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Paralelos das tradições de Commom Law e Civil Law e sua aproximação na atualidade

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27/03/2016 às 14:48
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A convergência das tradições da Civil Law e da Common Law acaba por implicar no abandono do dogma da segurança jurídica por meio unicamente da lei, sempre defendido pela Civil Law, para dar relevo à importância das decisões judiciais.

Não há dúvidas de que o surgimento da Common Law e da Civil Law é consequência das distintas características culturais dos povos que adotaram um ou outro sistema de resolução de conflitos, e são resultado de construção diária e histórica do entendimento jurídico desses povos. Com efeito, o direito e a estrutura jurisdicional dos Estados sofrem influência direta e imediata de seu panorama político, social e econômico, bem como do nível de amadurecimento de suas instancias judiciais.

Sobre o assunto ensinam Drummond e Crocetti[1]

As tradições do Civil Law e do Common Law podem ser atualmente consideradas os dois grandes complexos de experiências jurídicas existentes, é dizer, dois grandes campos jurídicos que comportam determinadas formas de conceber, praticar e ensinar o Direito; campos em cujo interior o trabalho social jurídico é dividido de determinada forma e em que as soluções dadas para os conflitos sociais são pensadas através de redes de significado bastante próprias (até o ponto de implicarem uma notável incompreensão mútua). São as duas formas de expressão de experiência jurídica não por serem únicas, mas sim por serem as tradições preponderantes em grande parte do planeta, possivelmente na totalidade do mundo Ocidental.

Nesse diapasão, a Revolução Francesa, com a ideia de separação formal e absoluta dos poderes como garantia dos indivíduos frente aos abusos do poder, influenciou a maior parte dos países da Europa do Sul, Europa Central e da Península Ibérica a aderir a um sistema jurisdicional em que a função do juiz e do judiciário seria de mero aplicador em concreto das leis formuladas pelo judiciário.

É, portanto, a Revolução Francesa o evento que ofertou as bases fundamentais e ideológicas da tradição do Civil Law.

O dogma da separação estrita dos poderes, de gêneses e inspiração extraídas da Revolução Francesa exigia dos juízes atividade judicial meramente declaratória do possível direito em discussão no processo. Do contrário, quaisquer intenções criativas do Judiciário, isto é, constitutivas do direito, seriam interpretadas como invasão indevida deste Poder nas esferas de competência do Legislativo, único originariamente direcionado à criação do direito.

Com modelo rígido de separação de poderes, em que cada um dos três poderes idealizados por Montesquieu haveria de tratar de seus próprios assuntos, caberia ao Legislativo a tarefa única e indelegável de criação de direitos, ao Executivo sua implementação e ao Judiciário sua declaração em juízo.

Aliás, pela doutrina mais antiga e intransponível da separação dos poderes, ao juiz seria vedado, inclusive, interpretar o direito, sob o risco de a interpretação judicial constituir artimanhas em conspiração contra o legislador.

Na França havia, verdadeiramente, clima de desconfiança em razão de o Poder Judiciário estar aliado aos imperadores. Sendo assim, a Revolução Francesa pregava a independência dos Poderes e consequente limitação do Poder Judiciário, tendo este apenas a função de declarar o direito. Na Inglaterra, lar do Common Law, deu-se o contrário. Os juízes se aliaram ao legislador na tarefa de impor freios ao soberano, o que, certamente, ao fim do resultado do equilíbrio dessas forças, possibilitou que o judiciário desse país saísse amparado por uma tutela judicial criativa em prol da defesa dos interesses e direitos dos cidadãos ingleses.

Para ter ideia do exagero da ideologia inicial da repartição de poderes pregada na Revolução Francesa, muitos dos países arraigados à Civil Law possuíam verdadeiras comissões legislativas, nascidas com o fito único e ímpar de resolver dúvidas acerca de interpretações legais, outorgando-lhes poderes para, inclusive, cassar interpretações judiciais tidas como equivocadas.

Embora já superadas as vertentes mais radicais da teoria da separação dos poderes, alguns de seus dogmas e da Revolução Francesa, ainda assombram boa parte da evolução da Teoria Geral do Processo, e devem ser aos poucos esmaecidos diante da força esmagadora da realidade social, em que o Judiciário é chamado cada vez mais a oferecer solução diante de casos concretos que se distanciam da aplicação mecânica e automática da literalidade da lei.

