A Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, por unanimidade, reafirmou jurisprudência da Corte segundo a qual é inviável a acusação de lavagem de dinheiro tendo como antecedente “crime de organização criminosa” no caso das condutas praticadas antes da edição da lei que tipificou tal “delito”. A Turma destacou que a Convenção de Palermo não pode ser utilizada para suprir a omissão legislativa quanto à definição jurídica de organização criminosa. A decisão do colegiado foi tomada na sessão do último dia 13 no julgamento de agravo regimental no Recurso Ordinário em Habeas Corpus nº. 121835, de relatoria do Ministro Celso de Mello. A Procuradoria Geral da República buscava reformar decisão do relator que determinou a extinção de ação penal por entender atípica a conduta i mputada ao acusado. No Supremo, a defesa questionou acórdão do Superior Tribunal de Justiça que considerou válida a invocação da convenção internacional, na ausência de lei formal, para tipificar o delito de organização criminosa como antecedente da lavagem de dinheiro.
Segundo o relator, à época da conduta denunciada, o delito de organização criminosa ainda não se achava devidamente tipificado: “Constata-se, desse modo, que, analisada a imputação deduzida contra o paciente [acusado], sob a perspectiva da organização criminosa na condição de crime antecedente, mostra-se destituída de tipicidade penal essa conduta precisamente em razão de inexistir, à época dos fatos – entre 98 e 99 –, definição jurídica do delito de organização criminosa”, disse o relator. O Ministro explicou que o “tipo penal” do crime de organização criminosa somente surgiu com o advento da Lei nº. 12.850/2013.
Quanto à alegação de que a ausência de lei formal definidora do delito de organização criminosa seria suprível pela invocação da Convenção Internacional de Palermo, incorporada ao direito positivo brasileiro pelo Decreto Presidencial nº. 5.015/2004, o relator declarou que somente lei interna pode qualificar-se, constitucionalmente, como fonte formal legitimadora da regulação normativa concernente à tipificação de organização criminosa: “Cumpre ter presente, sempre, que, em matéria penal, prevalece o postulado da reserva constitucional de lei em sentido formal, pois – não é demasiado enfatizar – a Constituição da República somente admite a lei interna como única fonte formal e direta de regras de direito penal”, afirmou. O relator citou precedente do Plenário do Supremo (Ação Penal nº. 470), no sentido de que convenção internacional não pode suprir omissão, inexistência ou ausência de lei penal. Os demais ministros da Segunda Turma votaram no mesmo sentido.
Correta a decisão da Suprema Corte, especialmente no que concerne ao afastamento da Convenção de Palermo para efeito de conceituar Organização Criminosa, pois, efetivamente, não é possível, à luz da Constituição Federal, um Texto Internacional introduzir em nosso ordenamento jurídico uma norma penal de natureza incriminadora. Nada mais inconstitucional, especialmente diante do disposto no art. 5º., § 2º., da Constituição.
Como se sabe, a partir da vigência da Lei nº. 12.850/2013, que “define organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal, os meios de obtenção da prova, infrações penais correlatas (crime e contravenção penal) e o procedimento criminal a ser aplicado”, bem ou mal, “considera-se organização criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais .”
Aliás, já em 2012, exatamente em uma sessão no dia 12 de junho, a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Habeas Corpus nº. 96007, decidiu “trancar” um processo no qual os pacientes respondiam pela suposta prática do crime de lavagem de dinheiro por meio de organização criminosa, previsto no inciso VII (hoje revogado) do artigo 1º. da Lei 9.613/98. A denúncia do Ministério Público “revelava a existência de uma suposta organização criminosa, comandada pelos pacientes, que se valeria da estrutura de entidade religiosa e de empresas vinculadas para arrecadar grandes valores em dinheiro, ludibriando os fiéis mediante variadas fraudes, desviando os numerários oferecidos para determinadas finalidades ligadas à igreja em proveito próprio e de terceiros, além de pretensamente lucrar na condução das diversas empresas, desvirtuando as atividades eminentemente assistenciais e aplicando seguidos golpes.” No habeas corpus a defesa alegou “que na própria Lei nº. 9.613/98 diz que para se configurar o crime de lavagem de dinheiro é necessária a existência de um crime anterior, que a denúncia aponta ser o de organização criminosa. Para o advogado, contudo, não existe no sistema jurídico brasileiro o tipo penal organização criminosa, o que levaria à inépcia da denúncia.”
