4. DA CONCORRÊNCIA DO CÔNJUGE SUPÉRSTITE ASSEMELHADA À CONCORRÊNCIA DO COMPANHEIRO COM OS DESCENDENTES DO DE CUJUS.
4.1 - A TEORIA DEFENDIDA POR ROBERTO SENISE LISBOA
Os defensores do posicionamento que será exposto interpretam o artigo 1829,I, do Código Civil fazendo um paralelo entre o texto legal e a atual evolução das relações afetivas. Destarte, segundo a interpretação em comento, no casamento realizado sob o regime da comunhão parcial de bens, deve-se estabelecer um regime jurídico semelhante ao disposto no artigo 1.790 do Código Civil.
Assim dispõe o referido artigo:
Art. 1.790. A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes:
I - se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho;
II - se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles;
III - se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança;
IV - não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança.
(BRASIL, Lei 10.406,2002, art. 1.790).
Convém fazer uma breve análise sobre o artigo em comento. Segundo exemplo dado por Theotonio Negrão (Negrão, 2011, p. 601), no que tange ao inciso I: “Tendo sido onerosamente adquiridos durante a união estável bens em valor equivalente a R$ 6.000,00, e havendo dois descendentes comuns, o companheiro recebe R$ 3.000,00 a título de meação, mais R$ 1.000,00 a título de herança, e cada descendente herda R$ 1.000,00”.
Já em relação ao inciso II:
tendo sido onerosamente adquiridos durante a união estável bens em valor equivalente a R$ 6.000,00, e havendo dois descendentes exclusivos do de cujus, o companheiro recebe R$ 3.000,00 a título de meação, mais R$ 600,00 a título de herança, e cada descendente herda R$ 1.200,00
(NEGRÃO, Theotonio, 2011, p.601).
Portanto, percebe-se claramente uma vantagem do companheiro em relação ao cônjuge casado em comunhão parcial de bens se adotarmos o entendimento da doutrina majoritária, qual seja, que este último só concorre com os descendentes do de cujus se ele houver deixado bens particulares, e tal concorrência se dará unicamente em relação a tais bens. Conforme pode ser observado, o companheiro irá concorrer independentemente da existência de bens particulares e sobre todo o acervo comum.
Nesse sentido, faz-se oportuno observar as reflexões do Promotor de Justiça, Roberto Senise Lisboa:
A lei civil não teria, atualmente, qualquer razão para impedir o concurso se o de cujus não tivesse deixado bens particulares. Até mesmo diante do fato de que, na união estável, o convivente sempre participará da sucessão com os herdeiros necessários do de cujus, sem qualquer restrição, salvo aquela que estabelece limites de percentual quando o descendente herdeiro for apenas filho do autor da herança. Esse comparativo entre direitos outorgados pela lei civil ao cônjuge sobrevivente e ao convivente é inevitável para demonstrar-se o equívoco legislativo efetuado, mediante um tratamento desigual e preconceituoso.
(LISBOA, 2010, p. 361).
Percebe-se que, na prática, o defendido por Roberto Lisboa é muito semelhante ao posicionamento de Maria Berenice dias, porém, sem o grande problema de condicionar-se a qualidade de herdeiro do cônjuge supérstite à ausência de bens particulares deixados pelo de cujus, o que, conforme já foi visto, daria margem a fraudes.
Lisboa ainda destaca:
Se o convivente se beneficia em qualquer hipótese com a sucessão, bastando que seja reconhecida, ainda que incidentalmente, a união estável, sendo os efeitos patrimoniais equiparados aos da comunhão parcial de bens, não há razão para adotar-se uma interpretação que suprime o direito do cônjuge sobrevivente de concorrer à toda a sucessão, se casado em comunhão parcial de bens. (LISBOA, 2010, p. 364).
Portanto, para o Promotor, necessário seria a modificação legislativa do artigo 1829,I do Código Civil a fim de estabelecer entre os cônjuges casados pelo regime da comunhão parcial de bens, um regime jurídico sucessório semelhante ao estabelecido, pelo artigo 1.790 do mesmo dispositivo, entre os companheiros.
