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A teoria das nulidades e sua incidência no Direito Civil e no Direito do Trabalho

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Para uma adequada análise dos atos jurídicos, é indispensável o exame, em separado, dos planos da existência, validade e eficácia, consoante já ensinava Pontes de Miranda. O fato de um ato jurídico ser nulo de pleno de direito não significa, necessariamente, que será ineficaz.

1 INTRODUÇÃO

Ainda é comum encontrar, na doutrina e na jurisprudência pátrias, definições de nulidade absoluta e de nulidade relativa que, ao invés de levarem em consideração as causas de tais vícios, lastreiam-se em seus possíveis efeitos.

Pontes de Miranda, porém, já advertia que é preciso analisar separadamente os planos da existência, validade e eficácia dos atos jurídicos, o que acarreta importantes repercussões práticas. Tanto é assim que existem atos nulos de pleno direito eficazes, bem como atos válidos totalmente ineficazes.

O propósito do presente estudo é, justamente, fornecer esclarecimentos a respeito da teoria civilista das nulidades, apreciando-a com base na distinção efetuada por Pontes de Miranda entre os planos de análise dos atos jurídicos. Em seguida, será efetuado um contraponto com o Direito do Trabalho, averiguando-se como tem sido aplicada a teoria das nulidades em tal ramo jurídico. 


2  DIFERENTES PLANOS DOS ATOS JURÍDICOS

O estudo das nulidades e suas consequências impõe prévia reflexão sobre os diferentes planos de análise dos atos ou negócios jurídicos: o da existência, o da validade e o da eficácia.

Segundo assevera Pontes de Miranda, “o problema do ser ou não-ser, no direito como em todos os ramos do conhecimento, é o problema liminar”[1]. O plano da existência, sempre o primeiro a ser examinado, compreende os pressupostos do ato jurídico, seus elementos fáticos constitutivos, os quais atraem a incidência da norma que o prevê[2]. Nesse sentido, por exemplo, são pressupostos de qualquer negócio jurídico o agente emissor de vontade, a manifestação de vontade, o objeto e a forma[3].

A validade, por seu turno, é a qualidade da qual o ato deve se revestir ao ingressar no mundo jurídico, “consistente em estar em conformidade com as regras (opções) do ordenamento”[4]. O ato jurídico inválido é, assim, aquele cujo suporte fático, a despeito de ser bastante para fazê-lo existir, é deficiente, podendo gerar empecilhos à produção dos efeitos que lhe são naturais[5].

O plano de validade é integrado pelos requisitos do ato, os quais qualificam seus elementos de existência. Nessa linha, ilustrativamente, para que um negócio jurídico seja válido, o agente emissor de vontade deve ser capaz e legitimado para celebrá-lo, a manifestação de vontade deve ser livre e de boa-fé, o objeto há de ser lícito, possível e determinado ou determinável, e a forma deve ser a prescrita ou não vedada por lei[6].

Parte dos autores civilistas, entre os quais Flávio Tartuce[7] e Silvio Rodrigues, resistem à aceitação do plano de existência. Sustentam, como principais fundamentos, que o Código Civil não o disciplina e que sua apreciação seria inútil, “porque a noção de nulidade absoluta a substitui vantajosamente”[8].

A ideia de inexistência, todavia, em que pese a autoridade de tais doutrinadores, é imperativo de ordem lógica. É imposta por princípios basilares da razão humana – os da identidade e não contradição –, já formulados pelo pensador pré-socrático Parmênides de Eléia ao proclamar, peremptoriamente, que “nunca à força será mantida a demonstração de que existe o que não é”[9].  Pontes de Miranda, inclusive, é incisivo ao asseverar que:

o conceito de ato jurídico inexistente ou de ato jurídico stricto sensu inexistente é metajurídico; [...] não se pode raciocinar, em qualquer ciência, sem se respeitar o que é lógico, o que é matemático, o que é físico. A categoria do inexistente é ineliminável, porque o mundo jurídico não abrange todo o mundo fáctico, nem se identifica com êle [...] A nulidade supõe sanção. Não existir não é sanção[10].

Com efeito, seria despicienda a regulamentação do plano da existência pelo Código Civil, pelo simples motivo de que, ao definir determinado instituto jurídico, o legislador, automaticamente, sinaliza que este inexistirá quando não estiverem presentes seus elementos estruturantes. 

