Introdução: a unidade do processo e o significado do contraditório
O processo possui uma natural e teleológica unidade. Em tese, ele foi concebido para limitar o poder do Estado diante da investida do autor contra o réu, e vice-versa - do próprio Estado inclusive -, sendo também pensado para reger a necessária interação entre seus sujeitos. Por isso, pode-se dizer que o processo goza de unidade marcada especialmente pelo contraditório, ao menos modernamente.
Já incialmente, por oportuno, é válido consignar que não desconhecemos a crítica existente em relação a uma teoria geral do processo, diante dos supostos prejuízos que essa visão acarretaria ao réu do processo penal na prática forense, em especial pela adoção simplista e rasa de princípios gerais como a instrumentalidade, da celeridade e flexibilidade do processo. Por isso, a presente tese, consciente desse aspecto, visa ao transplante interprocessual exclusivamente qualificado pelo contraditório e voltado à ampla, efetiva e madura defesa, conforme será desenvolvido em seguida.
Pois bem. A Constituição Federal de 1988 consagrou essa ideia após garanti-lo para todo e qualquer tipo de processo (Cf. FERNANDES, Antônio Scarance. Processo penal constitucional. 2. Ed. Revista dos Tribunais: São Paulo, 2000, p. 56), ao impor que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes” (artigo 5º, inciso LV). Porém, essa abordagem é recente.
Destarte, o artigo 150 da Constituição Federal de 1967, quando elencava os direitos e garantias individuais, tinha redação mais específica e menos conglobante: “a instrução criminal será contraditória, observada a lei anterior quanto ao crime e à pena, salvo quando agravar a situação do réu” (§ 16). A preocupação com rigor dialético preponderava, ao menos em tese, no processo penal em detrimento dos demais processos.
Por isso, grande parte dos processualistas civis contentava-se com o chamado “princípio da bilateralidade”, sendo desnecessário o efetivo contraditório. Para essa corrente, bastaria que a parte tivesse ciência da pretensão, a qual poderia simplesmente dispor de sua defesa ou banalizá-la (Cf. PASSOS, Calmon de. Comentários ao Código de Processo Civil. 3. Ed. V. III, p. 324. ALVIM NETTO, Arruda. Código de Processo Civil comentado. V. I. p. 55). Contudo, após a Constituição Federal de 1988, tal concepção foi revisitada, para inserir o contraditório no âmago também do processo civil, o que o tornou mais democrático e garantidor dos direitos das partes e, por consequência, afastou a rasteira concepção da mera relação de dois lados.
Atualmente, essa onda é chamada de “neoprocessualismo”, de natureza científica e política, a qual relaciona o modelo de Estado (democrático de Direito), com seus instrumentos, dentre eles o processo.
Destarte, o “neoprocessualismo” é construído a partir de hermenêutica constitucional, dos próprios valores supremos de cada Estado e sociedade, fazendo com que as Instituições e os institutos sejam obrigatoriamente vinculados à axiologia político-jurídico-social estabelecida.
A graduação do contraditório
Contudo, cada processo tem seus próprios fins e valores preponderantes. Embora ele não esteja vinculado ao direito material, ele mantém relativa funcionalidade (Cf. DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 14ª ed. Malheiros Editores: São Paulo, 2009), sob pena de incorremos em retrocessos já vistos e condenados alhures pela doutrina e pelos tribunais.
Em síntese, o processo, como gênero, possui necessariamente o contraditório, mas em certa gradação, a qual se funda, em especial, nos direitos ou interesses postos em juízo [ou em risco], inevitavelmente.
Nessa linha, o processo penal é aquele que possui – ou deveria possuir - o mais efetivo, intenso e rico contraditório. De fato, para Antônio Scarance Fernandes (Processo penal constitucional. 2. Ed. Revista dos Tribunais: São Paulo, 2000, p. 52), que também admite tal gradação, o contraditório penal, diferentemente dos demais, há de ser pleno (durante todo o desenrolar da causa) e efetivo (que acarreta todos os meios reais de contradição). Para ele, o processo civil se contentaria com algo um pouco mais modesto.
