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Um sentido jurídico para o antigo regime (ancien régime)

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Resumo:


  • A expressão "Antigo Regime" refere-se a um sistema político, jurídico e social que predominou na Europa entre os séculos XVII e XIX, caracterizado pela não separação entre Estado e sociedade civil e pelo poder centralizado na figura do monarca.

  • Elementos do Antigo Regime incluem a valorização de fenômenos grupais sobre os direitos individuais, a distribuição do poder entre diversos corpos sociais com autonomia política e jurídica, e a ausência de uma clara distinção entre as esferas pública e privada.

  • O uso da expressão "Antigo Regime" para analisar a realidade colonial brasileira é controverso, com argumentos a favor de sua aplicabilidade devido à estrutura de poder e governança da época, bem como críticas que apontam para as especificidades da colônia, como a ausência de feudalismo e a presença marcante da escravidão.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para finalizar, vale ressaltar que o ideário do Antigo Regime não desaparece de súbito da cultura portuguesa e brasileira no início do século XIX. Mesmo os revolucionários franceses, que tanto criticavam o Antigo Regime, muitas vezes se utilizavam de seus elementos para se justificar, (...) “como quando Portalis apela para a eqüidade, ou seja, a um dos valores que caracterizavam o Antigo Regime” (GROSSI, 2004, p.119). Isso demonstra que, apesar das transformações, ainda existe muito de Antigo Regime circulando na sociedade.

Entretanto, aos saudosistas, também vale o alerta de que a cultura não é estática. E que tentar encontrar semelhanças entre nosso tempo e o passado não torna o presente um continuum do que aconteceu. As coisas mudam. Às vezes abruptamente. Com a aceleração do processo de modernização, certos conceitos e valores sofreram abalo em todo o Ocidente. No Brasil não poderia ser diferente. Ao utilizar o conceito de Antigo Regime, sempre deve-se lembrar de situá-lo em sua historicidade.


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Notas

[i] Vide: HESPANHA, Antônio Manuel. (Coord). História de Portugal: O Antigo Regime (1620-1807). Portugal: Editorial Estampa, 1998. Outra periodização interessante pode ser vista em SILVA, Nuno J. Espinosa Gomes da. História do Direito Português: Fontes do direito. 4. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2006, p. 34-8. Nesta o autor chama tal período de época da recepção do Direito comum, em certa continuidade de 1248-1750.

[ii] Em inglês: “Less than a year after the Revolution had begun, Mirabeau wrote secretly to the king, " Compare the present state of things with the old regime, and console yourself and take hope. A part—the greater part of the acts of the national assembly are decidedly favorable to a monarchical government. Is it nothing to have got rid of Parliament, separate states, the clerical body, the privileged classes, and the nobility ? Richelieu would have liked the idea of forming but one class of citizens ; so level a surface assists the exercise of power. A series of absolute reigns would have done less for royal authority than this one year of Eevolution." He understood the Revolution like a man who was competent to lead it.”

[iii] Laura de Mello e Sousa também destaca o referencial a Toqueville, porém em sua leitura parece igualar a sociedade de privilégios ao feudalismo. “Mais que a centralidade do poder, portanto, Mirabeau identificava o Antigo Regime à sociedade desigual dos privilégios: em suma, ao feudalismo, sem se dar conta de que o povo não se compunha mais de súditos, e sim de cidadãos; a soberania não mais emanava do rei, e sim do povo.”. (SOUZA, L. , 2006, p.64).

[iv] “Tocqueville abordou este período da história francesa com a empatia de quem possuía um sentido muito desenvolvido das diferenças sensíveis impostas pelo tempo histórico. Para ele, o Antigo Regime executou a obra da modernidade francesa que, de forma muitas vezes equivocada, é identificada como obra única e exclusiva da Revolução.”. (LOPES, 2003, p.130).

[v] Tradução livre do original: "La justice française sous l'Ancien Régime était caractérisée par le nombre élevé des juridictions, l'enchevêtrement de leurs ressorts, la lenteur et le coût des procédures, la dureté de la procédure criminelle, la cruauté des châtiments et la sévérité des peines  pour les petites gens, sévérité qui contrastait avec l'extrême clémence dont on faisait preuve envers les privilégiés. Juges et procureurs étaient, en général, peu aimés, du fait qu'ils défendaient un système favorable à leurs intérêts, mais que la majorité de la population rejetait. Seuls les avocats recrutés  dans la moyenne ou la petite bourgeoisie admettaient la nécessité d'une réforme de la justice."