Além disso, com a devida vênia, não procede o entendimento de que a noção de nulidade absoluta – a ser trabalhada abaixo – substituiria com vantagem a de inexistência, visto que não pode “ser deficiente o que não existe, o que não é”[11]. Nesse sentido, por exemplo, ausente um dos elementos fático-jurídicos do contrato de emprego, ele inexistirá, mas poderá haver outro tipo de avença, como a de trabalho autônomo ou eventual. Por outro lado, presentes todos seus os elementos fático-jurídicos, mas sendo o labor prestado por adolescente de treze anos, existirá o ajuste empregatício, que, todavia, será nulo. Em cada um dos casos, diferentes serão as consequências jurídicas, o que, por si, basta para demonstrar a utilidade prática – e mesmo a imprescindibilidade - do exame do plano da existência.

Finalmente, no plano da eficácia, averígua-se se o ato repercute juridicamente no meio social[12]. Nem todo o ato jurídico válido é plenamente eficaz. Negócios sujeitos a condição suspensiva, ilustrativamente, não produzem efeitos até que esta se implemente, assim como o testamento antes da morte do testador. Há, ademais, hipóteses nas quais mesmo aos atos que padecem de nulidade absoluta são reconhecidos efeitos. Não devem, portanto, ser confundidos os planos da validade e da eficácia.


3 ESPÉCIES DE NULIDADE

São duas as espécies de invalidade ou nulidade lato sensu: nulidade absoluta (nulidade stricto sensu) e nulidade relativa ou anulabilidade. A primeira decorre de violação a preceitos legais de ordem pública, que interessam a toda a coletividade e à própria pacificação social. Já a segunda resulta da ofensa a normas que tutelam interesses particulares[13].

A nulidade absoluta, por transcender os interesses dos sujeitos envolvidos no ato jurídico, pode ser alegada por qualquer interessado, pelo Ministério Público, quando lhe couber intervir, e, até mesmo, declarada de ofício pelo juiz, o qual não pode supri-la, ainda que a pedido das partes (art. 168, caput e parágrafo único, do CC/02). Sua pronúncia judicial tem eficácia erga omnes, e o ato por ela inquinado não é suscetível de ratificação, nem é passível de convalescimento pelo decurso do tempo (art. 169 do CC/02), motivo pelo qual a pretensão para propositura de demanda declaratória de nulidade é imprescritível. Registre-se, porém, que a pretensão de reparação civil das perdas e danos porventura resultantes do ato se sujeita ao prazo prescricional estipulado pelo art. 206, § 3º, V, do CC/02. Outras pretensões condenatórias a ele relativas devem observar o interregno determinado no art. 205 do mesmo diploma[14].

A anulabilidade, diferentemente, por ser instituída em favor da parte potencialmente prejudicada, somente pode ser alegada pelos interessados e aproveita exclusivamente àqueles que a suscitarem, salvo o caso de solidariedade ou indivisibilidade (art. 177 do CC/02). Desse modo, como a anulação do ato não decorre diretamente da própria dicção legal, a sentença que a impõe tem natureza desconstitutiva, e não declaratória[15]. Além disso, o ato anulável pode ser confirmado pelos seus sujeitos, ressalvado o direito de terceiros, e a nulidade relativa convalesce com o transcorrer do tempo, submetendo-se o direito de pleitear a anulação a prazo decadencial (arts. 172, 178 e 179 do CC/02).

Tanto a sentença declaratória de nulidade quanto a anulatória produzem efeitos ex tunc, Segundo o art. 182 do diploma civilista, “anulado o negócio jurídico, restituir-se-ão as partes ao estado em que antes dele se achavam, e, não sendo possível restituí-las, serão indenizadas com o equivalente”. Esse dispositivo, apesar de empregar o termo “anulado”, também se aplica, conforme amplamente reconhecido pela doutrina, aos casos de nulidade absoluta[16]. Houve, com efeito, mera imprecisão terminológica do legislador, que é repetida em outras passagens, a exemplo dos arts. 1.561 e 1.971, nos quais utilizou as expressões “anulatória” e “anulado” para abranger as duas espécies de invalidade.

Cumpre salientar que parte dos doutrinadores civilistas, como Maria Helena Diniz[17], Carlos Roberto Gonçalves[18], Caio Mário[19] e Sílvio Venosa[20], sustentam que a decisão anulatória teria efeitos ex nunc. Fundam-se, todavia, como aponta Flávio Tartuce[21], em exegese equivocada da primeira parte do art. 177 do CC/02 - correspondente ao art. 152 do Código Civil de 1916 -, a qual enuncia que “a anulabilidade não tem efeito antes de julgada por sentença”.