Então, admitida a tese, poderíamos dizer que o contraditório seria graduado nos processos na seguinte ordem crescente (Cf. GRINOVER, Ada Pellegrini. As garantias constitucionais do processo. Forense, São Paulo, 1990): processo administrativo comum; processo civil com matéria disponível; processo civil em tema indisponível; processo civil do consumidor; processo do trabalho; processo civil coletivo; processo administrativo disciplinar, processo penal comum; e processo penal de júri (este, responsável pela plenitude da defesa).
Nessa linha, o processo penal concentraria o contraditório máximo na defesa da liberdade individual.
Enfim, se adotada essa concepção, teríamos um ganho garantista (teórico e prático) enorme ao processo penal, pois ele acumularia toda a carga contraditória dos outros processos, naturalmente. De fato, como o mais assecuratório dos processos, ele trará consigo todo o contraditório processual vigente, de forma cumulativa e razoavelmente lógica.
O contraditório no novo processo civil (Lei nº 13.105/15)
Pois bem. Aceito isso, passamos a apresentar a renovada carga contraditória do processo civil, decorrente do novo Código (Lei nº 13.105/15 - NCPC). Após sua promulgação, temos dito que vige o princípio do permanente e ininterrupto contraditório: com o NCPC, o contraditório não mais se limita a certos atos ou momentos do processo, mas deve existir durante todo ele, especialmente nas ocasiões decisórias.
Assim, “não se proferirá decisão contra uma das partes sem que ela seja previamente ouvida” (artigo 9º), sendo excepcionais e taxativos os casos de não aplicação desta regra. E, “o juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício” (artigo 10 - Sobre esse artigo, por oportuno, consigno a pertinente observação do Defensor Público Daniel Guimarães Zveibil - exposta informalmente - no sentido de que, no processo penal, o juiz quase que não deve decidir matérias “de ofício”, salvo para favorecer – efetivamente - o acusado).
Destarte, o novo Código de Processo Civil apresenta o contraditório como algo essencial à existência da própria relação jurídica. Assim, não apenas a citação terá o papel de integralizar essa relação, mas ainda o constante diálogo entre os sujeitos do processo.
Aliás, a própria intensificação da presença da Defensoria Pública no processo civil (artigos 185 e seguintes, NCPC) demonstra a essencialidade do contraditório e da participação, como forma de democratização dos atos e dos procedimentos.
Mas, os efeitos são muitos desse novo olhar, sendo que algumas inovações legais já estavam consolidadas na jurisprudência, outras não porém. Vejamos:
1) o réu, mesmo revel, poderá produzir as suas provas que, se requeridas, impedirá o julgamento antecipado do mérito (artigos 349 e 355, NCPC).
2) o NCPC, apesar do espírito colaborativo apresentado aos sujeitos do processo, traz expressamente o "direito da parte de não produzir provas contra si própria" (artigo 379).
3) o NCPC intensifica a participação dos assistentes técnicos das partes quando da realização da prova pericial (artigo 466, parágrafo segundo), que serão comunicados previamente das atividades. Além disso, houve o fomento do contraditório quando da apresentação do laudo em juízo (artigo 477, parágrafo primeiro).
4) o juiz poderá considerar os fatos novos da época da sentença, mas jamais poderá decidir sem a prévia manifestação das partes (artigo 493, parágrafo único, NCPC).
5) outra grande inovação é aquela que impõe o contraditório também nos tribunais, mesmo em matérias cognoscíveis de ofício, conforme o novo artigo 933, NCPC.
6) o novo Código prevê expressamente a possibilidade de embargos de declaração com efeitos infringentes, ou seja, que podem alterar o mérito da decisão, mas impõe o necessário contraditório (artigo 1.023, parágrafo segundo, NCPC).
Também merece especial destaque o princípio da fundamentação específica e individualizada, o que inegavelmente contempla o contraditório pois, dentre outros efeitos, exigirá o enfrentamento de cada tese apresentada pelas partes, pela defesa em especial.
Realmente, o ato de julgar pode ser definido como a interpretação e a aplicação da norma jurídica abstrata ao caso concreto, segundo as suas especificidades. Ora, se isso se confirmar, deve o julgador identificar os elementos particulares de cada hipótese em análise, bem como a adequação equânime – e não mera subsunção (legado do positivismo jurídico já superado no Brasil) – desse caso às normas jurídicas incidentes. Por isso, a motivação do julgamento deve, por exemplo, “enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador” (artigo 489, parágrafo primeiro, inciso IV, NCPC).