4.2. DO PROJETO DE LEI Nº 508, DE 2007
No sentido de atenuar as diferenças entre o regime sucessório da união estável e o do casamento realizado pelo regime da comunhão parcial de bens, foi criado o projeto de Lei n° 508, de 2007, de autoria do Deputado Sérgio Barradas Carneiro, relatoria da Deputada Jô Moraes. Tal projeto visa revogar o artigo 1.790 do Código Civil de 2002 e alterar o artigo 1.829, do referido dispositivo.
A redação do novo artigo 1829 sugerida pelo Projeto de Lei foi proposta pelo IDBFam (Instituto Brasileiro de Direito de Família) e assim determina:
Art. 1829. A sucessão legítima defere-se na seguinte ordem:
I – aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente ou com o companheiro sobrevivente;
II – aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente ou com o companheiro sobrevivente;
III - ao cônjuge sobrevivente ou ao companheiro sobrevivente;
IV – aos colaterais.
Parágrafo único. A concorrência referida nos incisos I e II dar-se-á, exclusivamente, quanto aos bens adquiridos onerosamente, durante a vigência do casamento ou da união estável, e sobre os quais não incida direito à meação, excluídos os sub-rogados.6
(Projeto de Lei PL 508 de 2007).
Conforme pode ser observado, a redação dada pelo Projeto de Lei em comento não é exatamente a solução sugerida por Roberto Senise Lisboa, uma vez que permite a concorrência do cônjuge supérstite com os descendentes do de cujus também em relação aos bens particulares por ele deixados.
4.3. DOS PROBLEMAS COM O PROJETO DE LEI 508/2007
Um dos principais motivos para justificar a revogação do artigo 1.790 e a nova redação do artigo 1.829 - ambos do Código Civil-, segundo os defensores do projeto de lei 508/2007 é que, com a atual redação dos dispositivos em comento, no que tange aos direitos sucessórios, a união estável é favorecida em relação ao casamento realizado pelo regime da comunhão parcial de bens.
Porém, no regime da comunhão universal de bens o cônjuge supérstite não herda sob a meação do de cujus. Destarte, poderão ocorrer situações em que não só o casamento realizado pelo regime da comunhão parcial de bens, mas também a própria união estável, garantam mais proteção e benefícios ao cônjuge ou companheiro do que o casamento pela comunhão universal de bens.
Imaginemos a seguinte hipótese: “A” casa-se com “B” pelo regime da comunhão universal de bens. No momento do casamento, “A” não possuía nenhum bem particular de valor considerável, apenas alguns bens móveis (roupas, materiais de trabalho etc). Ao longo da vida de casados, “A” e “B” tiveram dois filhos e construíram um patrimônio avaliado em R$ 600.000,00 (seiscentos mil reais). Quando “A” morre, de acordo com o estabelecido regime de comunhão adotado pelo casal, “B” terá direito apenas a sua meação, ou seja, R$ 300.000,00 (trezentos mil reais), os outros R$ 300.000,00 (trezentos mil reais) serão divididos entre os dois filhos, herdando cada um R$ 150.000,00 (cento e cinquenta mil reais).
Cônjuge supérstite: R$ 300.000,00;
Descendente 1: R$ 150.000,00;
Descendente 2: R$ 150.000,[00].
Todavia, se “A” e “B” vivessem em união estável – ressalta-se aqui que o mesmo ocorreria se fossem casados pelo regime da comunhão parcial de bens - e as alterações propostas pelo Projeto de Lei 508/2007 estivessem em vigor, “B” herdaria os R$ 300.000,00(trezentos mil reais) referentes à sua meação, mais R$ 100.000,00 de herança do de cujus. Os filhos, por sua vez, herdariam, cada um, apenas R$ 100.000,00 (cem mil reais).
