Artigo Destaque dos editores

As múltiplas inconstitucionalidades e equívocos dos projetos de lei “Escola sem Partido”

Exibindo página 1 de 2
30/01/2016 às 12:24
Leia nesta página:

Os projetos de lei “Escola sem Partido” estão acompanhados de uma cortina de fumaça (belos discursos) e enunciados que, se não forem analisados com cautela, poderão trazer estragos enormes para o desenvolvimento da ciência e do próprio Estado democrático de Direito.

1. INTRODUÇÃO

Tema bastante polêmico que tem causado enormes discussões no âmbito das Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais espalhadas pelo Brasil diz respeito ao Projeto de Lei da “Escola sem Partido”, que apresenta um falso discurso de neutralidade escolar e de combate aos maus professores.

De fato, o conteúdo, caso não observado com cautela, mostra ao leitor, especialmente o leigo no assunto, um projeto bom para a educação brasileira. Todavia, conforme veremos neste artigo, o projeto apresenta uma série de inconstitucionalidades, abertura para arbitrariedades (ao empregar, nas proibições, termos abertos e indeterminados) e má-fé (ao excluir intencionalmente a liberdade constitucional de ensinar).

O exemplo maior vem da Câmara do Deputados. Trata-se do projeto de lei nº 867/2015, de autoria do deputado federal Izalci Lucas (PSDB/DF).

Trata-se de um festival de Ctrl C/Ctrl V, que se propaga pelas Casas Legislativas do Brasil, levando vereadores e deputados a enormes enganos acerca do conteúdo perigoso do projeto.

Podemos citar como exemplos, o projeto de lei nº 001/2015, da deputada distrital Sandra Faraj (Solidariedade/DF); o projeto de lei nº 2974/2014, do deputado estadual Flávio Bolsonaro (PP/RJ); o projeto de lei nº 190/2015, do deputado estadual Marcel van Hatten (PP/RS), o projeto de lei 008/2015, do vereador Vidal Negreiros, de Picuí-PB.

Em Alagoas, após o projeto “Escola Livre” ter sido aprovado por unanimidade pela Assembleia Legislativa, o Governador Renan Filho, após mobilização contrária dos professores, bem como do autor deste artigo, vetou o projeto por inconstitucionalidade.

De uma maneira geral, com alterações sutis, a justificativa de cada projeto de lei possui o seguinte conteúdo: 

É notório que professores e autores de livros didáticos vêm-se utilizando de suas aulas e de suas obras para tentar obter adesão dos estudantes a determinadas correntes políticas e ideológicas; é para fazer com que eles [os estudantes] adotem padrões de julgamento e de conduta moral – especialmente sexual – incompatíveis com os que lhes são ensinados por seus pais ou responsáveis. Diante dessa realidade [...] entendemos que é necessário e urgente adotar medidas eficazes para prevenir a prática da doutrinação política e ideológica nas escolas, e a usurpação do direito dos pais a que seus filhos recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções. (P.L. 867/2015)

Diante disso, passemos a analisar apenas alguns aspectos do projeto.


2. DO DIREITO FUNDAMENTAL À LIBERDADE DE ENSINAR, PESQUISAR E DIVULGAR O PENSAMENTO, A ARTE E O SABER (ART. 205, II DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL)

Cabe aqui um dado importante: todos os projetos de lei subtraíram dolosa e intencionalmente a norma constitucional disposta no art. 205, II da Constituição Federal, que fala da liberdade de ensinar.

Ao tratar do sistema constitucional de ensino, a Carta Magna prescreveu, em seu art. 205, II, que o ensino será ministrado com base na liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber.

Os direitos fundamentais constituem-se em conquistas históricas da humanidade contra o arbítrio dos poderes nas esferas das liberdades da pessoa humana, sendo desenvolvidos ao longo das gerações, recebendo influxos das culturas e do tempo, chegando aos dias atuais apresentando diversas facetas.

Ao longo da Constituição Federal de 1988, encontramos diversos direitos fundamentais que são exercidos de forma individual e garantidos por meio de diversos instrumentos postos à disposição do indivíduo.