Deveras, a mencionada disposição apenas pretende esclarecer que a anulabilidade, por não depender unicamente da lei, mas também de provocação do interessado, sempre precisa ser decretada mediante sentença, ou seja, é diferida. Até que sobrevenha a decisão, portanto, o ato anulável opera efeitos normalmente. A nulidade absoluta, pelo contrário, é imediata, advém automaticamente do texto legal, embora possa vir a ser judicialmente declarada caso surja litígio a seu respeito, uma vez que as partes não podem impor à força suas próprias razões[22].

A título de exemplo, um oficial cartorário deve, com fulcro no art. 108 do CC/02, negar-se a promover, por intermédio do registro, a transferência de propriedade de bem imóvel com valor superior a trinta salários mínimos cuja doação tenha sido celebrada por meio de instrumento particular. Não está autorizado a adotar idêntica conduta, porém, tão-somente pelo fato de o donatário manter relação adúltera com a outra parte contratual, uma vez que, nesse caso, seria necessária, para frustrar a produção de efeitos pela avença, sua anulação por via judicial, com base no art. 550 do CC/02. Em ambas as situações, contudo, proferida a sentença declaratória de nulidade ou anulatória, as partes serão reconduzidas ao estado anterior à celebração dos negócios viciados, devendo o bem, caso já tenha sido transmitido ao beneficiário, ser restituído.

Para todas as características tipicamente atribuídas às nulidades absoluta e relativa, segundo lecionam Pontes de Miranda[23] e Orlando Gomes[24], pode haver exceções. Ao legislador, afinal, é dado estabelecer disciplina diferenciada para determinados atos ou negócios nulos ou anuláveis, como é próprio do sistema jurídico, orientado pela lógica da imputação[25]. O art. 114 do CPC, ilustrativamente, fixa prazo após o qual o juiz não mais poderá declarar de ofício a nulidade absoluta de cláusula de eleição de foro.       


4 A TEORIA JUSTRABALHISTA DE NULIDADES

A doutrina e jurisprudência majoritárias sustentam que, no bojo do Direito do Trabalho, vigoraria teoria especial a respeito das nulidades. Partem da premissa de que o Direito Civil adota o critério da fulminação, desde a origem, dos efeitos dos atos jurídicos nulos, o qual implica a devolução de prestações porventura recebidas em função da “eficácia aparente” deles[26]. Tal consequência, entretanto, não é compatível com as relações laborais, visto que para o trabalhador é “de todo impossível receber de volta a prestação entregue, que é sua força pessoal de trabalho”[27].

Segundo pontificam Orlando Gomes e Elson Gottschalk:

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O princípio, segundo o qual o que é nulo nenhum efeito produz, não pode ser aplicado ao contrato de trabalho. É impossível aceitá-lo em face da natureza da prestação devida pelo empregado. Consistindo em força trabalho, que implica dispêndio de energia física e intelectual, é, por isso mesmo, insuscetível de restituição. [...]

[...] a retroatividade só teria cabimento se o empregador pudesse devolver ao empregado a energia que este gastou no trabalho. Mas, como isso não é possível, os efeitos da retroatividade seriam unilaterais, isto é beneficiariam exclusivamente ao empregador, como pondera De la Cueva, ao criticar a opinião de Hueck-Nipperdey. Deve-se admitir em toda extensão o princípio segundo o qual trabalho feito é salário ganho. Pouco importa que a prestação de serviço tenha por fundamento uma convenção nula[28].

Seria, portanto, traço peculiar da teoria justrabalhista de nulidades a prevalência do parâmetro da irretroatividade da nulidade declarada, da “regra do efeito ex nunc” de sua pronúncia judicial[29]. Com base nessa diretriz, o contrato nulo produz todos os seus efeitos até o instante da declaração da nulidade, a qual tem o condão de inviabilizar apenas a produção de novas repercussões jurídicas pelo pacto viciado[30].