[vi] Chamadas de ‘épices’ (especiarias), como o dinheiro destinado ao supérfluo, na mesma lógica do cultural ‘dinheiro para o cafezinho’ no Brasil.

[vii] No original: "Les juges sont des fonctionnaires qui ont acheté leur charge qui est devenue héréditaire. Mal rétribués pour le travail fait, ils se remboursent sur les justiciables en exigeant des « dessous de table » (les épices) et en faisant durer les procès afin de multiplier les actes qui sont payants."  (CABOURDIN e VIARD, 1978).

[viii] No Brasil do período colonial não há dúvida alguma que os juízes da Coroa (juízes de fora e ouvidores) governavam no lugar do rei.

[ix] Tradução livre do original : "(...) toutes les lois, au sens moderne du terme, subissent le même examen partial des Parlements dès lors que sont en cause leurs privilèges. En termes de séparation des pouvoirs, ils exercent donc la fonction législative en discutant du bien-fondé de la politique royale" (GUINCHARD, 2011, p. 9).

[x] Tradução livre do original: "Tout simplement comme  l’expression d’un’ programme politique lié à un élément subjectif,  la peur du juge, et non comme un symbole d’une réflexion abstraite sur la fonction juridictionnelle. Il est symptomatique que l’argument du juge « bouche de la loi » est avancé chaque fois qu’il s’agit de limiter le pouvoir judiciaire par référence à un passé, c’est-à-dire chaque fois qu’il s’agit d’interdire au juge toute ambition politique. S’ils font unanimement l’éloge d’un pouvoir judiciaire à l’influence considérable, les constituants en déduisent toujours l’importance de contraindre « ce terrible pouvoir afin qu’il ne nuise ni à la liberté politique, ni à la liberté civile ». Suit alors l’énumération de toutes les questions  à aborder afin de bien  organiser le pouvoir judiciaire, c’est-à-dire dans le but de contraindre le juge". (GUINCHARD, 2011, p. 7).

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[xi] “Os temas da centralização administrativa e o anseio dos povos por democracia são os conceitos-chave, os problemas de fundo de todo o texto. A Revolução Francesa se afigura apenas como o coroamento, o desfecho de um processo muito longo que tem suas raízes fincadas na própria gênese da sociedade francesa do Antigo Regime. Como se refere François Furet, Tocqueville apresenta bem mais um Antigo Regime' do que uma 'Revolução', bem mais um ‘antes de 1789' do que um 'após 1789'”. (LOPES, 2003, p.132).

[xii] “Ordem. Tal termo e noção levam-nos ao cerne da antropologia medieval. Os fatos naturais e sociais, agora protagonistas, não são uma enxurrada de fenômenos amontoados desordenadamente uns sobre os outros, mas, encontrando a própria fonte na sabedoria divina, são inseridos numa harmonia que a todos concilia. A ordem é precisamente aquele tecido de relações graças ao qual um agregado de criaturas heterogêneas é reconduzido espontaneamente à unidade. O primado ontológico da totalitas e da multitudo, que leva forçosamente à supervalorização do sangue, da terra e da duração como fatos normativos fundamentais; a perfeição do coletivo como totalitas e como multitudo e a consequente imperfeição do indivíduo requerem que totalitas e multitudo resolvam-se em ordem; só assim a parte, o individuum, poderá ver a sua função racionalmente reduzida. Tudo deve ser organizado: o ordo universal de que se fala aqui não pode deixar de se articular, em nível social, em vários ordines particulares, momentos necessários de divisão da sociedade medieval, nichos necessários nos quais inserir e dar concretude e funcionalidade histórica a essa abstração desprovida de sentido que é o indivíduo.”. (GROSSI, 2002, 81-2, trad. livre)