Portanto, percebe-se que o Projeto de Lei 508/2007 não resolve o problema a que se propôs, qual seja, impedir que a união estável garanta mais direitos que o casamento. O que o Projeto de Lei tenta fazer é apenas mudar o local de sua incidência. Se o problema estava na vantagem auferida à união estável se comparada com o casamento em regime da comunhão parcial de bens, com as alterações propostas pelo Projeto, ele passaria a residir na vantagem daquele que vive em união estável em relação àquele casado pelo regime da comunhão universal de bens.
5. CONCORRÊNCIA DO CÔNJUGE SUPÉRSTITE COM OS DESCENDENTES DO DE CUJUS APENAS NOS BENS PARTICULARES.
Trata-se de corrente majoritária na doutrina, sendo defendida por autores como: Theotonio Negrão, Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery, Carlos Roberto Gonçalves, Guilherme Couto de Castro, Silvio de Salvo Venosa, entre outros. Segundo esses autores, o cônjuge supérstite casado pelo regime da comunhão parcial de bens concorre com os descendentes do de cujus apenas nos bens particulares por ele deixados.
O sentido da lei, em princípio, foi proteger o cônjuge quando ele nada recebe a título de meação (VENOSA, 2005, p. 138). Acrescenta-se que tal proteção deve ocorrer somente quando não vai diametralmente contra a vontade clara do de cujus. Destarte, na hipótese de casamento realizado em comunhão universal de bens, como o patrimônio será obrigatoriamente dividido, não há se falar em recebimento de herança pelo cônjuge sobrevivente. Igualmente, no regime de separação obrigatória, o consorte sobrevivo não herdará, sob pena de haver fraude ao sistema. De maneira análoga, o cônjuge supérstite não será herdeiro se for casado pelo regime da separação convencional de bens, pois, caso contrário, haveria claro desrespeito à expressa vontade do de cujus.
Nesse sentido, convém observar que diante de tantos posicionamentos acerca do disposto no inciso I do artigo 1.829 do Código Civil e do grande congestionamento no judiciário causado pelas constantes discussões sobre o tema, o Conselho da Justiça Federal consolidou, na III Jornada do Direito Civil, o enunciado 270, que determina:
O art.1829, inc. I, só assegura ao cônjuge sobrevivente o direito de concorrência com os descendentes do autor da herança quando casados no regime da separação convencional de bens ou, se casados nos regimes da comunhão parcial ou participação final nos aquestos, o falecido possuísse bens particulares, hipóteses em que a concorrência restringe-se a tais bens, devendo os bens comuns (meação) ser partilhados exclusivamente entre os descendentes.
(III Jornada de Direito Civil,2005, p. 70).
Deste modo, convém analisar como ficaria a divisão de bens na seguinte hipótese: consorte falecido deixa um cônjuge com quem foi casado pelo regime da comunhão parcial de bens e dois filhos. O patrimônio do autor no momento do falecimento era de R$ 1.200.000,00 (um milhão e duzentos mil reais) em bens comuns e R$ 60.000 (sessenta mil reais) em bens particulares.
Divisão dos bens comuns deixados pelo de cujus:
Cônjuge supérstite: R$ 600.000,00;
Descendente 1: R$ 300.000,00;
Descendente 2: R$ 300.000,[00].
Divisão dos bens particulares deixados pelo de cujus:
Cônjuge supérstite: R$ 20.000,00;
Descendente 1: R$ 20.000,00;
Descendente 2: R$ 20.000,[00].
5.1. DOS PROBLEMAS COM ESSE PENSAMENTO
Uma das críticas acerca dessa interpretação dá-se em relação à autonomia de vontade dos nubentes. Para os que discordam dessa interpretação, ao optar pelo regime da comunhão parcial de bens os nubentes estão declarando expressamente a vontade de impedir a comunicabilidade dos bens particulares de cada um e garantir a comunicabilidade dos bens adquiridos, onerosamente, em conjunto. Portanto, permitir a concorrência do cônjuge sobrevivente com os descendentes e ascendentes do de cujus no que tange aos bens particulares deixados por este último, violaria sua vontade (a do consorte falecido) expressa.
