Liberdade para viver
A primeira consideração sobre a distinção conceitual entre o PBF (Programa Bolsa Família) e a RBC (Renda Básica de Cidadania) diz respeito à relação entre “trabalho” e “tempo livre”. No caso do PBF, percebe-se, além da preocupação genuína com a erradicação da pobreza extrema, o desafio de “fomentar e apoiar os diferentes caminhos possíveis para melhoria da inserção da população mais pobre no mundo do trabalho” (CAMPELLO & MELLO, 2014). Conforme as normas do programa, ao assumir uma posição minimamente expressiva no mercado de trabalho, o indivíduo perde o direito ao benefício do PBF – o que nos conduz à conclusão de que o programa se torna desnecessário com a inserção dos beneficiários no mercado de trabalho (Cf. AGATTE & ANTUNES, 2014, p. 40; CAMPELLO & MELLO, 2014, p. 22; PAIVA et al, 2013, p. 25; CECHINNI, 2013, p. 373). No caso da RBC, uma das premissas centrais é a independência socioeconômica dos sujeitos em relação ao mercado, isto é, baseia-se na ausência de exigências de trabalho, tanto no que diz respeito à “estar trabalhando” ou “ter trabalhado” (p. ex. seguro-desemprego e aposentadoria) quanto “estar disposto à trabalhar” (p. ex. contratos de inserção).
O resultado, segundo o VAN PARIJS (2000), é que tal medida “dá poder de barganha ao mais fraco de uma maneira que uma renda garantida condicionada ao trabalho não dá” (p. 192). Em outras palavras: “a não-condicionalidade ao trabalho é um instrumento-chave para impedir que a não-condicionalidade à situação financeira leve à proliferação de empregos desagradáveis” (idem). Desse modo, uma parte importante do programa elaborado por Van Parijs (Cf. VAN PARIJS & VAN DER VEEN, 1988) diz respeito à tríade composta pelo aumento do tempo livre, pela melhora na qualidade do trabalho e pela qualidade do tempo livre, que, nos termos dos autores, significa "o grau em que as pessoas são capazes de realizar seus desejos em seu tempo livre, o qual está intimamente relacionado com o nível da produção (despojada de fatores externos)” (idem, p. 43). Nesse sentido, embora ligado à oferta de condições materiais básicas para a fruição de uma vida autônoma por parte dos beneficiários, o PBF, ao contrário da RBC, estabelece uma clara prioridade moral do trabalho sobre o tempo livre.
Deve estar claro que o conceito de trabalho aqui apresentado identifica-se com aquilo que GORZ (1997) denomina como “uma atividade desenvolvida tendo em vista a troca mercantil e que é necessariamente objeto de um cálculo contábil” (p. 180). Não se trata, portanto, de uma ideia genuína de trabalho como mediação entre o homem e a natureza (Cf. MARX, 2004), mas da sua forma específica modelada pelo modo capitalista de produção. Essa forma de trabalho, geralmente alienado, por vezes assume o sentido de obrigatório. Isso porque, conforme uma das teses centrais do materialismo histórico, o proletariado, embora possua (jurídica e moralmente) autonomia sobre sua força de trabalho, não possui de fato condições para decidir entre utilizá-la ou não. Afinal, desalojados dos meios de produção, os trabalhadores “apenas podem assegurar sua sobrevivência estabelecendo um contrato com um capitalista cuja posição de força lhe permite impor condições que supõem a subordinação do trabalhador” (COHEN, 1986, p. 77).
O diagnóstico elaborado por Marx, segundo o qual o capitalismo sofistica os mecanismos de coerção já existentes em outros modos de produção, verifica-se no fato de que na execução de seu ofício o trabalhador “mortifica sua physis e arruína o seu espírito” (MARX, 2004, p. 82). Afirma Marx:
o seu trabalho não é, portanto, voluntário, mas forçado, trabalho obrigatório […] sua estranheza evidencia-se aqui [de forma] tão pura que, tão logo inexista coerção física ou outra qualquer foge-se do trabalho como de uma peste. O trabalho externo, o trabalho no qual o homem se exterioriza, é um trabalho de auto-sacrifício, de mortificação (MARX, 2004, p. 83).
