Um dos paradigmas atuais dentro da Ciência Política, tema de debates em variados níveis acadêmicos e intelectuais é a expansão da atuação do Poder Judiciário. Essa expansão, verificada a partir da segunda metade do século XX, especialmente na arena política, ensejou discussões sobre a chamada judicialização da política.
Argumentos vários procuram comprovar ou refutar a existência efetiva de uma judicialização da política, especialmente no que concerne estudos brasileiros, a partir da desproporcionalidade ente a procura pela atuação do Poder Judiciário e sua efetiva intervenção no processo decisório político.
Entre negações e confirmações da existência do fenômeno, surgem outros enfoques para argumentar que a judicialização não se dá apenas no caráter procedimental, mas em outros níveis do processo político, como a formulação das regras (leis) e o processo de escolha dos representantes.
A discussão apresentada neste artigo, que representa um dos recortes da dissertação de mestrado defendida em 2013 no Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS (Porto Alegre/RS), procura empreender um resgate histórico da formação do Poder Judiciário no mundo, até chegar aos moldes atuais, até a conceituação e debate sobre a judicialização da política, em suas várias compreensões, perpassando as questões da judicialização da política no Brasil, tendo como objetivo apresentar a possibilidade da judicialização da política no que tange a atuação da Justiça Eleitoral.
1 Determinantes e tendências da expansão do Poder Judiciário
A fim de compreender a judicialização da política, precisamos primeiramente resgatar o processo de formação do Judiciário até chegar nos moldes atuais e seu lugar dentro do sistema político. Para isso, retomaremos duas discussões que embora sejam antigas, ligam-se intimamente com as raízes deste processo: a teoria da tripartição de poderes de Montesquieu e a trajetória de formação das arquiteturas institucionais do Poder Judiciário a partir da consolidação dos Estados Liberais.
A fórmula da separação dos poderes foi difundida no século XVIII, e passou a ser entendida como necessária a limitação do poder político do Estado. Basicamente, Montesquieu distinguiu as funções do Poder Executivo, Legislativo e Judiciário, e essa distinção passou a ser considerada indispensável para a constituição dos Estados Liberais, com poderes limitados, de modo que, “pela disposição das coisas, o poder freie o poder” (MONTESQUIEU, 1973, p. 156 apud ARANTES, 2007, p. 80).
Conforme Arantes (2007), as transformações sociais pelas quais passou o mundo ocidental a partir do Século XVIII impactaram fortemente no Poder Judiciário e foram responsáveis pela maior importância que este veio ganhando no cenário político. Desde a racionalização e centralização da Administração Estatal (BOURDIEU, 1986), operacionalizada pelas monarquias absolutistas num período anterior (século XV a XVIII) até as revoluções comerciais e afirmação do sistema capitalista, através da valorização da Justiça na garantia das relações econômicas, influenciaram este processo.
No entanto, a mais profunda transformação se deu quando da derrubada dos regimes absolutistas e a consolidação dos primeiros Estados Liberais. A partir daí, segundo Arantes (2007), o Poder Judiciário passa a ser reconhecido como função estatal e em alguns casos, como poder do Estado.
Arantes (2007) cita dois exemplos clássicos, que vieram a estabelecer dois padrões distintos de organização institucional do Poder Judiciário: a França e os EUA. Ambos os Estados Liberais formados a partir do texto constitucional norte-americano, em 1787 e pela Revolução Francesa em 1789, tinham como inspiração o pensamento político liberal da época.
Em “O Espírito das Leis”, Montesquieu ancora bases da teoria da separação dos poderes. Para ele, o poder pode ser de três tipos: despótico, monárquico ou republicano. No primeiro, toda obediência gira em torno da vontade do soberano, o príncipe, tudo está a ele subordinado. Os outros dois tipos de poder, o monárquico e o republicano, são o que ele chama de poderes moderados, cuja característica seria uma combinação de poderes, jamais acumulados nas mãos de um só, com certo grau de controle entre eles. Esses poderes, separados em suas funções específicas, funcionariam como prevenção ao abuso de poder.
Assim, Montesquieu define sua separação de poderes dividindo o Estado em três ramos: Executivo, Legislativo e Judiciário. Embora essa formulação teórica ocorra ainda no século XVIII, mais precisamente com a publicação da obra em 1750, Montesquieu tornou-se referência no que se trata da fórmula da separação dos poderes. Tendo em vista que o autor veio a falecer cinco anos após a publicação da obra, não poderia imaginar o tamanho da influência do seu pensamento para a arquitetura do Estado Moderno, até a contemporaneidade.
Sua fórmula, agregada ao pensamento liberal efervecente no século XVIII, deu origem a modelagem do Estado Liberal e à consolidação do Poder Judiciário dentro dele. O processo de formação da estrutura do poder Judiciário vinha sendo tecido à séculos, desde quando as monarquias absolutistas, já no século XV, organizaram a burocracia estatal e centralizaram o sistema de justiça. Segundo Bourdieu (1989), na época medieval, coexistiam jurisdições laicas e eclesiásticas: a justiça das aldeias, dos senhores feudais, das igrejas, das corporações de artesãos, e a justiça do rei; Aos poucos, esta última se insinua para todas as outras, num movimento de concentração que cria o Aparelho Jurídico. Ou seja, todas as justiças existentes são unificadas em uma única: a justiça do Estado.
