1. Introdução
Como sabido, a Lei 12.654/12 trata da identificação genética em sede de identificação criminal (alterando a Lei 12.037/09) e em sede de execução criminal (alterando a LEP), nos casos especificamente previstos.
Em sede de execução penal, a identificação genética vem estabelecida na LEP, que em seu art. 9º-A rege que serão submetidos, obrigatoriamente, à identificação do perfil genético, mediante extração de DNA, por técnica adequada e indolor, os condenados por crimes praticados, dolosamente, com violência de natureza grave contra pessoa, ou por qualquer dos crimes previstos na Lei dos Crimes Hediondos. Objetiva a legislação, portanto, a coleta de DNA de sentenciados que cometeram crimes graves, para posterior alimentação de banco de dados sigiloso de identificação de perfil genético, visando subsidiar futuras investigações criminais.
Art. 9º-A. Os condenados por crime praticado, dolosamente, com violência de natureza grave contra pessoa, ou por qualquer dos crimes previstos no art. 1º da Lei no 8.072, de 25 de julho de 1990, serão submetidos, obrigatoriamente, à identificação do perfil genético, mediante extração de DNA - ácido desoxirribonucleico, por técnica adequada e indolor. §1º A identificação do perfil genético será armazenada em banco de dados sigiloso, conforme regulamento a ser expedido pelo Poder Executivo. §2º A autoridade policial, federal ou estadual, poderá requerer ao juiz competente, no caso de inquérito instaurado, o acesso ao banco de dados de identificação de perfil genético.
Não se trata de inovação criada pelo legislador brasileiro, visto que largamente aplicada, de longa data, em vários países. A identificação mediante extração e análise de DNA foi criada e desenvolvida pelo FBI. A tecnologia necessária à implantação e ao bom desenvolvimento da técnica foi cedida pelo governo dos EUA a diversos países, dentre eles o Brasil[1].
Não obstante a importância do aludido regramento legal, interpretações equivocadas acerca do dispositivo constante no art. 9º-A da LEP tem levado a identificação genética ao mais completo desuso e ineficiência, o que não se pode compactuar.
2. Da interpretação conforme a Constituição. Da interpretação extensiva em matéria processual penal
Conforme rol previsto na legislação em referência, bem interpretado à luz da Constituição Federal, devem se submeter à identificação genética todos os presos que foram condenados: a) por crime doloso com violência grave contra pessoa; b) por crime hediondo[2] e equiparado[3].
Primeiramente, visualiza-se que a lei ao tratar da violência grave e dolosa contra pessoa não se refere ao resultado, mas sim à conduta, o que se extrai da expressão “praticado, dolosamente, com violência de natureza grave contra pessoa”. Se o legislador quisesse se referir ao resultado, bastaria trazer a expressão “que gerou” ou “que resultou[4]”.
Lado outro, observa-se que o art. 9º-A da LEP não se refere expressamente aos crimes hediondos equiparados, previstos no art. 2º da Lei 8072/90 e art. 5º XLIII da CF, quais sejam, tráfico de entorpecentes, tortura e terrorismo. Não obstante, justifica-se a identificação genética também aos crimes hediondos equiparados, consoante uma interpretação extensiva do art. 9º-A da LEP.
Primeiramente observa se tratar de norma processual penal, eis que não versa sobre o direito de punir do Estado. Aliás, ao tratar da identificação genética de pessoas já condenadas, não se pode visualizar qualquer conteúdo penal na referida norma, de cunho, portanto, inegavelmente processual.
Tratando-se de matéria processual penal, aplica-se o art. 3º do CPP[5] que admite a interpretação extensiva. A interpretação extensiva situa-se no processo de hermenêutica jurídica, diante da necessidade de solução do caso concreto submetido à jurisdição. Considera-se interpretação extensiva aquela em que seja necessária a ampliação do sentido da lei[6]. Na interpretação extensiva, o texto da lei ficou aquém do que desejava. Necessita-se ampliar o seu alcance, para que assim possamos atingir o seu significado[7].
Exatamente o que acontece in casu. A lei disse menos que queria, pois não faz sentido determinar a coleta de material genético daqueles que cometeram crimes hediondos contidos no art. 1º da Lei 8072/90, deixando de coletar daqueles que cometeram crimes hediondos equiparados (art. 2º da Lei 8072/90), tais como tráfico de drogas, terrorismo e tortura (tão graves quantos os contidos no art. 1º). Se o objetivo da lei é realizar a identificação genética dos crimes mais graves do nosso ordenamento, não pode ficar de fora os crimes de tráfico de entorpecentes, tortura e terrorismo, certamente ilícitos penais dos mais hediondos que se possa imaginar.
