1 INTRODUÇÃO
Os princípios apurados pela Ciência das Finanças, conforme ensina Aliomar Baleeiro (2001), constituiriam limitações, e limitações constitucionais, ao poder de tributar.
Então, poderíamos considerar alguns desses princípios como “princípios gerais de repressão”, os quais exercem influência sobre o Direito Tributário Sancionador.
Nesse contexto, destaca-se o princípio da proporcionalidade que, nas palavras de Paulo Roberto Coimbra Silva (2007), tem valor inestimável na concretização e efetivação de direitos e garantias fundamentais, bem como “na adequação das modalidades e intensidade da ingerência estatal sobre liberdades individuais” (SILVA, 2007, p. 305).
Assim, a proporcionalidade tem sido legitimada como um princípio constitucional de grande importância especialmente para coibir arbítrios, conforme avaliação fática e jurídica realizada caso a caso.
2 PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
O princípio da proporcionalidade está estreitamente ligado à idéia de razoabilidade, sendo esta sua principal característica.
Tal princípio remete à noção de simetria, regularidade, harmonia e ponderação. Desse modo, terá uma função restritiva, ou moderadora, de forma que sua aplicação envolverá uma espécie de ‘convite ao equilíbrio’ na busca de uma adequação ideal entre vários objetos ou sujeitos.
Antes de analisarmos suas características, é relevante destacar neste pequeno ensaio a existência de diferentes entendimentos a respeito da classificação do tema como princípio.
2.1 Princípio ou postulado?
Quando se fala em ‘proporcionalidade’, não se pode falar em unanimidade doutrinária quanto à sua classificação como princípio.
Alguns autores como Paulo Roberto Coimbra Silva e Marciano Seabra de Godoi referem-se ao instituto como princípio, mas em sentido oposto, Humberto Ávila, em sua obra que trata da teoria dos princípios, e Fábio Medina Osório, ao escrever sobre o tema em sua obra sobre Direito Administrativo Sancionador, são exemplos de autores que tratam a proporcionalidade como ‘postulado’. Nesse sentido, vejamos:
“Um pilar fundamental de desenvolvimento e concretização das normas de Direito Administrativo Sancionador, ao lado e juntamente com o princípio do devido processo legal, é, sem dúvida, o chamado “princípio da proporcionalidade”, cuja importância revela-se transcendental à atividade estatal sancionadora.
Esse princípio, se adotarmos a terminologia mais técnica, há de ser designado como postulado normativo aplicativo. Embora possa vir a ser nominado como princípio, o correr do discurso, até em respeito à terminologia usualmente empregada na maioria da doutrina e jurisprudência nacionais e comparadas, o certo é que se deve considerá-lo como postulado.” (OSÓRIO, 2000, p. 187).
Humberto Ávila estabelece mesmo uma diferenciação entre “normas de primeiro e segundo grau”, classificando os postulados como “metanormas”, dessa forma:
As normas de segundo grau, redefinidas como postulados normativos aplicativos, diferenciam-se das regras e dos princípios quanto ao nível e quanto à função. Enquanto os princípios e as regras são o objeto da aplicação, os postulados estabelecem os critérios de aplicação dos princípios e das regras. E enquanto os princípios e as regras servem de comandos para determinar condutas obrigatórias, permitidas e proibidas, ou condutas cuja adoção seja necessária para atingir fins, os postulados servem como parâmetros para a realização de outras normas.
(...)
Isso demonstra que esses exames investigam o modo como devem ser aplicadas outras normas, quer estabelecendo os critérios, quer definindo as medidas. De qualquer forma, as exigências decorrentes da razoabilidade, da proporcionalidade e da proibição de excesso vertem sobre outras normas não, porém, para atribuir-lhes sentido, mas para estruturar racionalmente sua aplicação. Sempre há uma outra norma por trás da aplicação da razoabilidade, da proporcionalidade e da excessividade. Por esse motivo, é oportuno tratá-las como metanormas. E, como elas estruturam a aplicação de outras normas, com elas não se confundindo, é oportuno fazer referência a elas com outra nomenclatura. Daí a utilização do termo “postulado”, a indicar uma norma que estrutura a aplicação de outras. (ÁVILA, 2006, p. 125).
Como se vê, os que defendem a classificação do instituto como postulado entendem que se trata de uma norma que apenas estruturaria a aplicação de outras.
Contudo, diante da dificuldade de enquadramento, a posição dos que qualificam a proporcionalidade como princípio nos parece mais adequada e será a posição adotada neste estudo.
Isso porque, entende-se que a proporcionalidade pode ser classificada como um chamado “princípio implícito”, conforme registrado por Aliomar Baleeiro:
É no próprio texto expresso da Constituição que, por vezes, encontramos o prestígio atribuído ao que nela está implícito ou resulta da extensão e compreensão de suas disposições.