A mencionada característica da teoria em comento - que, segundo os autores que defendem seu caráter especial, representaria contraponto ao regramento civilista - ampara-se, consoante lição de Mauricio Godinho Delgado, em três fundamentos principais: a impossibilidade de retorno ao status quo ante, a vedação ao enriquecimento ilícito e a valorização conferida pelo ordenamento jurídico ao trabalho humano. Eles são assim descritos pelo doutrinador: 

Em primeiro lugar, a circunstância de que se torna inviável, faticamente, após concretizada a prestação efetiva do trabalho, o reposicionamento pleno das partes à situação anterior ao contrato nulo: o trabalho já foi prestado, e seu valor transferido, com apropriação completa pelo tomador de serviços.

Em segundo lugar, o fato de a transferência e apropriação do trabalho em benefício do tomador criar uma situação econômica consumada de franco desequilíbrio entre as partes, que apenas pode ser corrigida - mesmo que parcialmente - com o reconhecimento dos direitos trabalhistas ao prestador. À medida que a prestação obreira já foi efetivamente quitada com o cumprimento dos serviços, surgiria como imoral enriquecimento sem causa do tomador a negativa de incidência sobre ele dos demais efeitos justrabalhistas da relação socioeconômica desenvolvida. Ou seja, o reconhecimento de direitos trabalhistas ao obreiro prestador de serviços é a contrapartida inevitável da prestação laborativa já consumada.

Em terceiro lugar, a convicção de existir uma prevalência incontestável conferida pela ordem jurídica em seu conjunto (inclusive a Constituição da República) ao valor-trabalho e aos direitos trabalhistas. Ora, tal prevalência induz à construção de um critério de salvaguarda desse valor e dos direitos que lhe são decorrentes quando em confronto com outros valores e normas que a mesma ordem jurídica também elege como relevantes. Esse critério de salvaguarda determina a repercussão de efeitos justrabalhistas ao trabalho efetivamente cumprido (embora negando tais repercussões a partir do instante em que a nulidade é reconhecida)[31].

Ensejam a plena preservação dos efeitos do contrato as situações de trabalho proibido, aquele cuja prestação não é vedada pelo Direito Penal, mas afronta normas jurídicas que proíbem que seja desenvolvida por certas pessoas ou em determinadas circunstâncias[32]. Como exemplos, citam-se o labor prestado por crianças, por adolescentes maiores de dezesseis anos durante o período noturno, ou em condições análogas às de escravo.

O critério da teoria justrabalhista das nulidades, porém, não incide nas hipóteses de trabalho ilícito - cuja prática é ofensiva à legislação penal[33] -, “a menos que o trabalhador tenha agido de boa-fé, ignorando o fim a que se destinava a prestação de trabalho”[34]. Esse tipo de atividade, conforme ensina Mauricio Godinho Delgado, “conspira francamente contra o interesse público, não merecendo, a qualquer fundamento, proteção qualquer da ordem jurídica” [35].

O labor prestado a entes da Administração Pública em inobservância da exigência de prévia aprovação em concurso insere-se entre as hipóteses de trabalho proibido, visto que seu exercício não configura ilícito penal. A nulidade, em tal hipótese, emana de vício de forma, da preterição de uma solenidade imposta pelo art. 37, II, da CF/88, equivalendo à prevista no art. 166, V, do CC/02. Nesse mesmo sentido, esclarece Bernardo Guimarães Carvalho Ribeiro que “o servidor é contratado para prestar atividade lícita e necessária à Administração Pública”, havendo, em verdade, “defeito de natureza formal no provimento do cargo ou do emprego publico, qual seja a ausência de prévia aprovação em concurso público de provas ou de provas e títulos, na forma prevista no art. 37 da CR”[36].

Apesar disso, a doutrina e jurisprudência dominantes na seara trabalhista têm reconhecido àqueles contratados sem o necessário concurso público apenas os direitos inscritos na Súmula 363 do Tribunal Superior do Trabalho, quais sejam: a contraprestação pactuada, em relação ao número de horas trabalhadas, respeitado o valor da hora do salário mínimo, e os valores referentes aos depósitos do FGTS.  Têm aplicado, assim, a teoria justrabalhista das nulidades de forma mitigada.           

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Sobre o autor
Italvar Filipe de Paiva Medina

Procurador do Trabalho. Pós-graduado em Direito do Estado e em Direito e Processo do Trabalho. Graduado em Direito pela Universidade Federal da Bahia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MEDINA, Italvar Filipe Paiva. A teoria das nulidades e sua incidência no Direito Civil e no Direito do Trabalho. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4490, 17 out. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/43270. Acesso em: 2 nov. 2024.

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