O sistema processual acusatório caracteriza-se, principalmente, pela atribuição das funções de acusar, defender e julgar serem de incumbência de personagens distintos, diferindo-se, assim, do sistema inquisitório, em que há concentração de todas as funções na figura do juiz, e do sistema misto, onde a investigação e a instrução são inquisitórias e julgamento é acusatório. Todo o processo deve ser regido pelos princípios do contraditório, ampla defesa e publicidade, em respeito à Constituição Federal que prima pela manutenção do Estado Constitucional e Democrático de Direito.
O sistema acusatório é o adotado pela processualística penal brasileira, e dentre as suas características mais importantes está a presença do Princípio da Jurisdicionalidade, segundo o qual ninguém pode ser punido ou ter reconhecida sua culpa sem um prévio processo. Além de garantir o respeito à garantia do Juiz Natural, a aplicação deste princípio impossibilita a ocorrência da acusação privada, visto que é permitido apenas ao juiz exercer o poder jurisdicional. O juiz deve afigurar-se como guardião da Constituição Federal e garantidor dos direitos fundamentais do réu.
Outro caractere imprescindível na base em que se fundamenta o sistema acusatório é a separação entre as funções de acusar, defender e julgar. Cada um destes papéis deve ser desempenhado por um personagem distinto no processo, preservando-se ao máximo a isenção e a imparcialidade do juiz. Assim, é necessário que o juiz mantenha-se como espectador no processo, mantendo-se inerte, visto que a gestão da prova é incumbência das partes (acusação e defesa) e a ele caberá apenas analisar e julgar o caso conforme seu entendimento, fundamentado na lei.
O princípio que rege o processo penal garantista é o da Presunção de inocência, e, por imposição constitucional, é um dever de tratamento do sistema em relação ao réu. Este princípio preconiza que o reconhecimento da prática de um crime implica a existência de uma sentença condenatória irrecorrível (art. 5º, inciso LVII, CF). Os professores Nestor Távora e Rosmar Rodrigues Alencar encaram este princípio como sinônimo de presunção de não-culpabilidade[1], entendimento ao qual aderimos. Quanto mais se respeita este princípio, mais se pode afirmar garantista o sistema processual que se analisa. Dessa forma, respeitando a presunção de inocência, o juiz não pode interferir na produção de prova a fim de condenar o acusado. Diante da insuficiência de provas para a condenação, incumbe ao julgador tão somente a atribuição de absolvê-lo.
Não se pode esquecer a importância dos Princípios do Contraditório e da Ampla Defesa, garantias constitucionais do acusado (art. 5º, inciso LV, CF), segundo as quais este deve gozar de ampla possibilidade de defesa. É obrigatória a atuação de um defensor técnico em favor do acusado e ambas as partes podem produzir, em igualdade de condições, as provas necessárias ao alcance das suas aspirações no processo.
Ainda em sede de análise de princípios do sistema acusatório, é imprescindível lembrar o Princípio da Motivação das Decisões. A Constituição Federal, em seu art. 93, inciso IX, versa que o juiz é livre para decidir, desde que o faça de forma motivada, sob pena de nulidade. A vigência do sistema do livre convencimento motivado é uma garantia fundamental da qual provém o embasamento indispensável para a segurança jurídica do caso julgado.
Agora que expusemos os princípios sob os quais se sustenta o sistema acusatório, podemos entender quais comportamentos do julgador podem, de alguma forma, ferir a sua essência. No art. 156, inciso I, do Código de Processo Penal, por exemplo, vemos a atuação de um juiz que ordena a produção de prova, inclusive durante o inquérito policial, exercendo nitidamente função de acusador ao fazer gestão da prova no processo. Deste modo, vemos ser desrespeitada a separação das funções de acusar, defender e julgar, além de ofensa ao princípio da presunção de inocência, já que não havendo provas suficientes para condenar o réu, deve o juiz absolvê-lo, em virtude da garantia do in dúbio pro reo, e não interferir na função que cabe às partes, causando desequilíbrio na relação jurídico-processual. Com este comportamento por parte do julgador, remetemo-nos a práticas de regimes políticos autoritários, visto que este diploma legal é datado de 1941, época em que o Brasil encontrava-se mergulhado em uma Ditadura alinhada aos Regimes Fascista e Nazista, que imperavam na Europa.
Podemos visualizar outras situações em que o juiz age como gestor da prova no processo. O art. 242 do CPP, por exemplo, pronuncia que a busca poderá ser determinada ex officio pelo juiz, mais uma vez, age o julgador como acusador e desrespeita o equilíbrio entre as partes no processo. Já o art. 385 do mesmo Estatuto, diz-nos que mesmo o Ministério Público opinando pela absolvição do acusado, o juiz poderá proferir sentença condenatória e até mesmo reconhecer agravantes que não estejam presentes na peça acusatória. Flagrante é o desrespeito ao axioma da teoria garantista de Luigi Ferrajoli nullum judicium sine accusatione, segundo o qual não há processo sem acusação. Aqui, vemos a conduta do julgador desobedecer ao princípio da imparcialidade, elemento imprescindível para a consecução da verdadeira justiça. Outros exemplos podem ser visualizados nos seguintes dispositivos: quando o juiz requisita a instauração de inquérito policial (art. 5º, II do CPP); quando ordena remessa dos autos ao Procurador Geral de Justiça (quando não concordar com o arquivamento proposto pelo Promotor de Justiça – art. 28 do CPP); quando promove a emendatio libelli ou mutatio libelli (arts. 383 e 384 do CPP); quando modifica classificação da acusação na decisão de pronúncia (art. 408, § 4º do CPP); quando recorre de ofício nas hipóteses de concessão de habeas corpus (art. 574, I do CPP), de absolvição sumária (art. 574, II e 411 do CPP) ou de concessão de reabilitação (art. 746 do CPP).
Após toda a exposição, opinamos pelo entendimento de que os comportamentos acima analisados onde o julgador atue com caracteres de acusação desrespeita os princípios do sistema acusatório, causando desequilíbrio entre as partes do processo e deixando de exercer sua função de garantidor dos direitos fundamentais do acusado. Faz-se necessária uma reforma legislativa de forma que haja alinhamento entre o Código de Processo Penal e a Constituição Federal, fazendo do Garantismo uma realidade prática na processualística penal brasileira.
REFERÊNCIAS
TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. 4ª edição. Salvador: Ed. Jus Podivm, 2010.
PINTO, Antonio Luiz de Toledo (org.); WINDT, Márcia Cristina Vaz dos Santos (org.); CÉSPEDES, Lívia (org.). Vade Mecum compacto. 3ª edição. São Paulo: Saraiva, 2010.
LOPES JUNIOR, Aury. Fundamento da Existência do Processo Penal: Instrumentalidade Constitucional. Material da 2ª aula da Disciplina Teoria do Garantismo Penal, ministrada no Curso de Especialização TeleVirtual em Ciências Penais – Universidade Anhanguera-Uniderp|REDE LFG.
Nota
[1] TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. 4ª edição. Salvador: Ed. Jus Podivm, 2010, p. 73.