As consequências desse fenômeno, intrínseco à sociedades desigualmente distribuídas, evidenciam-se no empobrecimento da vida cotidiana. Por um lado, na atividade produtiva, onde funciona como engrenagem de um sistema aparentemente autônomo, o indivíduo é obrigado (pelas razões já mencionadas) a exercer uma tarefa que lhe rouba tempo de vida e raramente fornece condições para desfrutar de experiências de autorrealização. Por outro, como mostra MARCUSE (1968), essa rotina se alastra para fora do “expediente” diário. Segundo ele,
o controle básico do tempo de ócio é realizado pela própria duração do tempo de trabalho, pela rotina fatigante e mecânica do trabalho alienado, o que requer que o lazer seja um relaxamento passivo e uma recuperação de energias para o trabalho (…) não se pode deixar o indivíduo sozinho, entregue a si próprio (MARCUSE, 1968, p. 54)
Em suma, nessa conjuntura, o constrangimento do indivíduo em relação à utilização de sua força de trabalho e o modo como essa rotina coloniza sua vida cotidiana se configura como um importante mecanismo de controle social – cuja moralidade reivindica a centralidade da atividade laboral e da racionalidade econômica. No entanto, essa moralidade (seletiva) aplica-se, apenas, aos pobres – pois também estabelece uma separação radical entre aqueles que possuem tempo livre e os que não possuem. Como mostra COHEN (1986), historicamente esse tempo livre “foi acervo dos privilegiados” possibilitando que a cultura tenha prosperado “nos círculos da classe dominante” (p. 226). Por “tempo livre”, aqui, compreende-se as atividades dedicadas ao ócio, atividades que, conforme GORZ (1997), possuem uma racionalidade própria, pois “não são produtoras, mas consumidoras de tempo disponível; não pretendem ganhar tempo mas gastá-lo. É o tempo da festa, da exuberância, da atividade gratuita que não possui outro fim que não ela mesma” (p. 16).
Feita essa ressalva em relação ao modo como a necessidade da atividade produtiva orientada a fins econômicos, via de regra, contribui para a colonização da vida cotidiana e para a proliferação de empregos precários e desagradáveis, torna-se possível retornar à base argumentativa do PBF – segundo a qual a abordagem das capacidades (NUSSBAUM, 2007; SEN, 2000) é parte constitutiva. Resta claro que o PBF reivindica uma concepção de autonomia que leva em conta as condições materiais necessárias para sua realização (Cf. REGO & PINZANI, 2013) e, também por isso, assume compromissos com os mais pobres. Para HONNETH (2011),
Tomados conjuntamente e combinados com uma compreensão de autonomia como um conjunto adquirido de capacidades para conduzir a própria vida, esses compromissos sugerem que as sociedades liberais deveriam estar particularmente preocupadas em lidar com as vulnerabilidades dos indivíduos no que diz respeito ao desenvolvimento e à manutenção de sua autonomia (HONNETH, 2011, p. 82).
Para cumprir com esses compromissos, o PBF articula-se conceitualmente com uma nova vertente teórica segundo a qual a pobreza está diretamente relacionada à privação de capacidades básicas e não, necessariamente, como expressão de baixa renda (Cf. DIETERLEN, 2003), como mostra SEN:
o enfoque das capacidades se concentra na vida humana e não apenas em alguns objetos separados por conveniência, como renda ou bens que uma pessoa pode possuir, os quais se consideram com frequência, em especial na análise econômica, como os principais critérios do êxito humano. De fato, o enfoque propõe uma mudança de ênfase que passe da concentração nos meios de vida à concentração nas oportunidades reais de viver (SEN, 2012, p.264).
O grande mérito de Amartya Sen, como se percebe, é a proposta de alteração de critérios para diagnósticos em torno de experiências de injustiça. No entanto, situando-se na tradição liberal, o autor admite uma certa “neutralidade” de sua abordagem no que diz respeito a uma concepção específica de justiça, isto é, o foco da abordagem “é a informação sobre as vantagens individuais, julgadas do ponto de vista da oportunidade e não de um 'desenho' específico sobre a melhor organização da sociedade” (idem, p. 262). De qualquer forma, a métrica das capacidades adere a uma noção antropológica, cujas raízes estão em Aristóteles e Marx[1]. Em NUSSBAUM (2004), por exemplo, a ideia de capacidades humanas está baseada em um “funcionamento autenticamente humano no sentido descrito por Marx em seus Manuscritos de economia e filosofia de 1844” (p. 86). O referido “funcionamento”, em Marx, articula-se a um conceito filosófico de ser humano que se contrapõe à noção metafísica de natureza humana – mas apresenta, igualmente, traços normativos no que diz respeito à constituição de determinadas disposições potenciais comuns aos seres humanos (Cf. FABRES, 2015). De pose disso, a abordagem das capacidades toma “como ponto de partida as noções da dignidade humana e de uma vida merecedora de tal dignidade” (NUSSBAUM, 2007, p. 342).