A matéria voltou novamente a julgamento com a apresentação do voto-vista da Ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha que, em novembro de 2009, havia pedido vista dos autos após os votos dos Ministros Marco Aurélio (relator) e Dias Toffoli, favoráveis ao encerramento do processo. Naquela sessão, a Ministra Cármen Lúcia votou da mesma forma, concedendo a ordem e, na sequência do julgamento, os Ministros Luiz Fux e Rosa Weber também se manifestaram nesse sentido.
A Ministra Cármen Lúcia ressaltou “a atipicidade do crime de organização criminosa, tendo em vista que o delito não consta na legislação penal brasileira.” Ela afirmou “que, conforme o relator, se não há o tipo penal antecedente, que se supõe ter provocado o surgimento do que posteriormente seria “lavado”, não se tem como dizer que o acusado praticou o delito previsto no artigo 1º da Lei 9.613/98”.
De acordo com a Ministra, a questão já havia sido debatida pelo Plenário do Supremo, que concluiu no sentido do voto do Ministro Marco Aurélio, ou seja, de que “a definição emprestada de organização criminosa seria acrescentar à norma penal elementos inexistentes, o que seria uma intolerável tentativa de substituir o legislador, que não se expressou nesse sentido”. “Não há como se levar em consideração o que foi denunciado e o que foi aceito”, concluiu. Acertadamente, atentou-se para o princípio da legalidade, absolutamente inafastável em um Estado Democrático de Direito, ainda mais quando se trata de estabelecer uma exata definição acerca de uma estrutura criminosa que permite ao Estado autorizar contra o indivíduo, ainda presumivelmente inocente, atos investigatórios invasivos de sua privacidade.
Evidentemente que não se desconhecia nem se negava, à época, a existência de organizações criminosas, inclusive em nosso País, mas era preciso que, antes de qualquer coisa, houvesse um conceito legal para aquelas estruturas criminosas, tal como faz, por exemplo, o Código Penal, no art. 288, ao conceituar o crime de associação criminosa e a Lei nº. 11.343/06, no art. 35 (Associação para o Tráfico – Lei de Drogas).
Diante da então lacuna legislativa, alguns doutrinadores, Juízes e Tribunais, encontravam esta definição legal em nosso ordenamento jurídico por força do Decreto nº. 5.015/2004, que promulgou a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, onde se lê que se considera “Grupo Criminoso Organizado” aquele “estruturado de três ou mais pessoas, existente há algum tempo e atuando concertadamente com o propósito de cometer uma ou mais infrações graves ou enunciadas na presente Convenção, com a intenção de obter, direta ou indiretamente, um benefício econômico ou outro benefício material.”
Nunca concordamos com tal entendimento, pois entendíamos que uma norma internacional de caráter incriminadora não podia adentrar o nosso ordenamento jurídico. Neste sentido, a exegese dos §§ 2º. e 3º. do art. 5º. da Constituição Federal.