(...)
Ao lado dos princípios expressos de tributação, vigoram sobre o campo desta outros princípios constitucionais inerentes ao regime e considerados garantias individuais.
(...)
Convém lembrar que uma plêiade de princípios esparsos, muitas vezes expressos para reger matéria financeira, orçamentária ou administrativa, são inteiramente aplicáveis à questão tributária como legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade dos atos administrativos (art. 37), previsibilidade e planejamento dos tributos (art. 165, § 2º) etc.
Não são, entretanto, princípios implícitos. São aplicáveis à matéria tributária, por força de interpretação sistemática, estrutural e teleológica.
Outros, embora não nomeados expressamente no Texto Constitucional, inspiram normas diversas. São, para alguns, verdadeiros e próprios princípios porque nortearam as decisões da Constituinte e presidiram as opções adotadas. São esses os princípios implícitos. (BALEEIRO, 2001, p. 783-784).
Assim, neste estudo, vamos considerar a proporcionalidade como princípio, adotando essa classificação por entendê-la mais adequada.
2.2 Características do Princípio
Estima-se que o princípio da proporcionalidade tenha se originado na antiguidade, tendo sido identificado de forma marcante ainda na Idade Média, na Carta Magna Inglesa, outorgada a João Sem Terra, ao tratar da gradação de multas cominadas a práticas delituosas.
O documento continha determinações no sentido de as multas fossem proporcionais à gravidade ou horror dos delitos praticados, sem confiscar as posses do infrator, de modo que a este fosse assegurada a manutenção de um mínimo necessário para sua subsistência.
Infelizmente, é cediço que nessa época, de uma forma geral, a aplicação da proporcionalidade não ocorreu efetivamente. Haja vista as atrocidades cometidas pelo Príncipe e/ou mesmo pela própria Igreja, pois consideravam o suplício como elemento inseparável dos ritos punitivos.
Posteriormente, a proporcionalidade foi resgatada pelos iluministas e, então BECCARIA, citado por Silva (2007, p. 306) traz a idéia da aplicação do princípio sustentando que a medida na pena deve decorrer da extensão do dano causado à sociedade.
Dessa forma, a pena estaria dissociada da intenção do agente – o que hoje costumamos chamar de “direito penal do autor” -, da dignidade do ofendido ou mesmo do grau de ofensa à realeza e/ ou divindade, como era observado naquele período.
Vemos que, atualmente, a doutrina e jurisprudência alemãs desenvolveram o princípio com maior profundidade e clareza, evidenciando uma ligação íntima da proporcionalidade ao Estado de Direito.
Isso porque no Estado de Direito há a substituição do arbítrio pela submissão a regras gerais, produzidas com vistas a defender direitos consubstanciados nessas normas.
Assim, não se toleram ações arbitrárias do Poder Público, pois todos, indistintamente, estão sujeitos às regras previamente estabelecidas.
É nesse contexto que a proporcionalidade se mostra “num sentido diretivo e restritivo às potestades repressoras do Estado”. (SILVA, 2007, p. 305).
Em sua obra intitulada “Direito Tributário Sancionador”, Paulo Roberto Coimbra Silva (2007) elenca como sendo quatro os principais destinatários do princípio da proporcionalidade, a saber: o legislador, o aplicador da lei, os competentes pelo controle de legalidade e constitucionalidade das atividades estatais e todos aqueles submetidos à abrangência de quaisquer ordenamentos jurídicos.
O legislador, no momento pré-normativo, em que este deve adequar consequências aos fatos, agindo com coerência, de modo a evitar qualquer excesso, alinhando na norma as descrições do fato delituoso e da consequência que lhe segue.
Já o aplicador da lei é destinatário do princípio da proporcionalidade ao exercer o poder de polícia e/ou os próprios poderes sancionadores do Estado, em quaisquer instâncias: administrativa ou judicial.
Os competentes pelo controle de legalidade e constitucionalidade das atividades estatais, por sua vez, serão destinatários num momento posterior, também em quaisquer instâncias administrativa (controle interno e externo da administração) ou judicial (controle judicial).
Por fim, todos aqueles submetidos à abrangência de quaisquer ordenamentos jurídicos serão destinatários do princípio, pois este é tido como garantia de proibição da arbitrariedade, de produção de limites ao Poder Público em sua atividade punitiva, restringindo ou limitando o exercício de direitos e liberdades.
3. A INFLUÊNCIA DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE NO DIREITO TRIBUTÁRIO SANCIONADOR
Já se viu que a proporcionalidade foi legitimada como um princípio constitucional de grande importância, principalmente por possibilitar a interpretação e aplicação de outros princípios implícita ou explicitamente encerrados na CR/88.