Sobre isso, por sinal, bem escreveu Marinoni[2]:

A tradição do civil law baseia-se em dogmas, próprios à Revolução Francesa, que negam postulados que paulatinamente foram sendo estabelecidos durante a transformação da realidade social e do conteúdo dos Estados de países que se formaram a partir da doutrina da separação estrita entre os poderes e da mera declaração judicial da lei.

De fato, ao aderir ao conceito de juiz mero declarador judicial da lei, a Civil Law atribui confiança num dogma de segurança jurídica fácil de entender, mas que se mostrou falho na realidade, e de impossível manutenção no complexo sistema jurídico dos dias atuais.

Tal dogma era de que somente haveria segurança jurídica caso houvesse aplicação estrita da lei, igual para todos os cidadãos e juízes. Em tese, e num primeiro momento, parece assistir razão a este singelo pensamento jurídico, mas a multiplicidade e peculiaridade dos casos levados a julgamento logo mostraram que a lei era insuficiente, por mais diligente que fosse o legislador em prever todas as hipóteses possíveis que surgem na realidade social.

Ademais, a lei, produto humano e linguístico que é, sofre processos distintos de captação de seu significado, influenciado por fatores inimagináveis, e muitas vezes de cunho meramente subjetivo de cada aplicador, o que revela uma gama de exegeses possíveis sobre a norma.

É importante frisar que não se está neste trabalho a pôr em xeque a importância da doutrina da separação dos poderes e de sua utilidade ainda para os dias de hoje, e para os regimes democráticos de agora. Expõe-se, apenas, a necessidade de preservar as conquistas da separação dos poderes, outorgando-lhe as homenagens de sempre, destacando-a, contudo, sob outro prisma.

A bem da verdade, a tradição de Common Law também sempre controverteu acerca da natureza da tarefa judicial, se declaratória ou constitutiva do direito. A Common Law, antes de mais nada, é sistema jurídico que se baseia em costumes e máximas gerais estabelecidas de um povo, e que pode ter tanto dimensão nacional (um costume de aplicação em todo território do país), quanto regional (costume de determinada província, cortes e jurisdições).

Existiria, assim, o direito escrito (Statute Law) e o direito costumeiro, não escrito, que recebeu o nome de Common Law.

Pela corrente declaratória da Common Law, o juiz se limitaria a declarar qual costume era aplicável para a solução do caso posto ao seu conhecimento, e as decisões das Cortes constituíam a demonstração do que o Common Law é[3].

As críticas para a escola declaratória da Common Law não tardaram, e não economizaram em sua aspereza. O processualista inglês Jeremy Bentham chegou a afirmar que, acaso a corrente declaratória fosse tida como a correta, o exercício da jurisdição se equipararia a adestramento de cachorros, ironicamente a denominar a Common Law de Dog Law.

Por sua vez, Austin[4], classificou a teoria declaratória como merecedora de categorização dentre as obras de ficção científica, já que os juízes aderentes da tese declaratória ingenuamente não acreditavam que a Common Law era produzida por eles, “mas se constituiria em algo milagroso feito por ninguém, existente desde sempre e para a eternidade, meramente declarado de tempo em tempo”.

Esses dois doutrinadores britânicos aderiram à, hoje, predominante escola da concepção positivista acerca da atividade dos juízes na Common Law, que defende que os magistrados são dotados de law-making authority, ou seja, criadores de direito, e não meros descobridores dele.

A viragem do entendimento das cortes inglesas, que passaram a admitir a vocação criativa de direito das decisões judiciais, foi passo fundamental para conferir força obrigatória aos precedentes judiciais, força esta que recebe a denominação de stare decisis.

O stare decisis exige como seu pressuposto fundamental a criação judicial do direito. Com efeito, se as decisões judiciais (precedentes) não criam direito, mas apenas o declaram, seria insustentável exigir obediência dos juízes aos precedentes. Por sua vez, se o precedente cria o direito, e o direito há de ser obedecido, a teoria constitutiva vem a calhar como base de sustentação da obrigatoriedade do precedente.