Ademais, como escreveu Luiz Flávio Gomes,
“a definição de crime organizado contida na Convenção de Palermo é muito ampla, genérica, e viola a garantia da taxatividade (ou de certeza), que é uma das garantias emanadas do princípio da legalidade; 2º) a definição dada, caso seja superada a primeira censura acima exposta, vale para nossas relações com o direito internacional, não com o direito interno; de outro lado, é da essência dessa definição a natureza transnacional do delito (logo, delito interno, ainda que organizado, não se encaixa nessa definição). Note-se que a Convenção exige "(...) grupo estruturado de três ou mais pessoas, existente há algum tempo e atuando concertadamente com o propósito de cometer uma ou mais infrações graves ou enunciadas na Convenção, com a intenção de obter, direta ou indiretamente, um benefício econômico ou outro benefício material". Todas as infrações enunciadas na Convenção versam sobre a criminalidade transnacional. Logo, não é qualquer criminalidade organizada que se encaixa nessa definição. Sem a singularidade da transnacionalidade não há que se falar em adequação típica, do ponto de vista formal; 3º) definições dadas pelas convenções ou tratados internacionais jamais valem para reger nossas relações com o Direito penal interno em razão da exigência do princípio da democracia (ou garantia da lex populi). Vejamos: quando se trata das relações do indivíduo com organismos internacionais (com o Tribunal Penal Internacional, v.g.), os tratados e convenções constituem as diretas fontes desse Direito penal, ou seja, eles definem os crimes e as penas. É o que foi feito, por exemplo, no Tratado de Roma (que criou o TPI). Nele acham-se contemplados os crimes internacionais (crimes de guerra, contra a humanidade etc.) e suas respectivas sanções penais. Como se trata de um ius puniendi que pertence ao TPI (organismo supranacional), a única fonte (direta) desse Direito penal só pode mesmo ser um Tratado internacional. Quem produz esse específico Direito penal são os Estados soberanos que subscrevem e ratificam o respectivo tratado. Cuidando-se do Direito penal interno (relações do indivíduo com o ius puniendi do Estado brasileiro) tais tratados e convenções não podem servir de fonte do Direito penal incriminador, ou seja, nenhum documento internacional, em matéria de definição de crimes e penas, pode ser fonte normativa direta válida para o Direito interno brasileiro. O Tratado de Palermo (que definiu o crime organizado transnacional), por exemplo, não possui valor normativo suficiente para delimitar internamente o conceito de organização criminosa (até hoje inexistente no nosso país). Fundamento: o que acaba de ser dito fundamenta-se no seguinte: quem tem poder para celebrar tratados e convenções é o Presidente da República (Poder Executivo) (CF, art. 84, VIII), mas sua vontade (unilateral) não produz nenhum efeito jurídico enquanto o Congresso Nacional não aprovar (referendar) definitivamente o documento internacional (CF, art. 49, I). O Parlamento brasileiro, de qualquer modo, não pode alterar o conteúdo daquilo que foi subscrito pelo Presidente da República (em outras palavras: não pode alterar o conteúdo do Tratado ou da Convenção). O que resulta aprovado, por decreto legislativo, não é fruto ou expressão das discussões parlamentares, que não contam com poderes para alterar o conteúdo do que foi celebrado pelo Presidente da República. Uma vez referendado o Tratado, cabe ao Presidente do Senado Federal a promulgação do texto (CF, art. 57, § 5º), que será publicado no Diário Oficial. Mas isso não significa que o Tratado já possua valor interno. Depois de aprovado ele deve ser ratificado (pelo Executivo). Essa ratificação se dá pelo Chefe do Poder Executivo que expede um decreto de execução (interna), que é publicado no Diário Oficial. É só a partir dessa publicação que o texto ganha força jurídica interna Conclusão: os tratados e convenções configuram fontes diretas (imediatas) do Direito internacional penal (relações do indivíduo com o ius puniendi internacional, que pertence a organismos internacionais - TPI, v.g.), mas jamais podem servir de base normativa para o Direito penal interno (que cuida das relações do indivíduo com o ius puniendi do Estado brasileiro), porque o parlamento brasileiro, neste caso, só tem o poder de referendar (não o de criar a norma). A dimensão democrática do princípio da legalidade em matéria penal incriminatória exige que o parlamento brasileiro discuta e crie a norma. Isso não é a mesma coisa que referendar. Referendar não é criar ex novo.” (Disponível: http://lfg.jusbrasil.com.br/noticias/1060739/definicao-de-crime-organizado-e-a-convencao-de-palermo, acessado em 14 de outubro de 2015).
Por fim, advirta-se, com José Antonio Choclán Montalvo, que o conceito de criminalidade organizada possui “contornos muito imprecisos e cheios de relativismos”, sendo, portanto, necessário estabelecer algumas condições fundamentais para que bem se caracterize a existência de uma organização criminal, a saber:
“La existencia de un centro de poder, donde se toman las decisiones”; “actuación a distintos niveles jerárquicos”; “aplicación de tecnología y logística”; “fungibilidad o intercambialidad de los miembros”; “sometimiento a las decisiones que emanan del centro de poder”; “movilidad internacional” e “apariencia de legalidad y presencia en los mercados como medio de transformación de los ilícitos benefícios”. (La Organización Criminal, Madrid: Dykinson, 2000, p. 9).