Todavia, a principal crítica à essa corrente é a de que, conforme visto no item 4 deste artigo, sua aplicação garante menos direitos ao casamento feito sob o regime da comunhão parcial de bens do que possui a união estável.
5.2. DA ARGUMENTAÇÃO FAVORÁVEL
Primeiramente, no que diz respeito à crítica do desrespeito a autonomia da vontade dos noivos que realizam o casamento sob o regime da comunhão parcial de bens, é preciso ter em mente que, uma vez que tal interpretação seja adotada, não há se falar em desrespeito à autonomia de vontade dos contratantes no contrato de casamento, pois, no momento da escolha do regime de comunhão de bens, os nubentes terão ciência de que o regime da comunhão parcial faz do consorte sobrevivo herdeiro do consorte falecido no que tange aos bens particulares. Se os nubentes tiverem ciência da interpretação da lei e ainda assim optarem em realizar o casamento pelo regime da comunhão parcial, estarão declarando que é exatamente esta a vontade deles, uma vez que o ninguém é obrigado a adotar determinado regime de bens, sendo o casal livre para criar seu próprio regime de bens, com regras diferentes daquelas previstas no Código, desde que não viole as disposições legais.
Ainda sobre as vantagens do pensamento em análise, é salutar observar as reflexões de Guilherme Couto de Castro, Juiz Federal da seção Judiciária do Rio de Janeiro e autor do projeto aprovado III Jornada de Direito Civil. Nesse sentido, argumenta o respeitável pensador:
a) Se a ratio essendi da proteção sucessória do cônjuge foi exatamente privilegiar aqueles desprovidos de meação, a concorrência sobre todo o acervo iria de encontro à própria mens legis. O intérprete que assim procede despreza a vontade do legislador, a qual, independentemente da eterna polêmica entre mens legis e mens legislatoris, sempre constituirá critério válido para se penetrar no sentido e alcance de qualquer norma jurídica. Por outro lado, ao se privilegiar quem já era detentor de meação em detrimento das gerações futuras do autor da herança, representadas pelos seus descendentes, deixa-se de atender o princípio da sociabilidade;
b) Assegurar a concorrência sobre a totalidade da herança de acordo com a existência ou não de bens particulares pode dar ensejo a fraudes, como na hipótese em que o cônjuge moribundo recebe doação de um determinado bem (art.1659,I), feita por suposto amigo, na verdade amante de sua esposa, com o único objetivo de assegurar a concorrência desta sobre os bens integrantes da meação do marido. Admitir tal possibilidade implicaria violação ao principio da eticidade;
c) A interpretação de que a existência de qualquer bem particular assegura o direito de concorrência no acervo total retira do dispositivo todo sentido prático. Afinal de contas, que pessoa conhecemos não possuiria sequer um bem particular, ainda que sejam aqueles de uso pessoal (art. 1659, V)? Partindo do pressuposto de que não se poderia condicionar a natureza jurídica de bens particulares ao valor deles, podendo concluir que os trapos usados pelo mendigo são bens particulares tanto quanto o vestido de Chanel da rica senhora. Sendo assim, o dispositivo constituiria letra morta, pois os casados sob o regime da comunhão parcial concorreriam com os descendentes em qualquer situação. Ora, tal interpretação também vulnera o princípio da operabilidade;
d) O princípio da unidade da herança não pode ser visto como dogma, nem o seu rompimento pelo disposto na parte final do inciso I do art. 1829 implica qualquer prejuízo ao sistema. Trata-se (o inc. I) de exceção ao princípio da unidade, à semelhança do que existe em diversos outros ordenamentos jurídicos, como o argentino, o qual, nesse sentido, foi mais claro que o nosso Código Civil.
(CASTRO, 2005. P. 414 - 115).
Tal argumentação foi escolhida por elencar vários dos principais argumentos dos defensores da concorrência do cônjuge supérstite com os herdeiros do de cujus apenas nos bens particulares.