[xiii] Completando a idéia “Uma ordem que não se deixa afetar pelos grandes ou pequenos episódios da história, pois se coloca além do poder político e de seus detentores, desvinculada das misérias do cotidiano, inserida no terreno profundo e seguro das fontes supremas, dos valores. Um valor – imanente – a natureza das coisas, um valor – transcendente – o Deus nomóteta da tradição canônica, um em absoluta harmonia com o outro, segundo os ditames da teologia cristã, constituem um ordo, um ordo iuris. Um ordo iuris que, portanto, não pode deixar de articular o direito positivo, os vários direitos positivos, em graus ascendentes de manifestações jurídicas que resultam, sem cesuras, das regras transitórias e contingentes da vida cotidiana, numa continuidade simples e espontânea, no nível supremo do direito natural e do direito divino, com toda sua riqueza de princípios normativos eternos e imutáveis, por serem a voz da própria Divindade.” (GROSSI, 2002, p.14). No original: “(...) Pinserimento delia parola 'ordine' ostinatamente voluto. Ci è sembrato infatti Che mai, come nel medioevo, il diritto abbia rappresentato e costituito la dimensione radicale e fondante délia società, un basamento stabile che fa spicco rispetto alla caoticità e alia mutevolezza del quotidiano, cioè degli eventi politici e sociali d'ogni giorno. La società médiévale è giuridica, perché si compie e si salva nel diritto, giuridica è la sua costituzione più profonda, e sta li il suo volto essenziale, sta lï la sua cifra ultima. A paragone délie risse della disordinatissima superficie contrasta l'ordine della secreta ma presente costituzione giuridica. Un ordine che non si lascia scalfire dagli episodi grandi e piccoli della vicenda storica, perché si colloca al di là del potere politico e dei suoi detentori, svincolato dalle miserie della quotidianità, collocato nel terreno fondo e sicuro délie radicazioni suprême, dei valori. Un valore – immanente - la natura delle cose, un valore - trascendente - il Dio nomoteta della tradizione canónica, l'uno in assoluta armonía con l'altro secondo i dettami della teología cristiana, costituiscono un ordo, un ordo iuris. Un ordo iuris che perianto non puô non scandire il diritto positivo, i varii diritti positivi, secondo gradi ascendenti di manifestazioni giuridiche che dalle rególe transeunti e contingenti della vita quotidiana salgono senza cesure, in spontanea e semplice continuità, al livello supremo del diritto naturale e del diritto divino con tutta la loro ricchezza di principii normativi etemi e immutabili perché voce della Divinità stessa.” (Ibid, p.14). (Tradução ainda não publicada de Ricardo Marcelo Fonseca).

[xiv] “(...) o ius commune, é fenômeno de origem e cunho tipicamente “italiano”, adquirindo forma e conteúdos no florescimento universitário italiano do século XIII. (...) a construção medieval de uma ordem jurídica própria está de acordo com uma intensa originalidade decorrente de sua intensa historicidade; um conjunto harmônico de construções típicas, por serem adequadas e inerentes às exigências históricas, fundadas nos novos valores emergentes e, como tais, reflexos da sociedade nas suas raízes mais remotas”. (GROSSI, 2002, p.9-10, tradução livre)

[xv] Direito romano desenvolvido na jurisprudência medieval constituída de diferentes maneiras e com uma variedade de eventos, uma experiência vital e dominante nos sistemas jurídico-políticos da Europa, unidos pelo acolhimento da mesma tradição jurisprudencial romanística. Em cada uma dessas jurisdições, a presença do direito romano deu vida, como normativa comum e subsidiária ao sistema de característica de fontes jurídicas que de fato limitamos a qualificar de regime de direito comum. E em todos os lugares, a lei comum se opôs como um bloco único a uma grande variedade de direitos locais e particulares e foi utilizado como ratio juris para um conjunto de interpretações comuns e de suas formas ou de seus critérios para a consolidação de uma unidade dogmática e de processamento racional: em qualquer caso, de alguma forma, como um primeiro elemento de apoio para que a uniformidade do sistema jurídico nacional que a formação do Estado pós-medieval recentemente tenderam, mas que ainda não era capaz de proporcionar. (CAVANNA, 1982, p.193). No original “Il diritto romano elaborato dalla giurisprudenza medievale costitui, a diverso titolo e con varietà di vicende, un elemento vitale e dominante nella esperienza giuridica degli ordinamenti politici europei, accomunati nell'accoglimento di una medesima tradizione giurisprudenziale romanistica. In ciascuno di questi ordinamenti la presenza dei diritto romano diede vita, come normativa comune e sussidiaria, a quel caratteristico sistema di fonti giuridiche che sogliamo appunto qualificare regime di diritto comune. E ovunque, questo diritto comune si contrappose come blocco unitário ad una eterogenea molteplicità di diritti locali e particolari o fu utilizzato come ratio iuris per una loro interpretazione uniforme o forni gli unitari criteri dommatici per una loro consolidazione ed elaborazione razionale: in ogni caso, esso in qualche modo rappresentò un primo elemento di sostegno per quella uniforrnità giuridica nazionale cui lo Stato post-medievale di recente formazione tendeva, ma che non era ancora in grado di assicurare.”