Porém, é com a Revolução Francesa de 1789 e um pouco antes, a promulgação da Constituição da Filadélfia, em 1787, nos Estados Unidos, que se dá a efetiva formação dos primeiros Estados Liberais e o pontapé inicial para a consolidação de um Poder Judiciário forte (ARANTES, 2007). Embora tanto franceses quanto norte-americanos tenham aplicado a fórmula da separação dos poderes e tenham sido conduzidos pelo pensamento liberal da época, os dois Estados surgidos de ambos os processos deram origem a modelos de Judiciário bastante distintos.
A diferença básica é que na França, o Poder Judiciário é adotado como função estatal, mas recebe apenas a tarefa de prestação de justiça comum na resolução de conflitos entre particulares. Já nos EUA, de acordo com Arantes (2007), além dessa função de justiça comum, o Poder Judiciário é elevado à condição de Poder Político com a tarefa de controlar os demais poderes. Isso ocorreu por que na França, o pensamento liberal foi utilizado com a finalidade de derrubar o Absolutismo e suas tiranias. Desse modo, realizado este intento, o objetivo foi aniquilar o Poder Executivo o máximo possível, e dar total autonomia ao Poder Legislativo, tido como único e legitimo representante da vontade geral nos termos de Rosseau, ou seja, a vontade soberana do povo expressa nas decisões de seus representantes (ARANTES, 2007).
Já nos EUA, a experiência de uma década de independência levou os americanos a desenvolverem a idéia de que mesmo dentro do mais perfeito governo popular, poderia germinar sementes do autoritarismo, com base em casos de abuso de poder pelos próprios legisladores. Segundo Madison (1993, p. 331-332): “(...) o acúmulo de todos os poderes, legislativo, executivo e judiciário nas mesmas mãos, seja de uma pessoa, de algumas ou de muitas, seja hereditário, autodesignado ou eletivo, pode ser justamente considerado a própria definição de tirania”.
Temendo a “tirania da maioria”, chegaram ao consenso de que mesmo os poderes representativos, democraticamente constituídos, não poderiam ficar isentos de controle. Sendo assim, ao contrário dos franceses, não optaram pela total autonomia do Poder Legislativo e conferiram ao Poder Judiciário, o status de poder político e a capacidade de controlar os demais poderes com base nos fundamentos constitucionais (ARANTES, 2007).
Dessa forma, nos EUA surgiu um modelo de Judiciário capaz de exercer o controle da constitucionalidade das leis, modelo este seguido pela maioria dos Estados Democráticos subseqüentes. Dessa forma, conforme Arantes (2007), diferentes interpretações do principio de separação dos poderes de Montesquieu deram à diferentes posições do Judiciário. No caso dos EUA, o Judiciário foi elevado a tal condição que lhe permitiu se colocar entre governo e cidadão, na garantia dos direitos individuais, especialmente aqueles relacionados à propriedade.
Em outras palavras, o Judiciário adotado naquele país tinha a função do controle da constitucionalidade das leis, colocando-o em pé de igualdade com os demais poderes, justamente no aspecto mais importante do sistema político, que é segundo Arantes (2007), o processo decisório que estabelece normas capazes de impor comportamentos às pessoas. Nas palavras do autor, “a condição de poder político do Judiciário nos tempos modernos decorre de sua capacidade de controlar atos normativos dos demais poderes, especialmente as leis produzidas pelo Parlamento” (ARANTES, 2007, p. 82).
A fim de melhor explicitar do que se trata o controle de constitucionalidade das leis, Arantes (2007) define que, num país, a exemplo dos EUA, que o Poder Judiciário pode ser acionado para verificar a respeito das leis, há um terceiro poder político, além do Executivo e do Legislativo. O modelo de Judiciário norte-americano é caracterizado como difuso, ou seja, todos os Juizes de todas as instâncias têm o poder de realizar a revisão judicial das leis. Ao realizar esta revisão constitucional, o Judiciário amplia seu poder em relação aos demais poderes. Segundo Moraes (2000) apud Carvalho (2004), desde o final do século passado a maioria dos países do Ocidente adotou o principio da revisão judicial das leis, como forma de controle do Poder Legislativo.
Para Campilongo (1994) apud Carvalho (2004), o fato dos poderes legislativo e executivo terem de se preocupar para não infringir a Constituição, além das outras preocupações inerentes às suas funções, equaciona o sistema político democrático, através de seus guardiões: a Constituição e os Juízes. Este arranjo institucional, segundo Carvalho (2004, p. 115), “propiciou o desenvolvimento de um ambiente político que viabilizou a participação do Judiciário nos processos decisórios”.
Oliveira e Carvalho (2006), para usar uma expressão de impacto, dizem que nos países em que o Judiciário passou a controlar outros poderes através da revisão das leis, ele transformou-se num “terceiro gigante” dentro do sistema político. O modelo de Judiciário norte-americano serviu de exemplo a vários países, segundo Arantes (2007), sendo que o princípio da revisão judicial das leis foi sendo adotado com algumas modificações, em parte, com a consolidação dos EUA como potência mundial no século XX e com a promulgação de textos constitucionais substantivamente mais densos e rígidos que aqueles elaborados nos séculos anteriores.