Precisamente por isso uma objeção em relação ao PBF está no modo como a concepção de “capacidades humanas” está atrelada e orientada para as exigências do mercado num sentido mais amplo[2]. Assim, em que pese não haja dúvidas da importância de uma condição material mínima para o desenvolvimento da autonomia individual (o que é proporcionado pelo PBF), o estabelecimento do mercado laboral como horizonte normativo enfraquece a autonomia individual – pois pressupõe bem sucedida a inserção do indivíduo em uma complexa arquitetura de controle e subordinação. Em outras palavras, por meio de uma ajuda financeira, o PBF e a RBC procuram desenvolver as bases sociais da autonomia e do auto-respeito. Contudo, no caso do primeiro, a independência do mercado é o estágio intermediário, necessário, mas provisório, no sentido da “inserção da população mais pobre no mundo do trabalho”, enquanto, no segundo, a independência do mercado é fundamental para a não proliferação de empregos desagradáveis (VAN PARIJS, 2000, p. 192).
Se estamos de acordo com considerável parte da bibliografia mais recente que define a pobreza como privação de capacidades, deveríamos questionar o loquos mais propício para a promoção dessas capacidades. Pois, se por um lado, como mostra Marx, a realização plena das capacidades humanas possui como fundamento o trabalho livre e consciente, por outro, o trabalho alienado, longe de ser uma necessidade interior do indivíduo, acaba por instrumentalizar as capacidades humanas. A dependência obrigatória desse ambiente (muitas vezes desagradável) cujos potenciais emancipatórios são escassos, ao que tudo indica, fragiliza as bases sociais do auto-respeito. Desse modo, ao enfrentar a necessidade de trabalhar, contrapondo a ela um subsídio incondicional, a RBC reivindica simultaneamente a expansão do tempo livre e, com isso, promove o aumento da autonomia individual – convertida, nesse caso, em possibilidades de eleger atividades livres.
Ainda que não possa ser concebido como um ambiente autônomo e impenetrável pela racionalidade econômica e pela reificação, o tempo livre possibilita o cultivo de uma atividade produtiva alheia a recompensas externas e desprendida da satisfação imediata das necessidades. Assim, essa liberação, que joga peso importante na desmercantilização da vida cotidiana, é o fio condutor do enfrentamento entre o “reino da necessidade” e o “reino da liberdade” - nos termos de Marx. Como afirma HELLER (1998):
A verdadeira riqueza da sociedade se realiza através da livre manifestação dos indivíduos sociais. Através de sua atividade e de seus sistemas de necessidades qualitativamente múltiplas. A verdadeira riqueza do homem e da sociedade não se constitui no tempo de trabalho, mas no tempo livre (HELLER, 1998, p. 126)
Se Amartya Sen e Martha Nussbaum estão corretos sobre “o dever incondicionado das instituições públicas de garantir as capabilities básicas necessárias para atingir o nível mínimo de vida digna” (in REGO & PINZANI, 2013, p. 219), a redistribuição social do tempo livre e a valorização do trabalho criativo são dois aspectos que devem ser levados em conta. Isso porque uma breve análise empírica seria suficiente para demonstrar que o modelo organizacional do mercado laboral, principalmente nos ofícios cujas remunerações são menores, carrega consigo o traço da humilhação (o que se traduz em ameaça de desemprego, desigualdade salarial entre homens, mulheres, brancos e negros, assédio moral e sexual, doenças derivadas do estresse, sobrecarga de trabalho, cerceamento de opinião etc). Essas humilhações, por sua vez,
põem em risco a autoestima dos indivíduos ao fazerem com que seja muito mais difícil (e, em casos limites, mesmo impossível) pensar a si mesmo como digno de valor. Os sentimentos de vergonha e de ausência de valor resultantes ameaçam a percepção de que as próprias realizações possuem algum sentido (HONNETH, 2011, p. 88)
A autocompreensão individual de sua dignidade, como mostra Axel Honneth, depende, em grande parte, do ambiente social em que o indivíduo está inserido e, por isso, resta claro que o desenvolvimento autônomo das capacidades humanas necessita de um cotidiano gerador de satisfações. Nesse sentido, percebe-se que o Estado, por meio do PBF, não assume para si apenas a responsabilidade de extinguir o intolerável (seres humanos que não possuem o mínimo para existir fisicamente), mas também adere a uma postura política que considera elementar para a democracia que as pessoas possuam “possibilidades de escolha” - não apenas eleitorais, mas de vida. A existência de opções, como se vê, valoriza profundamente a existência e a auto-estima dessas pessoas[3] – o que se traduz numa ampliação concreta da noção de liberdade.