Nesse caminhar, percebemos que as normas legais dispostas nos projetos da Escola sem Partido agridem, de forma grave, esse direito fundamental da pessoa humana, uma vez que tentam pautar o professor com diversas regras obrigatórias, como a proibição de veiculação de ideias que “possam estar em conflito com as convicções morais” ou que “possam induzir a um determinado pensamento”.

No sistema constitucional, é possível a restrição à direito fundamental, mas essa restrição não poderia vir, como foi o caso, por meio de termos abertos e indeterminados, sob pena de resultar em arbitrariedades e agressão ao devido processo legal substantivo.


3. DA INICIATIVA PRIVATIVA DO CHEFE DO PODER EXECUTIVO

Conforme se observa em cada projeto apresentado nas Casas Legislativas, ao veicular princípios e normas aplicáveis na estrutura interna do Poder Executivo (Secretarias de Educação, em geral) como deveres, vedações e punições aplicáveis ao sistema educacional de ensino, o projeto de lei “Escola sem Partido” deve ser de iniciativa legislativa privativa do Chefe do Poder Executivo, uma vez que, em nome do princípio da simetria, as iniciativas de apresentação de projetos legislativos devem guardar harmonia com o disposto na Constituição Federal.

Sobre isso, a Constituição Federal, prescreve:

Art. 61.

§ 1º São de iniciativa privativa do Presidente da República as leis que:

(...)

II - disponham sobre:

(...)

c) servidores públicos da União e Territórios, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria; (grifo nosso)

Portanto, caso um projeto de lei de idêntico conteúdo ao Projeto de Lei “Escola sem Partido”, seja apresentado por um parlamentar, resta configurada uma inconstitucionalidade formal por vício de iniciativa.

Outro aspecto a se destacar, é que alguns projetos incluem regras de concursos públicos para professores, bem como a realização de cursos por parte do Poder Executivo, este último gerando gastos financeiros, cuja iniciativa também competente privativamente ao Chefe do Poder Executivo.


4. DA COMPETÊNCIA PRIVATIVA DA UNIÃO PARA LEGISLAR SOBRE A TEMÁTICA

É importante que o leitor preste atenção a um aspecto desse assunto: a competência para legislar sobre a temática é privativa da União, de acordo com o art. 22, XXIV da Constituição Federal, que preconiza que compete à União legislar privativamente sobre diretrizes e bases da educação nacional. É por essa razão que já existe uma lei federal que elenca os princípios da educação e deveres do Estado e do Município na educação escolar. Trata-se da Lei Diretrizes e Bases da Educação Nacional – Lei nº 9.394/96.

Importante destacar que, aos Estados também é atribuída a competência para legislar sobre educação (art. 24, IX) no âmbito da legislação concorrente, que engloba a possibilidade de legislar da União, dos Estados e do Distrito Federal. Perceba-se, também, que cabe aos Municípios legislar sobre assuntos de interesse local e suplementar a legislação federal e a estadual no que couber (art. 30, I e II).

Assim, a respeito dos Estados e do Distrito Federal, vale lembrar que a Constituição Federal outorgou-lhes a competência suplementar para legislar sobre educação (art. 24, IX, § 1º e § 2º), no âmbito da legislação concorrente. Nesse ponto, a norma constitucional é clara ao preconizar que a União estabelecerá normas gerais sobre educação, cabendo aos Estados expedirem normas suplementares (art. 24, §1º e §2º). Portanto, a competência suplementar dos Estados e do Distrito Federal no âmbito da educação é para atender às peculiaridades locais.

Na hipótese de não existir nenhuma lei geral da União sobre educação, caberia aos Estados exercer a competência legislativa plena, para atender a suas peculiaridades (art. 24, § 3º). Todavia, a superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário (art. 24, § 4º).

Portanto, fica fácil perceber, então, que as leis dos Estados-membros, do Distrito Federal e dos Municípios não podem, em hipótese alguma, contrariar disposições da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, uma vez que esta é uma norma geral expedida pela União no âmbito da legislação concorrente.

