAS CORPUS 96922/RS. Primeira Turma. Relator: Min. Ricardo Lewandowski, Brasília, DF, 17/03/2009.

Supremo Tribunal Federal. Crime. Arma de fogo. Porte ilegal. Arma desmuniciada, sem disponibilidade imediata de munição. Fato atípico. Falta de ofensividade. Atipicidade reconhecida. Absolvição. HC concedido para esse fim. Habeas corpus 99449. Relatora: Min. ELLEN GRACIE, Relator para Acórdão:  Min. CEZAR PELUSO. Brasília, DF, 25/08/2009.

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: Parte Especial Vol. II. Niterói: Impetus, 2012.

GOMES, Luiz Flávio. Princípios constitucionais reitores do Direito Penal e da Política criminal. Disponível em: http://www.lfg.com.br. Acesso em: Material da 1ª aula da Disciplina Princípios constitucionais penais e teoria constitucionalista do delito, ministrada no Curso de Pós-Graduação Lato Sensu TeleVirtual em Ciências Penais - Universidade Anhanguera- Uniderp/Rede LFG.


[1] GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: Parte Especial Vol. II. Niterói: Impetus, 2012, pág. 99.

[2] GOMES, Luiz Flávio. Princípios constitucionais reitores do Direito Penal e da Política criminal. Disponível em: http://www.lfg.com.br. Acesso em: Material da 1ª aula da Disciplina  Princípios constitucionais penais e teoria constitucionalista do delito, ministrada no Curso de Pós-Graduação Lato Sensu TeleVirtual em Ciências Penais - Universidade Anhanguera- Uniderp |REDE LFG.

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Sobre o autor
Diego Luiz Victório Pureza

Advogado. Pós-Graduado em Ciências Penais pela Universidade Anhanguera Uniderp LFG. Pós-Graduando em Docência do Ensino Superior pela Universidade Anhanguera Uniderp - LFG. Pós-graduando em 'Corrupção: controle e repressão a desvios de recursos públicos'. Membro da Comissão 'OAB vai à escola' da 36ª Subseção da OAB/SP. Palestrante e Professor de Direito Penal e Direito Processual Penal.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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