Lado outro, a equiparação hedionda do tráfico, tortura e terrorismo está sediada constitucionalmente (art. 5º XLIII da CF[8]), merecendo, portanto, o art. 9º-A da LEP uma interpretação conforme a Constituição. A Carta Magna, de antemão, elencou três crimes hediondos (tráfico, tortura e terrorismo), ante sua inegável gravidade, deixando à discricionariedade do legislador infraconstitucional apenas a fixação de outros crimes hediondos. Desta forma, não poderia o legislador infraconstitucional, ao tratar da identificação genética, olvidar os crimes de tráfico, tortura e terrorismo, estabelecendo a obrigatoriedade da extração de DNA somente a outros crimes hediondos.
Não se pode interpretar a legislação infraconstitucional de outro modo. Como sabido, o constitucionalismo contemporâneo é chamado de neoconstitucionalismo. Este apresenta algumas características: a) a normatividade das regras e dos princípios; b) a superioridade das normas constitucionais; c) a centralidade da Constituição, assumindo o papel de norma centralizadora do sistema[9]. Ante a superioridade das normas constitucionais, bem como o papel da Constituição de norma central do sistema, toda a legislação infraconstitucional deve ser obrigatoriamente interpretada à luz da Constituição, e não o contrário.
Lado outro, o art. 5º XLIII da CF trata do que o constitucionalismo moderno chama de mandato constitucional de criminalização. A Constituição de 1988 contém um significativo elenco de normas que, em princípio, não outorgam direitos, mas que, antes, determinam a criminalização de condutas. Em todas essas normas é possível identificar um mandato de criminalização expresso, tendo em vista os bens e valores envolvidos. Exatamente o que acontece no inciso em referência. Portanto, não poderia o legislador infraconstitucional olvidar a equiparação constitucional.
Em outras palavras, os crimes de tráfico, tortura e terrorismo são hediondos por força da própria Constituição. Se o legislador infraconstitucional estabelece a obrigatoriedade de identificação genética aos crimes hediondos, estão subsumidos também os constitucionalmente hediondos: tráfico, tortura e terrorismo.
Assim, o art. 9º-A da LEP merece uma interpretação coerente com a CF. A única possível, portanto, é entender que a identificação genética abrange também os crimes equiparados constitucionalmente a hediondos: tráfico de drogas, tortura e terrorismo.
3. Da obrigatoriedade da identificação genética. Da impossibilidade de recusa do sentenciado.
Não obstante entendimentos contrários[10], não poderão os sentenciados se recusarem a se submeterem a tal coleta, sob a alegação de não serem obrigados a produzirem provas contra si mesmos.
Como sabido, a garantia da não autoincriminação consagra uma autêntica imunidade natural do ser humano: não se autoacusar[11]. Tal princípio, decorre de expressas garantias constitucionais, como o direito ao silêncio (art. 5º LXIII da CF)[12], a presunção de inocência (art. 5º LVII da CF), além da ampla defesa (art. 5º LV da CF).
No presente caso, bem analisando a identificação genética e a principiologia constitucional, observa-se que não há violação ao princípio da não autoincriminação, tampouco à presunção de inocência.
A identificação genética, realizada através de coleta de DNA mediante técnica adequada (swab oral), método pouco invasivo e indolor[13], como recomenda a lei, possui guarida constitucional (art. 5º LVIII CF[14]), sendo a identificação criminal um direito do Estado voltado à promoção da segurança pública. Tal medida visa criar no Brasil, como em outros países, um banco de dados (tal qual já ocorre com as digitais) de DNA (técnica muito mais moderna e eficaz).
Ademais, na identificação genética, a coleta será realizada em presos já condenados, servindo, precipuamente, o DNA coletado e armazenado, como elemento probatório para futuros crimes, seja para condená-los ou mesmo inocentá-los. Afinal, ninguém pode se autoacusar de um crime futuro, que ainda não cometeu.
Nas palavras do professor Guilherme de Souza Nucci, não há ofensa ao princípio constitucional de que ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo, tampouco ao princípio da presunção de inocência, pois a coleta é feita antes da prática do crime apurado:
Não se está coletando o material genético com o fim de comparar com material já colhido, visando a incriminação do acusado. Identifica-se o sentenciado, mediante extração de DNA, mantendo em banco sigiloso, para que, no futuro, ocorrendo algum delito, possa o Estado-investigação confrontar com os elementos colhidos na cena do crime. Ninguém pode se acusar pelo delito que ainda não cometeu[15].