Como percebemos, a maioria das questões que envolvem o conteúdo do projeto “Escola sem Partido” não pertence ao âmbito de particularidade do Estado, do Distrito Federal ou do Município, mas sim, a uma temática a ser debatida em âmbito nacional, motivo pelo qual não se encaixa no conceito de particularidade pertencente à competência suplementar dessas entidades federativas.

Nesse caminhar, a Lei Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/96), em seus arts. 10 e 11, oportuniza aos Estados-membros e Municípios o exercício de algumas incumbências, entre as quais, não há nada referente à temática disposta no projeto de lei “Escola sem Partido”. À vista disso, observe-se a legislação apontada:

 Art. 10. Os Estados incumbir-se-ão de:

I - organizar, manter e desenvolver os órgãos e instituições oficiais dos seus sistemas de ensino;

II - definir, com os Municípios, formas de colaboração na oferta do ensino fundamental, as quais devem assegurar a distribuição proporcional das responsabilidades, de acordo com a população a ser atendida e os recursos financeiros disponíveis em cada uma dessas esferas do Poder Público;

III - elaborar e executar políticas e planos educacionais, em consonância com as diretrizes e planos nacionais de educação, integrando e coordenando as suas ações e as dos seus Municípios;

IV - autorizar, reconhecer, credenciar, supervisionar e avaliar, respectivamente, os cursos das instituições de educação superior e os estabelecimentos do seu sistema de ensino;

V - baixar normas complementares para o seu sistema de ensino;

VI - assegurar o ensino fundamental e oferecer, com prioridade, o ensino médio a todos que o demandarem, respeitado o disposto no art. 38 desta Lei;

VII - assumir o transporte escolar dos alunos da rede estadual.

Parágrafo único. Ao Distrito Federal aplicar-se-ão as competências referentes aos Estados e aos Municípios.

Art. 11. Os Municípios incumbir-se-ão de:

I - organizar, manter e desenvolver os órgãos e instituições oficiais dos seus sistemas de ensino, integrando-os às políticas e planos educacionais da União e dos Estados;

II - exercer ação redistributiva em relação às suas escolas;

III - baixar normas complementares para o seu sistema de ensino;

IV - autorizar, credenciar e supervisionar os estabelecimentos do seu sistema de ensino;

V - oferecer a educação infantil em creches e pré-escolas, e, com prioridade, o ensino fundamental, permitida a atuação em outros níveis de ensino somente quando estiverem atendidas plenamente as necessidades de sua área de competência e com recursos acima dos percentuais mínimos vinculados pela Constituição Federal à manutenção e desenvolvimento do ensino.

VI - assumir o transporte escolar dos alunos da rede municipal.

Parágrafo único. Os Municípios poderão optar, ainda, por se integrar ao sistema estadual de ensino ou compor com ele um sistema único de educação básica.

Nesse diapasão, percebe-se que os Estados-membros e os Municípios não poderão contrariar, em hipótese alguma, a legislação federal no âmbito da legislação concorrente do art. 24 da Constituição Federal.

O Supremo Tribunal Federal, ao tratar de caso que envolveu o mesmo artigo da Constituição Federal, decidiu que “é inconstitucional, por vício formal, lei estadual que inaugura relação jurídica contraposta à legislação federal que regula normas gerais sobre o tema” (STF - ADI 5163/GO).

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

É justamente nesse ponto que se impõe observar que a LDB atribui aos estabelecimentos de ensino à incumbência de elaborar e executar sua proposta pedagógica.

À vista disso, não poderá o Estado-membro ou o Município interferir na autonomia dos estabelecimentos de ensino para elaborar suas propostas pedagógicas, uma vez que a norma geral expedida pela União, ou seja, a Lei Diretrizes e Bases da Educação Nacional – Lei nº 9.394/96, outorgou aos estabelecimentos de ensino a incumbência de elaborar e executar sua proposta pedagógica, não fazendo menção a qualquer interferência de pai de aluno ou qualquer espécie de influência externa relacionada à educação moral dos pais. Nesse prisma, observe-se o conteúdo da lei:

Art. 12. Os estabelecimentos de ensino, respeitadas as normas comuns e as do seu sistema de ensino, terão a incumbência de:

I - elaborar e executar sua proposta pedagógica;

Não se pode esquecer, também, conforme visto em item anterior, que o art. 206, II, da Constituição Federal outorga, dentro do sistema educacional de ensino, a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber, razão pela qual tais interferências pautadas por tais projetos de lei constituem afronta grave aos valores mais básicos da Constituição Federal.