[xvi] “A primeira preocupação é torná-los harmónicos, sem que isso implique que alguns deles devam ser absolutamente sacrificados aos outros ("interpretatio in dubio facienda est ad evitandam correctionem, contrarietatem, repugnantiam", a interpretação deve ser feita, em caso de dúvida, no sentido de evitar a correcção [de umas normas pelas outras], a contradição, a repugnância). Pelo contrário, todas as normas devem valer integralmente, umas nuns casos, outras nos outros. Assim, cada norma acaba por funcionar, afinal, como uma perspectiva de resolução do caso, mais forte ou mais fraca segundo essa norma tenha uma hierarquia mais ou menos elevada, mas, sobretudo, segundo ela se adapte melhor ao caso ou à situação em exame. Ou seja, as normas funcionam como "sedes de argumentos" (topoi, loci), como apoios provisórios de solução; que, no decurso da discussão em torno da solução, irão ser admitidos ou não, segundo a aceitabilidade da via de solução que abrem”. (HESPANHA, 2005c, p.11)

[xvii] “Hoje em dia a legislação é a fonte principal do direito. O legislador abole as regras existentes e cria novas de acordo com as necessidades políticas e sociais. Legislar é manipular o direito e a sociedade numa direção desejada. Antigamente, não havia clareza de que o direito podia resultar de uma intervenção deliberada e dirigida. Ao contrário, o direito era visto como uma realidade fixa e eterna, que podia no máximo ser adaptada ou esclarecida, mas a preocupação principal era manter o bom direito antigo. A insignificância da legislação durante os primeiros séculos da Idade Média é explicável em parte por essa visão, em parte pela impotência das autoridades centrais”. (CAENEGEM, 1999, p.121).

[xviii] Vale ressaltar que nos textos mais recentes de Antonio Manuel Hespanha os conceitos são mais elásticos e abertos, talvez por isso, citações da década de 80 sirvam mais como indicativo de leitura do que coincidam com o pensamento atual do autor.

[xix] “Esta tensão entre "disposição natural" e "decisão de autoridade" não era particularmente sentida na teoria jurídica e política do Antigo Regime, pois era consensual que os "imperantes" não inventavam o direito, mas o iam colher a uma fonte natural. "Governar" (iurisdictionem habere) era "fazer justiça" (iustitam dare), sendo, por isso, a lei mais do que um acto de vontade, um acto de razão”. (HESPANHA, 2004, p.68)

[xx] “Nesta multiplicidade de estados, sob os quais os indivíduos se apresentam e dos quais decorrem os seus direitos e obrigações, introduziram os juristas alguma ordem, tipificando alguns que, pelo seu carácter mais genérico, podiam ser geralmente assumidos pelos indivíduos. Alguns estavam ligados à própria natureza, enquanto esta capacitava ou incapacitava os indivíduos para assumirem certos papéis nas relações sociais e, assim, condicionava as situações sociais, políticas e jurídicas em que estes se podiam colocar. E o que se passa com o sexo (homens, mulheres), a idade (infantes, impúberes, menores, maiores), a perfeição psíquica (insanidade mental, prodigalidade) ou física (mudez, surdez)”. (HESPANHA, 2006, p.50)

[xxi] “Abaixo do plano do reino, proliferavam as ordens jurídicas particulares, todas elas protegidas pela regra da preferência do particular sobre o geral. Por exemplo, as normas que protegiam os estatutos (ou direitos das comunas, cidades, municípios), considerando-os, nos termos da lei "omnes populi", como ius civile ("dicitur ius civile quod unaqueque civitas sibi constituit", [diz-se direito civil o que cada cidade institui para si], Odofredo, século XII), ou seja, com dignidade igual à do direito de Roma. Ou as que protegiam o costume (nomeadamente, o costume local), cujo valor é equiparado ao da lei ("também aquilo que é provado por longo costume e que se observa por muitos anos, como se constituísse um acordo tácito dos cidadãos, se deve observar tanto como aquilo que está escrito", D.,1,3,34; v. também os frags. 33 a 36 do mesmo título). Ou, finalmente, o regime de protecção dos privilégios, que impedia a sua revogação por lei geral sem expressa referência; ou mesmo a sua irrevogabilidade pura e simples, sempre que se tratasse de privilégios concedidos contratualmente ou em remuneração de serviços ("privilegia remuneratoria"). Ou seja, em todos estes casos, ainda que as normas particulares não pudessem valer contra o direito comum do reino enquanto manifestação de um poder político, podiam derrogá-lo enquanto manifestação de um direito especial, válido no âmbito da jurisdição dos corpos de que provinham. E, nessa medida, eram intocáveis. Pois decorrendo estes corpos da natureza, a sua capacidade de autogoverno e de edição de direito era natural e impunha-se, assim, ao próprio poder político mais eminente.”. (HESPANHA, 2005c, p.5)