Admito, inclusive, que o material coletado (DNA) seja utilizado não só para a investigação de crimes futuros, mas também para subsidiar a investigação de crimes pretéritos, ocorridos antes da coleta. Nesse caso específico, é verdade que a identificação genética resvalaria na garantia da não autoincrimação ou da presunção de inocência, pois seria utilizada na apuração de crimes passados. Mas com base no princípio da proporcionalidade, chegaríamos ao mesmo resultado: a constitucionalidade da obrigatoriedade da identificação genética, bem como a constitucionalidade da utilização da prova para crimes ocorridos anteriormente.
É verdade, e disso não se duvida, que a Constituição consagra o princípio da presunção de inocência, que possui implicações não só no campo do ônus da prova (o ônus da prova é do autor, ensejando a regra do in dubio pro reo), mas também para impedir restrições antecipadas aos direitos dos cidadãos (salvo a concessão de cautelares em caráter excepcional), impedindo, ainda, que alguém seja obrigado a produzir prova contra si mesmo (direito de não-autoincriminação). Todavia, nos últimos anos, nenhum princípio foi levado tão ao extremo como o da presunção de inocência, que em razão de uma exegese exacerbada, acabou transformando tal princípio em um valor absoluto.
Na mesma esteira, a garantia da não-autoincriminação também tem sido indevidamente superdimensionada nos últimos tempos. Basta observar que parcela da doutrina brasileira[16] entende que a garantia da não-autoincriminação permite que o acusado se recuse a cooperar com a produção da prova, seja produzindo manifestações intelectuais ou de conteúdo testemunhal (direito ao silêncio), seja praticando conduta ativa (tal como o fornecimento de padrões gráficos para exame grafotécnico, de sopro em etilômetro), seja através de conduta meramente passiva quando invasiva (como o fornecimento de sangue ou material genético para exame de DNA ou teste de alcoolemia).
Todavia, tal superdimensionamento não encontra paralelo nos ordenamentos jurídicos de outros países, também não encontrando guarida no ordenamento brasileiro. A garantia da não-autoincriminação não é absoluta, eis que nenhum direito fundamental é absoluto[17], podendo sofrer restrição (princípio da proporcionalidade) quando em conflito com outros valores constitucionais de especial envergadura (segurança pública, persecução criminal e busca da verdade real, além dos valores constitucionais violados em razão do crime praticado) que no caso concreto venham a sobrepujar[18]. Não há perspectiva alguma de um processo penal eficiente caso qualquer direito ou garantia seja absolutizado, em detrimento de outros direitos fundamentais. Ao contrário, no nível de princípios, a fisiologia é a colisão, que implica na necessária ponderação.
De antemão observa-se que a garantia da não-autoincriminação não se restringe ao direito ao silêncio, mas abrange também o direito de não cooperar com a produção da prova. Todavia, sob pena de incidirmos no equívoco acima aludido (superdimensionamento do instituto), é preciso bem compreender a extensão da garantia da não-autoincriminação, identificando, inclusive, seu núcleo.
Observa-se que o estudo da garantia contra a autoincriminação, longe de visar enfraquecê-la, pretende intensificar sua eficiência normativa, reafirmando sua validade na perspectiva funcionalista. Isso porque, a um só tempo, busca-se colaborar na fixação de um conteúdo essencial, que não pode ser restringido, e porque visa viabilizar a definição de limites que a tornam compatível com os interesses comunitários, conferindo-lhe legitimidade social e política[19].
Conforme o primoroso estudo de Wagner Marteleto Filho, a garantia da não-autoincriminação possui um núcleo essencial que não pode ser relativizado, qual seja: o acusado não pode ser compelido a prestar declarações por ocasião de interrogatórios formais, atuando como testemunha contra si mesmo (direito ao silêncio); não pode, outrossim, ser constrangido a praticar conduta ativa que introduza informação ao processo, como participar da reconstituição do crime, como fornecer padrão vocal ou gráfico para exames, soprar no etilômetro, etc. Mas a garantia da não-autoincriminação possui um espectro maior (proteção prima facie), que à luz da proporcionalidade, pode ser relativizado. Portanto, a garantia ainda protege o acusado, prima facie, contra a autoincriminação inconsciente/involuntária e lhe outorga o direito de não contribuir, ainda que passivamente, com a produção da prova. Repita-se, tal garantia “estendida” (que não integra seu núcleo essencial), pode ser relativizada, com base no princípio da proporcionalidade. Primeiramente, tem-se que o acusado pode ser constrangido a cooperar passivamente com a produção da prova, como se verifica nas hipóteses de buscas, inspeções, registros, reconhecimentos pessoais, fornecimento de impressões digitais e intervenções corporais coercitivas, as últimas destinadas a colher material biológico para a realização de perícias, notadamente para exames de DNA ou testes de alcoolemia. Além disso, o acusado pode ser induzido a uma autoincriminação inconsciente ou involuntária, através do emprego dos denominados meios enganosos, a saber, interceptações telefônicas, gravações ambientais e homens de confiança (agentes infiltrados).