Embora o modelo tenha sido copiado pela maioria dos países ocidentais, combinações e adaptações também foram feitas no intuito de compensar o exagero do modelo norte-americano e prevenir um possível “governo de juízes”. Conforme Arantes (2007), esse “exagero” identificado no sistema norte-americano diz respeito ao fato de que, nos EUA, todos os juízes e instâncias têm a capacidade para declarar a inconstitucionalidade das leis.
Sob a influência de Kelsen, a Áustria protagonizou o modelo concentrado, onde apenas um tribunal especial – a corte constitucional – pode realizar o controle de constitucionalidade das leis, sendo que outros juízes e instâncias ficam encarregados da prestação de Justiça Comum. Outras combinações entre os extremos difuso e concentrado, foram protagonizadas por outros países, “dando origem a sistemas mistos ou, como parece singularizar o caso brasileiro, um sistema híbrido” (ARANTES, 2007, p. 92).
Basicamente, o hibridismo do sistema judicial brasileiro quer dizer que existe um Supremo Tribunal Federal (STF) que tem a função de controlar a constitucionalidade das leis, capaz de anular ou ratificar as leis através do mecanismo das Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADINs). Mas que, no entanto, não detém o monopólio da revisão judicial: outros juízes e instâncias podem afastar sua aplicação em determinados casos específicos (ARANTES, 2007).
O processo de expansão contínuo do poder judicial, que teve inicio no século XIX, atingindo um ápice sem precedentes no século XX, e se estendendo até hoje, tem origens que são divididas pela literatura em macro e micro fatores. Os macrofatores seriam os processos de transformações societárias ocorridas em âmbito global, e os micro fatores seriam as questões internas – institucionais, econômicas e sócio-políticas – de cada país. Em relação aos macrofatores, podem ser apresentados em quatro conjuntos de compreensões, que longe de serem excludentes entre si, são complementares uma a outra.
Começando pelos pioneiros do estudo da judicialização da política, Tate e Vallinder (1995) apud Carvalho (2004), apontam como causas para a expansão do Poder Judiciário, a queda da União Soviética e o colapso do Socialismo real, término da polarização geopolítica e afirmação do capitalismo como sistema hegemônico e consequentemente, dos Estados Unidos como única potência mundial. A ascensão dos EUA como potência ampliou a tendência de outros países copiarem seus padrões, em várias áreas das relações sociais, e inclusive, em relação ao Judiciário. Conforme já dito antes, como a revisão judicial é um princípio largamente utilizado no modelo do Judiciário norte americano, e os EUA passaram a ser imitados por vários países nos seus padrões societários, a tendência foi à inclusão de um Judiciário forte nos moldes norte-americanos nas novas democracias, tanto latino-americanas quanto asiáticas e africanas (CARVALHO, 2004). Os autores ainda apontam a influência da Ciência Política nos tribunais norte-americanos e a terceira onda de redemocratização - nas palavras de Huntington - que atingiu vários países na Ásia, África e América Latina.
A segunda perspectiva de compreensão sobre a expansão do Poder Judiciário, inclusa nos macro fatores que influenciaram o processo de expansão do Judiciário, trata-se da questão dos direitos humanos e da instituição do Welfare State na Europa. Arantes (2007) destaca que o Judiciário teve um salto de intervenção e procura na segunda metade do século XX, especialmente pelo fato de ser transformado em instância de aplicação de direitos sociais e coletivos instituídos pelo chamado Estado de Bem Estar Social. Marcado pelos princípios do intervencionismo econômico e a promoção do Bem Estar Social, esta nova configuração do Estado resultou na formulação de leis constitucionais e ordinárias demarcando direitos do cidadão, individual e coletivamente. O Estado amplia seu papel na intervenção econômica e passa a prestar serviços públicos cada vez mais relevantes, ampliando também o papel do Poder Judiciário, acionado para dar efetividade real às legislações sociais.
Segundo Arantes (2007), ampliação do acionamento do Poder Judiciário se dá em duas fases: na primeira, um Welfare State inchado de legislações sociais, garantindo direitos aos cidadãos, mas incapaz de implantar tais direitos pela ausência de recursos, levando a busca pelo Judiciário para garantir que fossem aplicados. E na segunda, o retorno do Estado Liberal, na perspectiva ainda mais agressiva do neoliberalismo, onde o Estado perde boa parte da sua capacidade de intervenção econômica e social, passando por processos de privatizações, desregulamentação da economia, redução do déficit público, equilíbrio fiscal e combate à inflação.
Na primeira fase, o Judiciário se expandiu junto com o Estado, para garantir que leis trabalhistas e sociais fossem aplicadas. Mas na segunda fase, em vez de uma retroação proporcional, o Judiciário se vê ainda mais acionado, numa situação de corte de gastos públicos e uma abundante quantidade de leis para cumprir (ARANTES, 2007).
Essa compreensão também pode ser encontrada em Cappelletti (1993) apud Oliveira e Carvalho (2006), para o qual as razões para a expansão do Poder Judicial se dá através do novo papel do Direito no Welfare State, que para dar fluxo as atividades legislativas, precisou construir um aparelho estatal mais complexo. Segundo o autor, o aumento das atividades legislativas obrigou parlamentares a repassar parte de suas funções a outros poderes, especialmente o Executivo. Este fato ocasionou um aumento das atividades do Judiciário no controle da constitucionalidade das leis.
Dentro de uma perspectiva mais focada nas mudanças culturais ocasionadas na sociedade, outros determinantes ou facilitadores para a expansão do Poder Judiciário, são apontados por Arantes (2007) tais como: a crise dos meios tradicionais de representação política, a revalorização da Sociedade Civil como realizadora de bens públicos não realizados pelo Estado, globalização, agravamento de problemas como corrupção e crime organizado, entre outros. Essa perspectiva também é encontrada nos estudos de Garapon (1999) apud Oliveira e Carvalho (2006), que argumenta que a influência crescente do Poder Judiciário não só na política, mas em toda a sociedade, está intimamente ligada a crise de legitimidade das democracias, o enfraquecimento do Estado, o predomínio do mercado e a diminuição da confiança do homem nas instituições democráticas. Para ele, a explosão do número de processos não é um fenômeno jurídico e sim, social.
Em outras palavras, o pleno desenvolvimento do capitalismo e o rompimento dos elos sociais anteriores, como família, Igreja, Estado “protetor”, que regulavam os comportamentos, são substituídos pela lógica do contrato jurídico. Ou seja, há uma contratualização das relações sociais, sendo que o direito passa a exercer o papel de regulador da vida humana. No entanto, apesar de dar ênfase a essa mudança nos valores da sociedade, o autor não descarta a perspectiva já sinalizada por Tate e Vallinder (1995) apud Carvalho (2006), no que diz respeito à derrocada do mundo socialista que deu fim a bipolarização geopolítica do mundo e consolidou o sistema capitalista como hegemônico.
Porém, Garapon (1999) apud Oliveira e Carvalho (2006), a partir da causa determinante acima apontada, reiteram um outro efeito na facilitação do alargamento do Poder Judiciário: para ele, tal contexto provocou alterações no direito pela constante internacionalização das regras, ou seja, o poder passa a ter um aspecto supranacional, regulado por acordos e convenções via organismos internacionais, a exemplo da ONU, OTAN, OMC, Comunidade Européia, MERCOSUL, etc. A conseqüência prática é que o simbolismo do poder e da democracia passam da esfera do Estado-Nação para o mundo político, para a Justiça, o mundo burocrático. Porém, a justiça não ambicionou este aumento de poder, ele se deu em boa medida pela atuação dos próprios políticos: inflacionaram-se as funções legislativas, aumentaram-se as leis, e conseqüentemente, aumentou a carga de requisição do Judiciário.
Para Garapon (1999) apud Oliveira e Carvalho (2006) foi a evolução da sociedade democrática que transformou a atuação da Justiça; Ou seja, os laços sociais, a tradição, os costumes, a religião, foram desconstruídos pelos ideais de igualdade e liberdade da democracia. Como detinham o controle natural dos conflitos, a própria sociedade democrática teve de substitui-los, passando a Justiça a atribuição de monitorar a liberdade e aplicar sanções aos excessos. Assim, passa-se ao Judiciário a responsabilidade de resolver conflitos que antes não adentravam em sua esfera.
Numa perspectiva mais jurídica, Arantes (2007) aponta que também são fatores da expansão do Poder Judiciário a mudança do próprio direito e das regras processuais, além da ampliação do acesso à justiça a atores da sociedade antes excluídos. Essa perspectiva concorda com a de Ibañez (2003) apud Carvalho (2004), para o qual a judicialização está ligada à mudança do comportamento jurisprudencial dos tribunais, em outras palavras, que estes passaram a atuar nos vazios institucionais deixados pelos poderes representativos.
Existem ainda outras noções, como a de Santos (2001) apud Carvalho (2004) apontam para a judicialização da política atrelada a interesses econômicos globais, ou seja, sem um Judiciário sólido e independente, os riscos de colapso econômico são maiores. Segundo Carvalho (2004), todas os conjuntos apresentados acima tem fundamento, no entanto estão sendo pensadas a partir de diferentes realidades: Tate e Vallinder (1995) raciocinam a partir do contexto norte-americano, Ibañez (2003) na questão européia e Santos (2001) nos países sub-desenvolvidos ou em desenvolvimento. Portanto, não há possibilidade de hierarquizar tais afirmações ou aplicá-las cruamente ao Brasil.
No que tange os microfatores, a expansão judicial pode ser explicada pelo formato constitucional e pelo arranjo institucional do Poder Judiciário adotado em cada país, além da presença de algumas condições favoráveis, enumeradas por Tate e Vallinder (1995): presença da democracia, separação de poderes, existência de direitos políticos formais, uso dos tribunais pelos grupos de interesse e pela oposição, inefetividade das instituições majoritárias.
Para Tate e Vallinder (1995) apud Arantes (2007) o processo de judicialização da política ocorre com mais facilidade quando algumas condições estão presentes, sendo que estas se encontram identificadas no Brasil, a saber: a democracia restabelecida nos anos 80, constituição federal rica em direitos, número cada vez maior de grupos de interesse demandando a resolução de conflitos coletivos, sistema consociativo, coalizões e partidos frágeis para sustentar o governo, utilização do judiciário pela oposição para conter o governo, modelo constitucional que delega a Justiça alto grau de legitimação em várias áreas. Ainda segundo os autores, para ocorrer uma judicialização da política não basta apenas a presença das condições favoráveis e a procura pelo Poder Judiciário, mas também, a disposição dos seus membros em chamar para si a responsabilidade na resolução de conflitos e garantia de direitos. Seria o que a literatura da área chama de “ativismo judicial” ou o que Arantes (2007) caracteriza como “voluntarismo político” por parte dos magistrados.