[xxii] “Iurisdictio, no pensamento medieval, é um conceito que não se limita a colher a já complexa problemática da potestas iuris dicendi, mas se expande para além e mais alto, tornando-se um dos pilares da publicistica medieval "iurisdictionem habere" passou a significar o conjunto de poderes que o ordenamento jurídico exerce na plenitude de sua vida, e já surge no alvorecer da escola de Bolonha, nos fragmentos bem conhecidos de Martin e Búlgaro, e, mais tarde, na disputa entre Azzone e Lotário de Cremona, iurisdictio resume o trabalho do pensamento que moveu os glosadores para erradicar o conceito de Estado do terreno feudal dominium. (...) Agora, aqui estamos diante de um exemplo típico de uma característica técnica da metodologia dos glosadores e comentadores, que é de aproximar-se de alguns conceitos básicos, tais como os denominadores comuns, complexos inteiros de problemas teóricos aparentemente díspares e distantes”. (CALASSO, 1953, p.425). No original: “Iurisdictio, nel pensiero medievale, è un concetto che non si limita a cogliere la già complessa problemática della potestas iuris dicendi, ma si dilata ben oltre e più alto, diventando uno dei cardini della pubblicistica medievale: «iurisdictionem habere» giunse a significare il complesso dei poteri che l'ordinamento giuridico esercita nella pienezza della sua vita; e già sugli albori della scuola di Bologna, nei frammenti ben noti di Martino e di Búlgaro, e, piu tardi, nella controversia fra Azzone e Lotario da Cremona, iurisdictio riassume il travaglio di pensiero che moveva i glossatori a sradicare il concetto di Stato dal terreno feudale del dominium. (...) Ora, qui ci troviamo di fronte al tipico esempio di una caratteristica tecnica della metodologia dei glossatori e dei commentatori, che consiste nel convogliare attorno ad alcuni concetti elementari, come a dei comuni denominatori, interi complessi di problemi teorici apparentemente disparati e lontani”.

[xxiii] Tal perspectiva foi destacada, por exemplo, em: “O. Brunner que, em sucessivas intervenções, salienta as continuidades entre os sistemas políticos medieval e moderno e a persistência, nos níveis "inferiores" do sistema político — nomeadamente no mundo "camponês" —, de resistentes estruturas de vinculação política tradicionais marcadas pelo "patriarcalismo" e pelo "senhorialismo" e relativamente pouco tocadas pelas novidades da teoria política e pelos desígnios de poder dos monarcas modernos”. (HESPANHA, 1994, p.28)

[xxiv] “No Antigo Regime, prevalecia uma matriz cultural tradicionalista, segundo a qual "o que era antigo era bom". Neste contexto, o direito justo era identificado com o direito estabelecido e longamente praticado - como o eram os costumes estabelecidos ("prescritos"), a opinião comumente aceite pelos especialistas (opinio communis doctorum, opinião comum dos doutores), as práticas judiciais rotinadas (styli curiae, "estilos do tribunal"), o direito recebido (usu receptum, asu firmatum), os direitos adquiridos ("iura radicata", enraizados), o conteúdo habitual dos contratos (natura contractus).” (HESPANHA, 2005a, p.23)

[xxv] No original: “(...) la situazione del diritto realmente praticato negli ordinamenti giuridici europei durante il tardo regime del diritto comune (Ancien Régime) era soprattutto riflessa nel suo svolgimento giurisprudenziale, forense e consulente.” (CAVANNA, 1982, p.227)