Chegado a este ponto do raciocínio é preciso esclarecer que a tradição da Common Law existia, inicialmente, desvinculada da força obrigatória dos precedentes (stare decisis). Apesar de estarem hoje ambos os conceitos umbilicalmente interligados, a Common Law, que englobava a análise dos costumes gerais dos cidadãos ingleses, não detinha o traço obrigatório dos precedentes, o que só veio a se tornar efetivo com a ideia de stare decisis e rule of precedent.

Essa distinção entre os dois conceitos é imprescindível para atestar que o stare decisis pode assentar-se em outras tradições jurisdicionais que não a Common Law, apto a ser absorvido, inclusive, pela tradição da Civil Law¸ de modo que a obrigatoriedade dos precedentes possa subsistir, embora com coloração peculiar, no nosso sistema jurídico.

Isso porque, mesmo tendo o stare decisis nascedouro dentro do sistema da Common Law, no qual encontrou terreno fértil de proliferação, nada impede que ele possa atracar suas razões nos países de tradição romanística e de direito escrito.

Diz-se que o stare decisis ganhou fôlego e espaço de crescimento nos países de tradição de Common Law, pois, por basear seus julgados essencialmente em costumes gerais, os juízes da Common Law viram na obrigatoriedade dos precedentes uma forma de conferir segurança jurídica e diminuir a margem de interpretação que poderia ser dada aos costumes.

Uma boa noção da importância que a criação do direito pelos juízes ingleses ganhou, reforçadas pelo stare decisis, pode ser extraída da seguinte passagem da obra de Marinoni[5].

O magistrado inglês teve fundamental importância na consolidação do common law – daí se falar em judge make law. O poder do juiz era o de afirmar o common law, o qual se sobrepunha ao legislativo, que, por isso, deveria atuar de modo a complementá-lo.

Aliás, na tradição do common law inglês, o Parlamento considerava as decisões proferidas pelas Cortes nos casos concretos para, a partir delas, precisar e delinear a lei decorrente da vontade comum.

Mais adiante Marinoni[6]continua:

O juiz inglês não apenas teve espaço para densificar o common law, como também oportunidade de, a partir dele, controlar a legitimidade dos atos estatais. Nesse sentido, Edward Coke – cujo papel foi muito importante, ainda que em nível doutrinário, para a contenção do arbítrio do rei – decidiu no célebre caso Boham, por volta de 1610, que as leis estão submetidas a um direito superior, o common law, e, quando isto não acontecer, vale dizer, quando não respeitarem esse direito, são elas nulas e destituídas de eficácia.

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O diminuto número de leis que inicialmente havia nos tempos da Common Law e do stare decisis ofertou largo campo de atuação criativa aos juízes ingleses. Contudo, essa aptidão inicial de o stare decisis atuar diante do enorme vácuo legislativo da antiga Inglaterra não quer dizer que este seja incompatível com um sistema de inflação legislativa.

Um sistema de respeito aos precedentes judiciais também encontra guarida em países de vasta produção legislativa, justamente porque a lei, ainda que escrita, abre margem, muitas vezes, para diversas interpretações. Mesmo nos países anglo-saxões, de tradição na Common Law, ao lado de um sistema de direito baseado no costume coexistiu um direito escrito, que não afastava a obrigatoriedade dos precedentes dos casos que envolvessem sua aplicação.

Sublinhe-se que nos países da Common Law, o direito escrito é tido como superior ao direito criado nas decisões judiciais, mas isso não afasta a obrigatoriedade dos precedentes. Os juízes devem obediência à lei e ao precedente, constituindo-se o stare decisis em verdadeira fonte de direito, embora hierarquicamente inferior à lei.

Não é à toa que hoje, nos Estados Unidos, país em que a produção legislativa é comparável ao do Brasil, o stare decisis não perdeu nem um pouco de seu fôlego e prestígio. De fato, nas cortes americanas é muito usual a citação de precedentes cuja obrigatoriedade continua a vincular as decisões vindouras, ou, ao menos, faz por exigir que o magistrado venha a se debruçar sobre a necessidade de exercitar distinguishing ou overruling.