Conforme o estudo mencionado, a garantia da não autoincriminação possui um núcleo, que não pode ser relativizado: direito ao silêncio e o direito de não contribuir ativamente para a produção da prova. Todavia, a garantia da não autoincriminação possui um alcance maior, além do seu núcleo, que por sua vez pode ser relativizado à luz do princípio da proporcionalidade: direito de não contribuir inconscientemente ou passivamente (como é o caso do exame de DNA) para a produção da prova.
A coleta de material genético para a realização de exame de DNA restringe a posição prima facie, outorgada pelo privilege, de não cooperação. Contudo, tal intervenção pode se apresentar legítima sob determinadas condições, caso a medida se apresente necessária, idônea e adequada para o esclarecimento de um delito grave, seja no sentido de isentar o acusado de responsabilidade penal, seja no sentido de confirmar sua culpabilidade[20].
Prossegue o estudo de Wagner Marteleto Filho no sentido de que toda e qualquer restrição ao direito fundamental (como é o caso da garantia de não autoincriminação), em seu plano de proteção prima facie (além do seu núcleo intangível), só poderá se efetivar com estrita observância dos requisitos estabelecidos em lei, mediante autorização judicial (pelo menos em regra, excepcionadas as hipóteses de urgência, a ponto de inviabilizar a prova), e com respeito ao princípio da proporcionalidade (e seus subprincípios: idoneidade, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito). O atendimento ao subprincípio da idoneidade estará presente com a existência de indícios suficientes da prática criminosa. O atendimento ao subprincípios da necessidade e proporcionalidade em sentido estrito estarão satisfeitos com a gravidade da infração e a indispensabilidade da medida.
Em outras palavras, o primoroso estudo acima citado, após identificar o núcleo intangível da garantia da não autoincriminação (que não pode ser relativizado), passa a estudar o alcance do princípio para além do seu núcleo, que por sua vez pode ser relativizado à luz do princípio da proporcionalidade, quando outros valores constitucionais também se mostrarem presentes. Afinal, no conflito entre valores constitucionais, cabe ao intérprete fazer o uso da técnica da ponderação, instrumentalizada a partir do manuseio do postulado da proporcionalidade[21], a fim de operar concessões recíprocas, tanto quanto se faça necessário, entre os enunciados normativos em jogo, resguardado, sempre, o núcleo essencial de cada direto fundamental[22], que não pode ser relativizado, chamado, assim, pela doutrina, de limite dos limites.
In casu, a lei é expressa em tratar da obrigatoriedade de identificação genética, conforme art. 9º-A da LEP. Em outras palavras, trata-se de obrigatoriedade legal. A lei, ao estabelecer tal obrigatoriedade, sopesou todos os valores em conflito (direitos dos sentenciados que cometeram crimes graves, de um lado, e segurança pública, ordem pública, persecução criminal e busca da verdade real, de outro) e fez preponderar a importância e necessidade em se criar um banco de dados de perfil genético, tal como ocorre em inúmeros países. A ponderação, portanto, foi feita pelo próprio legislador, que aplicou o princípio da proporcionalidade, restringindo a garantia da não autoincriminação, fazendo sobrepujar outros valores constitucionais, preservando, todavia, o núcleo da garantia.
Lado outro, todos os requisitos para a relativização da garantia da não autoincriminação estão presentes, como visto acima. Há lei que trata do tema (art. 9º-A da LEP). O acesso ao banco de dados depende de autorização judicial (art. 9º-A § 2º da LEP), que por sua vez somente autorizará o acesso caso os subprincípios da proporcionalidade estejam presentes: idoneidade (indícios suficientes da prática criminosa); necessidade (gravidade da infração) e proporcionalidade em sentido estrito (indispensabilidade da medida).
Não se diga que o princípio da proporcionalidade somente possui aplicação em favor do réu. Consoante autorizada doutrina, pode e deve ser utilizado, a depender do caso concreto, mesmo em desfavor do réu. Assim, não se cuida de invocar o princípio em favor do acusado ou da acusação, mas de verificar se, no caso concreto, a restrição é adequada, necessária e se justifica em face de valor maior a ser protegido[23].
4. Do princípio da proteção suficiente. Corolário do princípio da proporcionalidade. Conclusão.
Ainda invocando o princípio da proporcionalidade, à luz do princípio da proteção suficiente (ou proibição da insuficiência), o resultado seria exatamente o mesmo: impossibilidade de recusa da identificação genética pelos sentenciados que cometeram crimes graves, bem como a constitucionalidade da utilização da prova.
Com base no princípio da proteção suficiente (ou proibição da insuficiência), não pode o legislador, em matéria processual penal, agir de forma insuficiente, deficitária, a ponto de enfraquecer a persecução penal, e, consequentemente, desprotegendo os bens jurídicos tutelados pelo sistema penal.
Como sabido, o princípio da proporcionalidade (na sua dupla acepção: proibição do excesso e proibição da insuficiência) possibilita a ponderação das circunstâncias do caso concreto para a obtenção do resultado mais justo e coerente com o sistema jurídico-constitucional.
A vítima possui direitos fundamentais, violados em razão da prática criminosa (vida, integridade física, dignidade sexual, patrimônio, etc.), que devem, portanto, também ser tutelados pelo direito penal e processual penal. Lado outro, quando a sociedade não é a própria vítima do crime, inegavelmente sofre violação aos seus direitos em razão da prática criminosa (a ordem pública, a paz social, a segurança geral, etc.), que também devem ser defendidos pelo sistema penal e processual penal. Por isso, não se pode visualizar o sistema penal e processual penal tão somente como um aparato próprio à salvaguarda de direitos do réu. No crime, a vítima e a sociedade também tiveram direitos violados, que merecem tutela eficiente e adequada.
Em outras palavras, ao se levar ao extremo o garantismo, observamos um enfraquecimento do sistema penal e processual penal, e, consequentemente, dos aparatos estatais atuantes na persecução criminal, atenuando, por conseguinte, o poder-dever estatal de punir criminosos, de desmantelar grandes organizações criminosas, de coibir graves crimes, enfim, mitigando a possibilidade de transformar a realidade social em prol da paz, segurança e do bem comum, exatamente o que se espera do sistema judicial e em especial do sistema judicial-penal.
Cumpre sinalar que a crise de efetividade que atinge os direitos sociais, diretamente vinculada à exclusão social e falta de capacidade por parte dos Estados em atender as demandas nesta esfera, acaba contribuindo como elemento impulsionador e como agravante da crise dos demais direitos, do que dão conta – e bastariam tais exemplos para comprovar a assertiva – os crescentes níveis de violência social, acarretando um incremento assustador dos atos de agressão a bens fundamentais (como tais assegurados pelo direito positivo), como é o caso da vida, integridade física, liberdade sexual, patrimônio, apenas para citar as hipóteses onde se registram maior número de violações, isto sem falar nas violações de bens fundamentais de caráter transindividual como é o caso do meio ambiente, o patrimônio histórico, artístico, cultural, tudo a ensejar uma constante releitura do papel do Estado democrático de Direito e das suas instituições, também no tocante às respostas para a criminalidade num mundo em constante transformação[24].
O que se propõe é uma nova perspectiva, que pode ser chamada de processo penal funcional-garantista. A norma processual penal não está unicamente direcionada às limitações e garantias atribuídas ao acusado, mas será estruturada de modo que não se torne obstáculo aos objetivos de política criminal de bons resultados[25]. Em outras palavras, a eficiência na atuação do jus puniendi pressupõe um processo penal garantista e, a um só tempo, funcional, no qual os direitos fundamentais do acusado são respeitados e os meios de prova sejam idôneos para o esclarecimento dos fatos.
Isto posto, à guisa de conclusão, a aplicação da Lei 12654/12, que alterou a LEP (art. 9º-A), merece uma interpretação conforme a Constituição e coerente com o princípio da proporcionalidade, notadamente à luz do princípio da proteção suficiente. Por isso, acaso admitido que o sentenciado possa se negar a fornecer seu material genético – DNA, mediante técnica adequada e indolor, ou acaso admitida a imprestabilidade da prova produzida com base na comparação desse material coletado, a Lei 12654/12 seria absolutamente ineficaz, ficando sua implementação ao livre alvedrio de sentenciados por crimes graves. Em outras palavras, a lei seria natimorta.
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