[xxvi] O que é o império? Uma definição comum diz: «É um poder legítimo introduzido pelo direito público, consistituído por aquele que absorve a mais infima jurisdição» mas é de notar - detecta Cino - que os conceitos de iurisd. maxima, média, e mais baixos conceitos são controversos e elásticos, e não se pode, portanto, servir utilmente para definir o império. Cino também julga igualmente inexata outra definição corrente: "O imperium é o poder legítimo introduzido pelo direito público, constituído por aqueles, aos quais compete o direito de julgar”:  tal definição é derivada de uma frase do fragmento citado de Ulpiano (...) Cino de Pistoia por sua vez define: “Imperium é o poder legítimo, introduzido pelo direito do público, pela necessidade de se estabelecer a administração da justiça e da equidade, constituído por aqueles, que dependem do poder e autoridade do juiz”. (CALASSO, 1953, p.433-4). No original: “Che cosa è l´imperium? Una definizione diffusa diceva: «est legitima potestas de iure publico introducta, consistens in iis, quae sunt infimae iurisdictionis»: ma c'è da osservare — rileva Cino — che i concetti di iurisd. maxima, media, ínfima sono concetti controversi ed elastici, e non possono quindi serviré utilmente a definiré l´imperium. Egualmente inesatta giudica Cino una altra definizione corrente: «imperium est legitima potestas de iure publico introducta, consistens in iis, quae iure magistratus competunt»: la quale definizione è ricavata da una frase del citato frammento di Ulpiano (...) Cino da Pistoia invece definisce: “imperium est legitima potestas, de iure publico introducta, cum necessitate iuris dicendi et aequitatis statuendae, consistens in iis, quae ex potestate iudicis et authoritate dependent”.

[xxvii] “O merum imperium ainda aparece subdividido em seis graus. O imperium maximum (mero império máximo) inclui os poderes supremos do príncipe (regalia maiora), como fazer leis, reunir cortes, confiscar bens, criar notários, etc. O imperium maius (mero império maior) abarca, nomeadamente, o poder punitivo (habere gladii potestatem ad animadvertendum facinorosos homines, "ter o poder de gládio para castigar os facínoras", D.,2,1,3) relativo às penas capitais (morte ou decepamento de membro, perda da liberdade, perda da cidadania). O imperium magnum (mero império grande) inclui a deportação. O imperium parvum (mero império pequeno), o desterro e a perda da qualidade de vizinho. Os dois últimos graus (imperium minus e minimum), a faculdade de aplicar actos de coerção menores (módica coertio), como multas e repreensões”. (HESPANHA, 2005a, p.219)

[xxviii] “Iurisdictio é a posição de poder de um sujeito ou de um ente, enquanto dotada de iurisdictio, uma cidade pode organizar-se juridicamente, dotar-se de um ius proprium, fazer justiça. Certamente o poder supremo, a iurisdictio plenissima, é do imperador. A iurisdictio, entretanto, não é uma totalidade exclusiva, mas é uma cadeia composta de muitos anéis. Se apenas o imperador possui a plenitude de poder, isto não impede que entes hierarquicamente inferiores disponham de uma sua iurisdictio, de uma esfera de autonomia que coincide com as efetivas capacidades auto-ordenantes do ente singular.” (COSTA, 2010, p.129).

[xxix] Essa característica foi percebida pelos clássicos da historiografia brasileira, apesar de fundametarem em pontos diferentes. “A legislação portuguesa, no período colonial do Brasil, conforme já acentuado, demarcava imperfeitamente as atribuições dos diversos funcionários, se a preocupação – desusada na época – de separar as funções por sua natureza. Daí a acumulação de poderes administrativos, judiciais e de polícia nas mãos das mesmas autoridades, dispostas em ordem hierárquica, nem sempre rigorosa. A confusão entre funções judiciárias e policiais perdurará ainda por muito tempo”. (LEAL, 1974, p. 181).

[xxx] “O problema da complexidade da repartição das competências não era, evidentemente, novo. Nem era de agora a constatação de que daqui resultavam muitas das demoras da justiça. No entanto, a estratégia de redução de todas as jurisdições especiais a uma jurisdição ordinária nunca se impôs. Desde logo porque, como vimos, esta distinção jurisdição comum e jurisdição especial nem era particularmente visível no plano das taxinomias da jurisdição. Depois, porque as demoras das lides eram sobretudo relacionadas com a falta de diligência dos juízes ou com os expedientes dilatórios dos advogados. Se algo se pedia, era que os critérios de repartição das competências forenses – nomeadamente, das competências relativas do foro secular e eclesiástico – fossem clarificados, por lei ou concordata. Eventualmente, encarava-se a extinção de um ou outro privilégio. Mas, globalmente, a estrutura jurisdicional orientada para os privilégios não era posta em causa. E, assim, nos finais do Antigo Regime, eram inúmeros os privilégios de foro: eclesiásticos (com distinções internas), militares, estudantes e professores, cavaleiros das ordens militares (e, ainda aqui, com distinções), moedeiros, desembargadores, rendeiros fiscais, moradores das terras dos donatários, pescadores, estrangeiros, órfãos, viúvas e mulheres honestas, juízes e deputados da Bula da Cruzada, do Santo Ofício, da alfândega, das secretarias de Estado, da Junta do Comércio e de mais uma série de repartições ou tribunais aos privilégios do foro acresciam os privilégios em razão da causa: eclesiásticos, de almotaçaria, fiscais, comerciais, de falência, de contrabando, de capelas e resíduos, da corte, da cidade de Lisboa, de inúmeras instituições, etc.”. (HESPANHA, 1993, p.403-4).