Conclui-se, portanto, que a necessidade de densificar a Common Law conferiu maior margem de interpretação aos magistrados ingleses em suas tarefas jurisdicionais. O sistema da Civil Law, no entanto, tinha como base filosófica justamente o contrário: diminuir a quase zero a margem de interpretação do juiz, outorgando-lhe como material de trabalho um ordenamento jurídico o mais minudente possível, restando ao juiz a simples tarefa de subsumir o fato ao seu adequado enquadramento jurídico.

  Com o passar do tempo, porém, a tradição de Civil Law teve de se remodelar diante do novo perfil do legislador contemporâneo. O legislador de hoje é fortemente influenciado pelo fenômeno do constitucionalismo, que carrega em si base de cunho eminentemente principiológica.

Com o advento do constitucionalismo, a missão jurisdicional dos magistrados vinculados ao sistema da Civil Law sofreu sensível modificação. O caráter hegemônico e preponderante das normas constitucionais frente à legislação ordinária, somado à natureza aberta dos princípios constitucionais, que abundam no sistema constitucional moderno, abriu espaço de interpretação e conformação do direito aos juízes da Civil Law equiparável ao há muito deferido aos juízes da Common Law.

A doutrina dos direitos fundamentais exige da lei e da produção normativa infraconstitucional sua adequação frente ao novo paradigma constitucional. Assim, havendo na Constituição a crescente utilização de princípios, que são normas caracterizadas exatamente por sua falta de densidade, abertas ao entendimento do julgador e suscetíveis de modelamento a partir do caso concreto, há de se admitir que o campo de atuação dos juízes da Civil Law passou a se parecer, em muito, ao tradicional campo de atuação dos juízes da Common Law, reservando-lhes a nova jurisdição constitucional profundo papel interpretativo e de compreensão.

Diante de tal cenário, a convergência e a aproximação da atuação judicial dos juízes da Common Law e da Civil Law foram inevitáveis. Verdadeiramente, muito se assemelham os métodos decisórios de ambas as tradições, e, especialmente, há forte coincidência na missão de densificar para o caso concreto os múltiplos princípios e as miríades de interpretações possíveis abstratamente.

Aos poucos, a Civil Law abandona a exacerbada importância que conferia à codificação, e sua centralidade na vida jurídica do Estado, dando ensejo ao protagonismo cada vez mais evidente do neoconstitucionalismo, e sua incansável vocação principiológica e polissêmica.

Os papéis dos magistrados de ambas as tradições também passam a se assemelhar pelo viés criativo que a jurisprudência passa a desempenhar, haja vista a carga inovadora cada vez mais presente nas sentenças da Civil Law, que assim como já reconhecido há muito na tradição da Common Law, passa a avocar seu talento para a criação do direito, deixando para as poeiras da Revolução Francesa o mote de juiz La bouche de La loi.

Além do viés principiológico, o neoconstitucionalismo recheou o ordenamento jurídico infraconstitucional de cláusulas gerais, atribuindo ao intérprete a tarefa de extrair-lhes a exata dimensão e significado, no que ganha o juiz larga margem de discricionariedade na resolução dos conflitos postos ao seu conhecimento.

As cláusulas gerais não dão os exatos contornos e o delineamento preciso de qual atitude judicial haverá de ser tomada. Apenas aponta num sentido, sugere uma direção e define parâmetros e valores a serem perseguidos e refletidos na sentença.

Conlui-se que toda essa convergência das tradições da Civil Law e da Common Law acaba por implicar no abandono do dogma da segurança jurídica por meio unicamente da lei, sempre defendido pela Civil Law, para enraizar a necessidade de alcançar a segurança por intermédio das próprias decisões judiciais, conferindo aos precedentes, cada vez mais, força obrigatória e vinculante.

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Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROSA, Luiza. Paralelos das tradições de Commom Law e Civil Law e sua aproximação na atualidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4652, 27 mar. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/45881. Acesso em: 25 abr. 2024.

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Texto retirado do ar, por solicitação da autora pelo e-mail jusnavigandi@jus em 8 de fevereiro de 2016 14:59. "Gostaria de tirar do ar meus artigos, pois percebi que encontram-se desatualizados."

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