É dizer, prevaleceu, no NCPC, o dever da intensa e específica motivação. Realmente, se toda decisão é, inevitavelmente, uma escolha do julgador, segundo alguns critérios por ele priorizados, sendo que vários e diferentes aspectos influem nesse processo: jurídicos, sociais, políticos, pessoais etc. Afinal, julgar é ato humano por natureza, pois somente a pessoa é capaz de ponderar seja para o bem, seja para o mal. Ou seja, a pessoa humana julga, com as virtudes ou vissicitudes que esse processo carrega, essencialmente.
Então, o que o NCPC finalmente exige é a revelação, lógica e articulada, dos critérios jurídicos eleitos pelo julgador ao decidir, pois os outros aspectos (sociais, políticos, pessoais etc) já são perdidos no sentido de não serem exigidos, ou por não serem legítimos, ou por serem imunes à valoração jurídica.
Portanto, resta exigível a fundamentação jurídica, sendo que “não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida (I); empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso (II); invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão (III); não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador (IV); se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos (V); deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento (VI)”, conforme artigo 489, parágrafo primeiro.Se não bastasse, “no caso de colisão entre normas, o juiz deve justificar o objeto e os critérios gerais da ponderação efetuada, enunciando as razões que autorizam a interferência na norma afastada e as premissas fáticas que fundamentam a conclusão” (artigo 489, parágrafo segundo, NCPC).
Em suma, o dever de fundamentação, de todas decisões, vale ressaltar, contempla a ideia de contraditório constante e perene que o NCPC pretende implementar, o que também o faz por outros meios e diversificadas vias.
Efeitos dessa nova realidade no processo penal
O processo penal tem sido aperfeiçoado nessa última metade de século, no Brasil especialmente pós-88, seja por impulsos político-legislativos internos, seja por influxos internacionais (Convenção Interamericana dos Direitos Humanos – artigo 8º).
A título de exemplo, vale mencionarmos a regra da suspensão do processo e do prazo prescricional caso o réu revel não compareça, nem constitua defesa técnica, sendo excepcionais as hipóteses de antecipação de provas sem a sua presença (artigo 366, CPP – Lei nº 9.271/96), cuja decisão deverá ser fundamentada (súmula nº 455, STJ); o aperfeiçoamento do ato de interrogatório, que deverá contar necessariamente com assistência jurídica (artigo 185, CPP – Lei nº 10.792/03); a lapidação do direito de permanecer calado (artigo 186, CPP – Lei nº 10.792/03); a necessidade da defesa pública ou dativa ser fundamentada (artigo 261, parágrafo único, CPP – Lei nº 10.792/03); a regra da primazia da prova contraditória (artigo 155, CPP – Lei nº 11.690/08); e o interrogatório no final da instrução (artigo 400, CPP – Lei nº 11.719/08).
Entretanto, o novo Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/15) promoveu um salto em muitos aspectos do contraditório e da participação dos sujeitos, atribuindo-lhes mais poderes de influência efetivos, mais espaços e responsabilidades.
Então, se adotada a linha da graduação aqui exposta, todo esse novo modelo há de ser estendido, no que couber, ao processo penal, desde que em favor da ampla defesa e do direito à liberdade individual, e não para fomentar as investidas acusatórias, as quais já contam com a necessária força e espaço.
De fato, apesar de previsões específicas de motivação das decisões (artigo 315, CPP, por exemplo), entendemos necessária a aplicação do artigo 489, parágrafo primeiro, ao processo penal, especialmente nas decisões que acarretem restrições de direitos individuais.
Quanto à necessária e prévia oitiva das partes antes de qualquer decisão (artigo 9º do NCPC), Paulo Queiroz lembra a influência da nova regra sobre a emendatio libelli (artigo 383, CPP), o que poderá exigir a aplicação das regras já previstas para o instituto da mutitio libelli (artigo 384, CPP).