[xxxi] “Dessa forma, o indivíduo ou o grupo que, em troca de serviços prestados (mormente na conquista e colonização do ultramar), requeria uma mercê, um privilégio ou um cargo ao rei, reafirmava a obediência devida, alertando para a legitimidade da troca de favores e, portanto, para a obrigatoriedade de sua retribuição. Ao retribuir os feitos de seus súditos ultramarinos, o monarca reconhecia o simples colono como vassalo, reforçando o sentimento de pertença e estreitando os laços de sujeição em relação ao reino e à monarquia, reafirmando o pacto político sobre o qual se forjava a soberania portuguesa nos quatro cantos do mundo. Dito de outra forma, a economia política de privilégios relacionava, em termos políticos, o discurso da conquista e a lógica graciosa inscrita na economia de favores instaurada a partir da comunicação pelo dom”. (BICALHO, 2001, p.219).

[xxxii] “A economia política de privilégios relaciona, em termos políticos, o discurso da conquista e a lógica clientelar inscrita na economia de favores instaurada a partir da comunicação pelo dom. Tanto o ideário da conquista, quanto à norma de prestação de serviços apareciam, no quadro do Império, como mecanismos de afirmação do vínculo político entre vassalos ultramarinos e soberano português. A economia política de privilégios deve ser pensada enquanto cadeias de negociação e redes pessoais e institucionais de poder que, interligadas, viabilizavam o acesso a cargos e a um estatuto político — como o ser cidadão -, hierarquizando tanto os homens quanto os serviços em espirais de poder que garantiam coesão e governabilidade ao Império.” (BICALHO; FRAGOSO; GOUVÊA, 2000, p.79)

[xxxiii] Assim aponta Hespanha:“(...) eu não digo que o "Estado" (valha a simplificação) colonial não exista. Sim, existe, nas colónias e no reino, como eu tenho defendido que ele era. E manifestava-se também nisso de que, muito disciplinadamente, todos tripudiavam e faziam tropelias "em nome d'el-rei", guiados pelo amor que tinham à coroa e ao seu rei. E a própria coroa, em estado de necessidade e em transe de perder até a face, frequentemente cobria os desmandos, ou com o silêncio de presumida ignorância, ou com o manto do perdão ou mesmo com o alarde de uma mercê por tais serviços. Pode, realmente, dizer-se que o modo de governar do "Estado moderno" era este, o de se deixar invocar; e que exigir-lhe um poder mais efectivo não passa de uma retroprojecção da imagem que mais tarde se formou do Estado, nomeadamente desse Estado distante, exigente e dominador, que é o "Estado com colónias" (ou o "Estado nas colónias").”. (HESPANHA, 2007, p.64).

[xxxiv] “(...) decorrendo antes daquilo que a teoria política mais moderna (oitocentista) do Estado e da colonização colocou como conteúdo corrente das palavras "Estado" e "colonização". Em suma, para mim uns trópicos sem Leviathan não me aborrece mais do que um Leviathan sem trópicos; não sei, porém, se não perturbará um tanto a imagem tradicional de um "Império colonial"... como Deus mandava.”. (HESPANHA, 2007, p.65)

[xxxv] Vale lembrar aqui o capítulo 2 do livro “A verdade e as formas jurídicas” de Michel Foucaul, no qual o autor relembra os limites de conceitos econômicos para compreender as relações de poder, como no caso das cidades-estado de Atenas e Esparta, que mesmo compartilhando de certa similitude econômica detinham regimes políticos diversos devido ao que ele denomina de “episteme” diferentes.

[xxxvi] Planos no ultramar apareceram apenas no período pombalino: “(...) isto chega tarde a Portugal e aos seus domínios; se não me engano (...), é mesmo só com Pombal e com os ministros ilustrados de D. Maria que planos particulares e gerais de uma organização política do Ultramar ganham forma, primeiro em relatórios, consultas e directórios, depois em projectos concretos de reformas territoriais, económicas, urbanísticas e de governo, que visam vários pontos e situações do império, desde Macau ao Brasil, passando por Angola”. (HESPANHA, 2007, p.63).