Constata-se sua grande influência na coação e controle de possíveis arbítrios estatais, especialmente.
No que se refere às sanções fiscais, Helenilson Pontes, citado por Silva (2007, p. 309) afirma que: “O princípio da proporcionalidade constitui fundamental instrumento de seu controle.” E continua:
a imposição de penalidades tributárias, seja na definição abstrata dos textos normativos, seja na formulação in concreto da norma jurídica sancionatória, encontra substancial limite no princípio da proporcionalidade.
(...)
o princípio da proporcionalidade constitui um instrumento normativo constitucional por intermédio do qual se pode concretizar o controle dos excessos do legislador e das autoridades estatais em geral na definição concreta e abstrata das sanções. (PONTES apud SILVA, 2007, p. 309-310)
Ainda segundo Pontes, citado por Silva (2007, p. 310), o princípio da proporcionalidade é regra cogente não só para o legislador, mas também para a autoridade responsável pela sua aplicação concreta.
E nesse sentido tem procedido o Supremo Tribunal Federal, ao avaliar a compatibilidade das normas legais com o princípio da proporcionalidade.
Especialmente quanto à matéria tributária, podemos destacar, entre outros, um caso de “restrição legal do prazo para o contribuinte desconstituir judicialmente exigência fiscal e o princípio da proporcionalidade” (GODOI, 2002, p. 331).
No caso concreto, o Supremo considerou abusiva e desproporcional a restrição imposta pela norma do caput do art. 33 da Medida Provisória nº 1.863-53/99 (ADIMC 1.922 e 1.976, Relator Ministro Moreira Alves, DJ 24.11.2000) que estabelecia um prazo exíguo para exercício do direito de ação pelo contribuinte, obstaculizando o acesso deste à jurisdição. Assim, a referida norma foi suspensa.
Semelhantemente a este caso há vários outros, entre os quais podemos citar: Recurso Extraordinário 202.313 (Relator Ministro Carlos Velloso, DJ 19.12.96), Recurso Extraordinário 18.331 (2ª turma, DJ 08.11.51), bem como alguns julgados mais recentes, tal qual o seguinte:
EMENTA: Ação Direta de Inconstitucionalidade. §§ 2o e 3o do Art. 57 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição do Estado do Rio de Janeiro. Fixação de valores mínimos para multas pelo não-recolhimento e sonegação de tributos estaduais. Violação ao inciso IV do Art. 150 da Carta da República.
A desproporção entre o desrespeito à norma tributária e sua consequência jurídica, a multa, evidencia o caráter confiscatório desta, atentando contra o patrimônio do contribuinte, em contrariedade ao mencionado dispositivo do texto constitucional.
(ADI 551-1/RJ, Rel. Min. Ilmar Galvão, Julgamento em 24/10/2002)
Nesse sentido vem seguindo também a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, como destacamos nos seguintes julgados, também recentes:
EMENTA: 1. A sanção tributária, à semelhança das demais sanções impostas pelo Estado, é informada pelos princípios congruentes da legalidade e da razoabilidade.
2. A atuação da Administração Pública deve seguir os parâmetros da razoabilidade e da proporcionalidade, que censuram o ato administrativo que não guarde uma proporção adequada entre os meios que emprega e o fim que a lei almeja alcançar.
3. A razoabilidade encontra ressonância na ajustabilidade da providência administrativa consoante o consenso social acerca do que é usual e sensato. Razoável é conceito que se infere a contrario sensu; vale dizer, escapa à razoabilidade "aquilo que não pode ser”. A proporcionalidade, como uma das facetas da razoabilidade revela que nem todos os meios justificam os fins. Os meios conducentes à consecução das finalidades, quando exorbitantes, superam a proporcionalidade, porquanto medidas imoderadas em confronto com o resultado almejado.
(…)
7. Desta sorte, assente na instância ordinária que o erro no preenchimento da declaração não implicou na alteração da base de cálculo do imposto de renda devido pelo contribuinte, nem resultou em prejuízos aos cofres públicos, depreende-se a ausência de razoabilidade na cobrança da multa de 20%, prevista no § 2º, do Decreto-Lei 2.396/87.
(REsp 728.999/PR, Rel. Min. Luiz Fux, Julgamento em 12/09/2006)
EMENTA: (…) 3. Precedentes análogos do STJ indicam ser possível o exame a) da razoabilidade e da proporcionalidade da pena de perdimento em operações de importação, e b) do dano efetivo ao Erário, para a caracterização específica da pena de perdimento. Com mais razão, seria imprescindível a realização desse juízo em casos que envolvam operações de exportação.