2 Conceitos e teorias sobre a judicialização da política
O termo “judicialização da política” passou a ser usado pelo universo científico para especificar a intervenção crescente do Poder Judiciário na arena política, inserido no vocabulário da Ciência Política pelos autores americanos Tate e Vallinder (1995). Desde a publicação da obra, no Brasil, essa expressão vem sendo questionada, e acusada de inadequada à realidade brasileira, na mesma medida em que é adotada em vários trabalhos (MACIEL e KOERNER, 2002). Segundo Carvalho (2004), a literatura que engloba o tema toma, em geral, o conceito definido por Tate e Vallinder (1995), ou seja, a judicialização é a reação do Judiciário frente a provocação de um terceiro e tem como finalidade revisar a decisão de um poder político tomando como base a Constituição.
Para Oliveira e Carvalho (2006), no mesmo sentido, judicialização da política é a denominação que se dá à interferência do Judiciário em questões iminentemente políticas. Em outras palavras, segundo Castro e Costa (2005), as instituições judiciárias são cada vez mais chamadas a arbitrar conflitos que, via de regra, não era parte de seu âmbito de competência, normalmente arbitrados pelos ramos políticos do Estado (Executivo e Legislativo).
Como judicialização da política, Oliveira (2005, p. 559) entende a “utilização de procedimentos judiciais para resolução de conflitos de ordem política, tais como controvérsias a respeito de normas, resoluções e políticas públicas em geral, adotadas e/ou implementadas pelos poderes Executivo e Legislativo”. No entendimento de Tate e Vallinder (1995) apud Oliveira (2005), uma transferência dos poderes representativos para o Judiciário no que tange o processo decisório.
Para Tate e Vallinder (1995) apud Carvalho (2004), a judicialização ocorre em duas frentes: 1) From Without, ou seja, a atribuição de revisar as leis tomando como base à constituição, mediante a provocação de um terceiro; 2) From Within, basicamente, a utilização do aparato judicial na administração pública. Em outras palavras, conforme interpretação de Oliveira e Carvalho (2006), seria a difusão da arena decisória judicial (principio da revisão constitucional das leis a exemplo das Ações Diretas de Inconstitucionalidade no Brasil) e/ou adoção de mecanismos judiciais em arenas de deliberação política (como por exemplo as Comissões Parlamentares de Inquérito – CPIs e os Tribunais de Contas da União).
O conceito mínimo de judicialização da política evidenciado por Carvalho (2004), hiperdimensiona o caráter procedimental, ou seja, é dada demasiada atenção à questão do aumento do número de processos, da procura pelo Poder Judiciário por diversos atores coletivos, especialmente atores políticos. Os trabalhos disponíveis na literatura brasileira, são em sua grande maioria enfocados no caráter procedimental. Porém, é importante levar em conta o caráter substancial, que diz respeito à opção dos tribunais em juizes em intervirem ou não em conflitos políticos, disputas eleitorais, aprovação ou aplicação de políticas públicas;
Segundo Castro e Costa (2005, p. 43), a atividade judicial está ligada em certo grau à uma disposição do magistrado, na medida em que para ele, o ato de aplicar a lei é indissociável dos atos de interpretar e criar, sendo que “o juiz não é, nem nunca foi, a boca inanimada da lei”. Porém, é importante ressaltar, conforme as palavras do autor, que o “Judiciário não é uma agência subalterna em relação aos demais ramos do Estado porém isso não significa que seja superior” (Idem, p. 49).
A predominância do caráter procedimental nos estudos brasileiros deixou de lado o caráter substancial, a partir disso, a judicialização da política passou a ser entendida como a explosão processual. No entanto, com base no estudo de Werneck Vianna et al (1999) apud Carvalho (2004), a taxa de julgamento de mérito das ADINs foi de apenas 13.54% do total, aliada a um grande número de ações paradas aguardando julgamento. Portanto, se for considerar a disposição do Judiciário em intervir, ou seja, o percentual de ADINs julgadas em seu mérito, não se constituiria em um argumento para diagnosticar a judicialização da política no Brasil. Enfim, para Carvalho (2004, p. 122), o aumento da demanda judicial não diz se o poder Judiciário está ou não intervindo, e não é “suficiente para caracterizar uma judicialização da política”.
Para comprovar que essa predominância do eixo procedimental ocasiona falhas, Tate e Vallinder (1995) apud Oliveira e Carvalho (2006), enfatizam que o fato de não decidir, não alterar uma política, não julgar o mérito de uma ação, não significa ausência de decisão por parte dos tribunais, podendo corresponder simplesmente à decisão de não intervir. Para usar uma boa frase de efeito, é possível citar Gibson (1983) apud Taylor (2007, p. 243), ao enfatizar que “as decisões dos juízes são uma função do que eles preferem fazer, moderadas pelo que acham que devem fazer, mas constrangidas pelo que percebem que é viável fazer”.