[xxxvii] Nesse sentido, “(...) todo o tesouro de imagens e de conceitos que permitiu justificar e sustentar ideologicamente a escravidão tem uma indubitável origem européia. A escravidão é uma figura do direito romano, por este detidamente regulada, regulação que foi a única matriz jurídica disponível, naturalmente reelaborada por juristas europeus, quase todos ibéricos, dos quais destaco o luso-espanhol Luís de Molina, cuja doutrina relativa aos escravos já foi objecto de um artigo meu . Antes disso, a escravatura fora objecto de reflexões antropológicas e filosóficas de Aristóteles, que a filosofia, a ética e a política europeias incorporaram e as leis copiaram. Por cima disto, o sistema corporativo construíra toda uma moldura de autonomia jurídica e governativa da "casa", da qual os escravos faziam parte, juntamente com outros membros da família. Para a sociedade corporativa, os escravos eram um elemento da casa, da família, e não, a bem dizer, um elemento da polis, da respublica, do Estado, o qual Jean Bodin define como "uma respublica de famílias". Ou seja, do ponto de vista da mundividência corporativa, o escravo, ou mesmo uma multidão de escravos, não constituía um elemento dissonante da comunidade,que obrigasse a reconfigurar o seu desenho, a sua teoria, o seu direito. E, de facto, não conheço nem tratados de ética, nem códigos, nem leis substanciais, que lidem com o problema da escravidão massiva no Brasil. Aparentemente, o que viera da Europa, chegava.”. (HESPANHA, 2007, p.65).

[xxxviii] Ver nesse sentido: QUEIROZ, Suely Robles Reis de. Escravidão negra em Debate. In: FREITAS, Marcos Cezar. Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo: Contexto, 2003. (pág. 103-17)

[xxxix] Observe-se que o Antigo Regime é uma readaptação dos moldes feudais as novas realidades, inclusive de cunho econômico, existente na transição entre idade média e modernidade (pós-revolução). Ressalto ainda que longe de negar o fundamento Marxista de preeminência ontológica do econômico sobre as formas ideológicas, parece ser possível uma leitura um pouco mais complexa do fenômeno. Se as adaptações do Antigo Regime seriam suficientes para destacá-lo do modelo feudal e carcaterizá-lo como máscara feudal de um sistema capitalista parece um bom e exaustivo projeto de pesquisa.

[xl] Além disso a autora, chega a afirmar na entrevista dada no final de 2012 diversas idéias apresentadas: “(...) “Nessa releitura, o Império Português aparece como pouco homogêneo e com centros políticos relativamente autônomos. É preciso questionar a ideia de uma ideologia imperial unitária” (...) “Os administradores portugueses que vieram, por exemplo, a certas partes do que seria o Brasil fogem ao estereótipo do ‘tiranete’ que buscava arrancar os espólios dos brasileiros. Claro que houve inescrupulosos. Mas, no geral, sabia-se que não se podia pesar a mão na relação com a colônia. A exploração muitas vezes vinha revestida da forma da intolerância, seguida da flexibilidade na aplicação das leis” (...) “Assim, dizer, como reclamava Tiradentes, que os administradores portugueses vinham para espoliar e arrancar nosso sangue, não explica muita coisa e nos enreda no discurso equivocado da dominação. Em verdade, a administração só pode funcionar porque as elites locais participavam dele” “A Coroa sabia que não podia impor controle levando a lei ao pé da letra. Até 1822, os ‘brasileiros’ se viam como portugueses, e não como dominados”, (...) Ainda vale a definição de Tocqueville do Antigo Regime: “Uma regra rígida e uma prática flácida” (...) “Pelos princípios do Antigo Regime se proibia aos portadores de ‘sangue infecto’ exercer cargos administrativos. Seria, então, impossível governar as regiões coloniais se a maior parte da elite nativa era formada por mestiços: regiões como São Paulo e Minas, por exemplo, eram praticamente habitadas por mamelucos e mulatos. Promovia-se, então, um mulato a capitão-mor e ele deixava de ser mulato e podia ascender” (...) ” (HAAG, 2012)

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Sobre os autores
Sandro Luís Tomás Ballande Romanelli

Professor do Instituto Federal do Paraná (IFPR), é Bacharel em Direito (UFPR), Especialista em Direito Processual Civil (PUC-PR), Mestre em Direito Público (UFPR) e Doutorando em Direitos Humanos e Democracia (em andamento - UFPR).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FURMANN, Ivan ; ROMANELLI, Sandro Luís Tomás Ballande. Um sentido jurídico para o antigo regime (ancien régime). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4587, 22 jan. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/45821. Acesso em: 27 dez. 2024.

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