4. Nos termos do art. 112, do CTN, a legislação tributária que comine sanção ao contribuinte deve ser interpretada de forma mais favorável ao acusado, conforme hipóteses ali previstas.
(REsp 1217885/RS, Rel. Min. Herman Benjamin, Julgamento em 22/02/2011)
Assim, pelo exame da pequena amostra de jurisprudência aqui destacada, constata-se que o Estado pode incorrer, e incorre, em abusos em sua atividade legislativa, bem como em sua atividade interpretativa.
Portanto é inegável o papel do princípio da proporcionalidade na análise de cada situação, caso a caso, com vistas à proteção e concretização da realização de direitos e garantias fundamentais, repita-se, previstos constitucionalmente.
4. O TRÍPLICE CRIVO DA PROPORCIONALIDADE DAS SANÇÕES TRIBUTÁRIAS
Três “comandos balizadores” são citados por Silva (2007), nos quais a doutrina alemã teria decomposto o princípio da proporcionalidade como forma de verificar sua observância.
Desse modo, a ausência ou violação de qualquer um desses “elementos” acarretaria invalidade da sanção tributária. E são eles:
a) a adequação (Geeignetheit);
b) a necessidade, imprescindibilidade ou o mínimo necessário (Erforderlichkeit) e
c) a razoabilidade, pertinência ou proporcionalidade em sentido estrito, justa medida ou conformidade (Verhältnismässigkeit im engeren Sinne).
Passaremos à breve análise de cada um desses elementos.
A adequação, no alemão “Geeignetheit”, alude à compatibilidade entre os fins e os meios utilizados para alcançar tais fins, de modo que exista uma “coerência finalística entre limitação jurídica imposta pela sanção e o objetivo que justificou e legitimou sua cominação” (SILVA, 2007, p. 310) e sua imputação.
Aqui, no que se refere às infrações tributárias, destaca-se a adequação das sanções pecuniárias em contraposição à inadequação total das chamadas “sanções indiretas” ou sanções morais ou, ainda, políticas. Dessas podemos citar como exemplo o bloqueio de recebimentos pelas empresas de faturas referentes a serviços já prestados ou mercadorias já entregues.
O segundo elemento, qual seja, necessidade ou imprescindibilidade ou o mínimo necessário, do alemão “Erforderlichkeit”, faz referência à utilização do meio menos gravoso aos direitos dos particulares na consecução dos objetivos da norma sancionadora.
Ou seja, a sanção só será aplicável quando absolutamente indispensável.
Nesse sentido, a previsão ou imposição de penas restritivas de liberdade, por exemplo, em casos em que não haja dolo seria manifestamente inconstitucional. Silva (2007) cita como exemplos: intempestividade e/ou inadimplência no recolhimento de tributos.
Assim como na “adequação”, neste segundo elemento - “necessidade” - as sanções tributárias indiretas, morais ou políticas, também são rechaçadas, objetivando a defesa do exercício da livre iniciativa das atividades profissionais, pois entende-se que em sua atuação o Estado poderia utilizar meios menos gravosos, de forma até mais eficaz.
Por fim, o terceiro elemento seria a razoabilidade ou pertinência ou proporcionalidade em sentido estrito, justa medida ou conformidade, do alemão “Verhältnismässigkeit im engeren Sinne”.
A observância desse elemento determina um sopesamento entre as consequências, para o indivíduo, da intervenção a que estará sujeito e a defesa de outros direitos e garantias fundamentais que lhe são assegurados pelo ordenamento jurídico.
Nas palavras de Eduardo Botallo, citado por Silva (2007, p. 312) essa pertinência “persegue o necessário equilíbrio entre o interesse do Estado em atingir o fim desejado e as eventuais adversidades geradas para chegar a esta meta”.
Também em relação à “pertinência”, a constatação da ocorrência de desequilíbrio entre a atuação do Poder Público e a realização de outros direitos e garantias assegurados pela CR/88 revelará inconstitucionalidade, pois estes últimos não podem ter seu exercício inviabilizado em virtude de uma limitação imposta pelo próprio Estado.
Talvez aqui esteja uma das maiores dificuldades quanto à aplicabilidade do princípio da proporcionalidade, pois demandará do seu intérprete/aplicador um exercício de “sopesamento contínuo” entre princípios diferentes, e aqui haverá um espaço maior para a discricionariedade de cada agente.
Um exemplo comum seria o possível conflito que pode surgir entre a busca do atendimento do interesse público com a arrecadação de receitas indispensáveis ao custeio dos serviços e investimentos públicos em face do princípio da capacidade contributiva, que anuncia o dever de adequar a sanção que se revela exacerbada às reais “forças econômicas” do infrator.