Para Maciel e Koerner (2002, p. 114), a “judicialização da política requer que os operadores da lei prefiram participar da policy making a deixá-la ao critério de políticos e administradores”. Sendo assim, a judicialização envolve tanto o caráter procedimental quanto o substantivo das funções judiciais. Existe, portanto, uma lacuna nos estudos brasileiros, no que diz respeito a compreensão do caráter substancial da ação do Poder Judiciário. Isso se dá pela adoção de uma compreensão das atitudes dos juizes e tribunais por uma ótica mais centrada nos determinantes/condicionantes institucionais.
Segundo Taylor (2007), a literatura internacional estuda, dentro da análise substancial, as ações dos juízes por meio de três vertentes: a institucional, a atitudinal e a estratégica. A vertente atitudinal estuda as ações a partir da noção de comportamento e preferências, levando em conta inclusive à ideologia e as preferências partidárias. A estratégica direciona o debate para uma suposta luta dos tribunais para manter e ampliar seu poder diante dos poderes eletivos. Embora o autor reconheça que essas duas dimensões existam no Brasil, sinaliza que, diante das limitações empíricas para a realização de estudos das duas primeiras correntes no Brasil, predomina o modelo de análise institucional.
Quando se fala em judicialização da política, se coloca a questão de que o aumento demasiado do controle sobre os demais poderes pelo Judiciário criaria um “governo de juízes” (Lambert, 1921, apud Arantes, 2007), e até que ponto não se tornaria anti-democrático por violar a independência entre os três poderes e a própria legitimidade representativa (CASTRO e COSTA, 2005). Frequentemente, o problema da legitimação de um poder não eleito vem à tona, na questão dos efeitos “da ampliação do Poder Judicial sobre a relação entre os poderes e os princípios abstratos de legitimidade dos sistemas democráticos” (Maciel e Brito, 2010, p. 4).
Freqüentemente, segundo Taylor (2007), quando se discute a ampliação do Poder Judiciário na arena política, aparece a posição de que há algo fora do lugar na sua intervenção nesse campo, pois se trata do “único poder não escolhido através de procedimentos abertamente democráticos” (p. 248). Existe, portanto, paralelamente ao crescente debate sobre a judicialização, o desenvolvimento de um discurso crítico por parte dos poderes eleitos contra “o poder não eleito” (p. 248-249).
Porém, um contra argumento a isso é que, quando Montesquieu deu forma e substância a teoria da tripartição dos poderes, em nenhum momento atribuiu que seriam estes rigorosamente separados. Para Montesquieu é clara a existência de três tipos de poder, a saber, o republicano, o monárquico e o despótico, sendo que este último caracteriza-se pela obediência cega à vontade do príncipe, sem nenhuma espécie de controle. Os demais, são chamados por ele de poderes moderados, que teriam em sua constituição a combinação dos poderes, equilibrados a tal ponto de um deles receber um determinado peso a fim de estar em condições de resistir aos outros.
Para ele, a liberdade política só existe quando não se abusa do poder, ou seja, é impossível em governos despóticos. Porém, segundo Castro e Costa (2004), é uma experiência antiga que todo homem que possui poder tende a abusar dele ou tentar aumentá-lo, indo até onde encontra limitações concretas. Para que não haja esse abuso é necessário, segundo Montesquieu, que as coisas estejam de tal forma dispostas de modo que o poder freie o poder.
O argumento de que o Judiciário que funciona adequadamente pode servir de contrapeso à outros poderes governamentais vem sendo usado, segundo Taylor (2007), desde Madison (1993) apud Taylor (2007) e pelo próprio Montesquieu. Conforme o raciocínio de Castro e Costa (2005), Montesquieu nunca disse que os três poderes deveriam ser rigorosamente separados, sem nenhuma relação de controle ou intersecção entre si, e sim, que tais poderes “jamais deveriam ser enfeixados pelos mesmos homens, sob pena de perecer a liberdade” (p. 42). Nos escritos de Madison (1993, p. 33), encontra-se a afirmação de que Montesquieu “não queria dizer que esses poderes não devem ter nenhuma ingerência parcial, ou nenhum controle sobre os atos uns dos outros”.
Vendo o controle da constitucionalidade das leis e o processo de judicialização da política sob a luz da teoria de Montesquieu, pode-se dizer que não existe incompatibilidade entre tais funções e os papéis tradicionais do Judiciário (CASTRO e COSTA, 2005). Isso significa dizer que, “embora o conceito da separação dos poderes conduza a três instituições claramente distintas, as funções judicial, executiva e legislativa dessas instituições não são nitidamente separadas em caixas constitucionais como supomos” (TAYLOR, 2007, p. 249). Sendo assim, no raciocínio do autor, existe uma sobreposição das funções das três instituições.
Conforme já afirmado, os estudos brasileiros sobre judicialização são predominantemente centrados no controle da constitucionalidade das leis, e se dividem, de forma bipolar, entre favoráveis e contrários. Os que são a favor da judicialização da política vêem como positivo o aumento do controle sobre os demais poderes. Já os contrários, argumentam que atribuir tanta influência a um poder não eleito pode ferir os princípios democráticos básicos (Oliveira, 2005).
Cappelletti (1993) apud Oliveira e Carvalho (2006), que centra seus estudos na função jurisdicional pelo aspecto da criatividade, afirma que os juizes não são meros aplicadores do direito, e sim, participam de certa forma do processo de “criação do direito”. Este autor, é claro, tem a prudência de, ao mesmo tempo em que afirma que o processo jurisdicional também constitui em processo de criação do direito, deixar claro que há diferenças no grau de criação judiciária e que isso em si não torna o juiz um legislador.
Isso ocorre porque o Poder Judiciário é um agente passivo neste processo: é indispensável para que o juiz possa exercer seu poder jurisdicional, que haja um autor. Um tribunal não pode agir sozinho, num processo, ele precisa de um terceiro para provocar sua ação. Para Oliveira (2005), o fato de interpretar, aplicar e declarar a constitucionalidade das leis, não implica em dizer que os juízes tem poder de legislar, ou seja, de “criar leis”.
O Poder Legislativo e o Executivo, para agir, contam com a sua legitimidade democrática, ou seja, juízes não são eleitos e, portanto, não contam com tal pressuposto. Aliás, considerando os argumentos de Roussel (2000), os juízes estabelecem até mesmo um distanciamento, ou seja, se afastam da política, para poder intervir em nome da justiça, de uma forma “isenta”, “imparcial”, não pertencente ao mesmo mundo político, e, portanto, legitimado pela credibilidade da fé pública na Justiça.
O eixo procedimentalista da discussão acerca da judicialização da política defende que a invasão do direito nas instituições políticas indicaria a perda dos ideais democráticos (GARAPON, 1999 apud OLIVEIRA E CARVALHO, 2006). Nessa mesma direção, para Habermas (1997), assim como legisladores não tem o direito de julgar se os tribunais estão aplicando correta e justamente a lei, os juizes não têm o direito de intervir na substância do processo legislativo, através do controle de constitucionalidade das leis, por exemplo.
Já na discussão empreendida pelo eixo substancialista, as novas relações são tomadas não só como inevitáveis, mas também como necessárias ao sistema político, não tendo prejuízo para os ideais democráticos (Oliveira e Carvalho, 2006). A afirmação contida nessa corrente de discussão está fincada na idéia de que as maiorias eleitas tendem a não respeitar o direito das minorias, havendo a necessidade um poder que atue como freio e contrapeso no sistema político em relação aos poderes representativos. De certa forma, este debate teórico sempre se esgota nas fronteiras entre direito e política: até onde o direito pode invadir a arena política e vice-versa (OLIVEIRA e CARVALHO, 2004).
A defesa do processo de judicialização da política faz parte do repertório de grupos políticos que justificam o recurso das arenas judiciais para ampliar a proteção estatal aos direitos de minorias. Ou seja, utilizado pelos grupos de interesse para atingir as suas metas. Por outro lado, são de uso instrumental para que minorias derrotadas nas arenas de decisão política possam revogar na Justiça as decisões da maioria vencedora (MACIEL e KOERNER, 2002).
Arantes (2002) apud Maciel e Koerner (2002, p. 117) argumenta sobre a existência de um ativismo voluntarista do Ministério Público, se tratando de uma ameaça às “funções políticas das instituições representativas”.
Seu entendimento é de que, não só as mudanças institucionais, ou seja, na legislação e nas atribuições do Ministério Público na defesa dos interesses difusos e coletivos, mas também a dimensão substantiva – o voluntarismo político – cassou uma supervalorização deste órgão. Sua hipótese é que tais mudanças ocorreram por um processo endógeno, ou seja, as lideranças do próprio Ministério Público perseguiram intencionalmente a ampliação dos seus poderes (ARANTES, 2002, apud MACIEL e KOERNER, 2002). Arantes (2002) inclui uma variável ideológica, dizendo que tal atitude dos membros do Ministério Público é resultado de uma visão tutelar da sociedade brasileira. Ou seja, como uma “sociedade hipossuficiente”, incapaz de defender sozinha seus direitos, precisa da Justiça para atuar sistematicamente em sua defesa. Porém, Maciel e Koerner (2002), argumentam que essa visão é em demasiado generalista para ser levada a sério como regra. Seria quase uma “teoria da conspiração” das elites jurídicas pela tomada e manutenção do poder, o que não corresponde à realidade.
Taylor (2007) procura pensar o papel do Poder Judiciário brasileiro tendo como objeto de estudo as políticas públicas, buscando incorporar o Judiciário na análise das decisões governamentais, já que considera essa ausência da incorporação desse ator como uma lacuna na Ciência Política. Segundo ele, há uma onda expressiva de estudos sobre judicialização da política, que vem aos poucos preenchendo esta falha.
Os tribunais têm três conjuntos de motivações para agir, intrinsecamente ligados aos três níveis de sua funcionalidade (TAYLOR, 2007). Para o autor, os tribunais agem em três dimensões de relevância para a análise da Ciência Política: hobbesiana (monopólio da violência pelo Estado), smithiana (definindo e garantindo as regras de funcionamento da Economia) e madisoniana (relações entre os Três Poderes), sendo que esta última merece atenção especial por entrar no terreno dos processos decisórios e competição política. O Judiciário não possui “nem a bolsa nem a espada” (Hamilton, 1961 apud Taylor, 2007), ou seja, não tem nem os poderes orçamentários nem os poderes coercitivos, mas tem um poder político diferenciado por ser o depositário da fé pública. Conforme Dahl (1957) apud Taylor (2007), o Judiciário preenche um papel político no que tange a tomada de decisões políticas em contextos e situações controversas. Nesse sentido, o autor considera imprudente o fato dos estudos que tratam do sistema político excluírem o papel do Judiciário.