Em contrapartida, como já foi discutido, é fundamental para esse processo de maximização da liberdade real que as pessoas tenham o direito de escolher, de forma progressiva, todos os aspectos da vida social. E, para isso, é necessária uma renda básica e incondicional, que possibilite, por um lado, a libertação das necessidades elementares (cuja satisfação é o motivo que conduz ao mercado de trabalho) e, por outro, a ampliação do tempo livre (condição preliminar para o desenvolvimento autônomo do indivíduo).
Referências bibliográficas
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CECCHINI, S. “Transferências condicionadas na América Latina e Caribe: da inovação à consolidação”. In: Campello, T.; NERI, M. C. (Eds.). Programa Bolsa Família: uma década de inclusão e cidadania. Brasília: Ipea, 2013.
COHEN, G.A. La teoría de la Historia en Karl Marx: una defensa. Siglo XXI. Madrid, 1986.
DIETERLEN, Paulette. La pobreza: un estudio filosófico. Fondo De Cultura Economica, 2003.
FABRES, Ricardo. Ética e Emancipação no século XXI: o jovem Marx e a dialética do florescimento humano. Revista Sapere Audê. n. 11, p. 113-134: 2015.
GORZ, André. Metamorfosis del Trabajo. Editorial Sistema, 1997.
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HONNETH, Axel; ANDERSON, Joel. Autonomia, vulnerabilidade, reconhecimento e justiça. Cadernos de Filosofia Alemã: Crítica e Modernidade, n. 17, p. 81-112, 2011.
MARCUSE, Herbert. Eros e civilização: uma crítica filosófica ao pensamento de Freud. Círculo do Livro, 1968.
MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. Boitempo, 2004.
NUSSBAUM, Martha. Las fronteras de la justicia: consideraciones sobre la exclusión, Editora Paidos, Buenos Aires, 2004.
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REGO, Walquiria; PINZANI, Alessandro. Vozes do Bolsa Família: autonomia, dinheiro e cidadania. Editora UNESP, 2013.
SEN, Amartya. La idea de la justicia. Taurus, 2012.
______. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
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VAN PARIJS, Philippe. Renda básica: renda mínima garantida para o século XXI?. Estudos Avançados, v. 14, n. 40, p. 179-210, 2000.
______; VAN DER VEEN, Robert J. Una vía capitalista al comunismo. Zona abierta, n. 46, p. 19-46, 1988.
Notas
[1] “As raízes desse enfoque [das capacidades] estão em Adam Smith e Karl Marx, remontando mesmo a Aristóteles (...) O enfoque de Marx relaciona-se estreitamente à análise aristotélica (e ao que parece foi diretamente influenciado por ela). Com efeito, uma parte importante do programa marxista de reformulação dos fundamentos da economia política claramente diz respeito à concepção do sucesso da vida humana em termos de cumprimento das atividades humanas necessárias” (SEN, 1993, s/p)
[2] Em outro contexto, NUSSBAUM (2010) alerta para a distinção entre o que ela denomina “educação para a renda” e a “educação para a democracia” (idem, p. 33), salientando que, via de regra, o processo educativo centrado no desenvolvimento de capacidades ainda está vinculado ao crescimento econômico e em aptidões básicas, como a alfabetização e a matemática enquanto deveria estar centrada no compromisso dos indivíduos com a democracia e com a reflexão crítica sobre suas próprias vidas (idem, p. 47). [Sobre isso, Cf. REGO & PINZANI (2013), pg. 85-147.