Também, além das novas regras já citadas acima, defendemos a possibilidade de antecipação de provas pelo acusado para evitar o recebimento da denúncia ou para a absolvição sumária (artigos 396-A e 397, CPP), ou para fins de concessão da liberdade provisória ou revogação da prisão preventiva, na linha do artigo 381 do novo CPC, com ênfase ao inciso III: “a produção antecipada da prova será admitida nos casos em que (...) III – o prévio conhecimento dos fatos possa justificar ou evitar o ajuizamento da ação”.
Ainda se apresenta como novo corolário do contraditório a retirada do juízo de admissibilidade recursal do juízo recorrido (artigo 1010, § 3º, NCPC), o que deverá ser estendido ao processo penal. Da mesma forma, aplicar-se-á a regra do prequestionamento implícito caso apresentados os embargos de declaração, mesmo que inadmitidos ou rejeitados (artigo 1025, NCPC).
Por fim, vale a pena uma relevante advertência: o novo Código de Processo Civil, embora tenha intensificado o contraditório, também se preocupou com a operabilidade do modelo e celeridade do rito e das cognições, aspectos que, via de regra, não devem ser expandidos ao processo penal, sob pena de retrocessos. Por exemplo, o NCPC ampliou as hipóteses de recurso de apelação sem o efeito suspensivo (artigo 1012), tendência que deve afastar-se cada vez mais do processo penal nas hipóteses de sentenças condenatórias ou de absolvição imprópria.
Outro exemplo, na dispensa da prova pericial, quando o NCPC reconhece eventual utilidade na “prova técnica simplificada”, que não tem as formalidades da primeira. Então, “de ofício ou a requerimento das partes, o juiz poderá, em substituição à perícia, determinar a produção de prova técnica simplificada, quando o ponto controvertido for de menor complexidade” (artigo 464, parágrafo segundo). Resta evidente que essa permuta não pode ser admitida em prejuízo da defesa.
Sobre o artigo 493 do novo Código (NCPC), acima citado, o qual impõe ao juiz considerar os fatos novos quando da produção da sentença, o condicionamento ao contraditório não permite a sua extensão ao processo penal , que já conta com instrumentos suficientes de adequação, a emendatio libelli (artigo 383, CPP) – a ser revisitada – e a mutitio libelli (artigo 384, CPP).
Por fim, vale advertir que a ideias de instrumentalidade, celeridade e flexibilidade do processo civil também devem ser mantidas distantes do processo penal que, conforme dito, preza – com absoluta prioridade – pelo intenso, maduro e efetivo contraditório.
Conclusão
Enfim, a tese ora apresentada tem por objetivo – certamente sem esgotar o tema - levar ao processo penal todo o ganho democrático e participativo que o processo civil obteve com a nova lei processual, especialmente por conta do seu máximo e mais profundo contraditório, sem prejuízo das regras de garantia já existentes (presunção de inocência, “in dubio pro reo” etc) e sempre em favor do direito supremo à liberdade, ou seja, sem retrocessos para a defesa.
De fato, trata-se de um transporte cauteloso e qualificado voltado - não apenas “especialmente”, mas “exclusivamente” - para o fortalecimento do contraditório e da ampla defesa, tudo em contemplação ao direito fundamental à liberdade individual.
Referências bibliográficas
DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 14ª ed. Malheiros Editores: São Paulo, 2009.
FERNANDES, Antônio Scarance. Processo penal constitucional. 2. Ed. Revista dos Tribunais: São Paulo, 2000.
GRINOVER, Ada Pellegrini. As garantias constitucionais do processo. Forense, São Paulo, 1990.
_________________________ O processo em sua unidade – II. Ed. Forense: Rio de Janeiro, 1984.
__________________________; DINAMARCO e WATANABE (Coord.) Participação e processo. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1988.
PACELLI, Eugênio. Curso de processo penal. São Paulo: Editora Atlas, 2015.
MOREIRA, José Carlos Barbosa. Temas de direito processual. Segunda série. Artigo: A motivação das decisões judiciais como garantia inerente ao Estado de Direito. São Paulo, Saraiva, 1980.
PASSOS, Calmon de. Comentários ao Código de Processo Civil. 3. Ed. V. III, p. 324. ALVIM NETTO, Arruda. Código de Processo Civil comentado. V. I. p. 55.