Stepan (2000) apud Taylor (2007) incorpora o Judiciário como um fator anti-majoritário, mas na Ciência Política brasileira essa postura é uma exceção: na maioria dos estudos de análise do sistema político, o Judiciário é visto apenas em suas dimensões de manutenção da ordem e segurança pública (hobbesiana) e de regulação contratual das relações econômicas (smithiana). Vauchez (2009) reconhece que há uma lacuna nas questões analíticas e metodológicas referentes ao tratamento do espaço judicial pela Ciência Política em geral. O autor coloca a necessidade de enfrentar a análise da intervenção da Justiça na perspectiva da Ciência Política, o que, segundo ele, não tem ocorrido.
Esse distanciamento da Ciência Política em relação à Justiça se dá, para ele, por conta da adoção de uma percepção da mesma como espaço neutro, campo não-político, externo à política. Porém, Vauchez (2009) afirma que esta postura é meramente ideológica, desenvolvida por um processo histórico iniciado desde o século XIX, que identificava no Judiciário o papel de um “terceiro”, um árbitro entre as partes do conflito. De acordo com essa percepção, o Judiciário estaria situado no espaço externo à política, um poder neutro, desinteressado, o que lhe conferia muito mais legitimidade para julgar a política.
A tese de Montesquieu e outros filósofos do século XVIII vai sendo substituída, e a idéia de todos os poderes como sendo parte do todo, da unidade política, que defendia a perspectiva de controle dos poderes através da multiplicidade de autoridades com diferentes pesos e medidas, é transplantada por outra: a idéia de que os juízes são neutros, não exercem tarefa política, sendo detentores de um conhecimento e legitimidade que os habilitaria julgar a política de uma postura distanciada.
Isso, para Vauchez (2009), explicaria o longo desinteresse da Ciência Política pelo Judiciário deixando-o à margem na análise dos sistemas políticos, justamente por terem aderido à idéia de Duverger como sendo o Poder Judiciário um ator não-político. Segundo Vauchez (2009), a tese da neutralidade e legitimidade do Judiciário para julgar a política vem se tornando aguda nas últimas décadas, a ponto dos próprios legisladores canalizarem para ele a atribuição de dirimir conflitos políticos, a despeito de alguns alertas como o fantasma do “governo de juízes”, ditadura do judiciário, etc.
Porém, os autores em questão concordam em um ponto crucial: é necessário incorporar o Poder Judiciário como ator fundamental no sistema político, capaz de determinar diferenças em circunstâncias e magnitudes que não podem ser ignoradas.
Considerações Finais
Tendo como base a discussão acima, pode-se dizer que uma das conseqüências diretas do processo de judicialização da política é o impacto no Sistema Político, especificamente no caso brasileiro, esse impacto é notado na questão do reforço ao seu caráter extremamente consensual. Segundo Arantes (2007), o grande número de atores legitimados a propor ADINs, faz com que o sistema híbrido brasileiro permita às minorias à exercerem poder de veto. Adotando os termos de Lijphart (1989), o autor explicita que o Brasil se encaixa no modelo consociativo de democracia, pois é composto por características como a separação de poderes, presidencialismo, legislativo bicameral, multipartidarismo, federalismo descentralizado, somado então ao sistema de controle de constitucionalidade das leis.
O fato das minorias representativas terem uma forma de recurso diante das decisões majoritárias torna ainda mais robusto o perfil consociativo do sistema político brasileiro. No entanto, o alto grau de fragmentação consociativa é compensado pelo mecanismo das Medidas Provisórias e o controle exercido pelo Poder Executivo na agenda legislativa (ARANTES, 2007). Segundo Taylor (2007), o sistema político brasileiro é analisado, dicotomicamente em duas perspectivas de debate acadêmico: uma que considera o sistema exacerbadamente consensual e outra que, apesar de tudo, consegue enxergar nele características majoritárias. Conforme Kinzo (2001) apud Taylor (2007, p. 232), a representação política no Brasil “reproduz à enésima potência o sistema de contrapesos do modelo madisoniano”.
Isso quer dizer que enquanto todas as características apontam para um sistema consensual, onde as minorias têm amplo poder de veto, o Executivo exerce forte controle sobre o Legislativo, através do controle orçamentário, dentre outras coisas. Para o autor, isso ocasiona um “delicado equilíbrio entre a centralização e a descentralização do processo decisório” (idem). Porém, a importante influência do Poder Judiciário nas políticas públicas se observa nos fatos de que sua atuação amplia o numero de atores aptos a interferir numa decisão mesmo depois de sua aprovação (nas palavras de Lijphart [1989], atores com poder de veto), e, além disso, a busca de diferentes grupos de interesse pelo judiciário no sentido de contestar decisões majoritárias (TAYLOR, 2007).
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