Por essa razão, entendemos que uma lei estadual, distrital ou municipal não poderia, em hipótese alguma, estabelecer qualquer limitação, pautas ou interferências nas autonomias pedagógicas da escolas.


5. DA IMPOSSIBILIDADE DE ESTADOS E MUNICÍPIOS VEICULAREM NORMAS SOBRE DIREITO CIVIL

Alguns projetos de lei da Escola sem Partido apresentam normas a serem aplicadas aos contratos de prestação de serviços educacionais em escolas confessionais.

Aqui, cabe uma rápida observação: o art. 22, I, da Constituição Federal prescreve que compete à União legislar sobre direito civil.

À vista disso, o próprio Supremo Tribunal Federal tem anulado diversas normas estaduais e municipais que tentam impor normas a contratos entre partes no mundo jurídico.


6. DAS AUTONOMIAS DAS UNIVERSIDADES

Ao não distinguir em que parte do sistema educacional de ensino o referido projeto de lei terá sua aplicação, englobará, como consequência lógica, as Universidades, razão pela qual resta aflorada mais uma inconstitucionalidade.

Em verdade, a interferência do Poder Legislativo na autonomia daquilo que será debatido entre os estudantes das Universidades é atitude que vai de encontro a preceitos constitucionais básicos, uma vez que dispõe o art. 207, da Constituição Federal que as Universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, (...).

A autonomia didática diz respeito à forma de transmissão do conhecimento, que oportuniza às Universidades a capacidade de organizar o ensino, a pesquisa e as atividades de extensão (RANIERI, Nina. Autonomia Universitária: as Universidades Públicas e a Constituição de 1988. São Paulo: EDUSP, 1994, p. 117-118).

Já a autonomia científica vem reforçar o disposto no art. 206, II, que dispõe sobre a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber. Refere-se aos métodos de pesquisa utilizados pela Universidade, constituindo-se em garantia essencial para o desenvolvimento do país.

Assim, a vigência da lei acarretará avarias na liberdade didático-científica das pesquisas universitárias, causando enormes prejuízos para o presente e o futuro da comunidade brasileira e mundial.


7. DA EXIGÊNCIA DE NEUTRALIDADE

Nesse festival de CTRL C/CTRL V, os projetos de lei são introduzidos com a seguinte norma:

Art. 1º Fica criado, no âmbito do sistema estadual (ou municipal) de ensino, o Programa “Escola sem Partido”, atendendo os seguintes princípios: I – neutralidade política, ideológica e religiosa do Estado; (…)

Ora, exigir neutralidade no âmbito do ensino e da pesquisa escolar e universitária, coloca o sistema de ensino do Estado em posição delicada, até por que, não existe neutralidade humana e, por conseguinte, não há neutralidade da ciência. Devido a essas circunstâncias, o objetivo dessa norma não poderá ser alcançado, uma vez que se sabe que a neutralidade é impossível de ser alcançada.

Mas o enunciado traz uma letra morta ou sem efeito social algum?

De fato, o conteúdo da norma possui um viés simbólico muito grande, pondo os agentes estatais de ensino em posições delicadas ante as diversas interpretações e falhas humanas de terceiros, que terão direito de exigir punições em caso de ausência dessa “neutralidade”.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Othoniel Pinheiro Neto

Corregedor Geral da Defensoria Pública do Estado de Alagoas. Defensor Público. Mestrando em direito público pela Universidade Federal de Alagoas - UFAL. Especialista em Direito Processual, bem como, em Direito Eleitoral pelo CESMAC (Centro de Estudos Superiores de Maceió). Professor de Direito Constitucional.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PINHEIRO NETO, Othoniel. As múltiplas inconstitucionalidades e equívocos dos projetos de lei “Escola sem Partido”. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4595, 30 jan. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/46182. Acesso em: 20 abr. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos