RESUMO:A presente pesquisa dedica-se a analisar o papel das Agências Reguladoras no Brasil, com um enfoque principal no seu Poder Normativo, tema relevante no atual modelo da Administração Pública brasileira e de intenso debate entre os estudiosos do Direito Administrativo. Para tanto, fez-se mister abordar as características essenciais das Agências Reguladoras brasileiras, a fim de entender-se em que medida a regulação realizada pelas Agências dirige as áreas disciplinadas. Em seguida, adentrou-se ao tema do Poder Normativo das Agências Reguladoras, tecendo-se apontamentos no tocante às principais teses e discussões doutrinárias, considerando-se, ainda, o ordenamento jurídico brasileiro sobre o tema. Discutiu-se a respeito dos diferentes entendimentos e, por fim, constatou-se que não há pensamento doutrinário uníssono acerca da fundamentação do Poder Normativo das Agências, sendo certo, contudo, que o mesmo deve se limitar a questões técnicas e respeitar os limites constitucionais.
Palavras-chave: Agências Reguladoras. Poder Normativo. Direito Administrativo. Administração Pública.
1 INTRODUÇÃO
Com este trabalho visa-se compreender o papel das Agências Reguladoras na regulação dos setores socioeconômicos e dos serviços públicos no Brasil, tendo em vista que, após a crise do Estado Social, passou-se a adotar uma postura mais indireta de intervenção, tendo por finalidade garantir maior eficiência nas atividades para, consequentemente, concretizar o interesse público.
Nesse contexto, o estudo tem como ponto de partida o entendimento de que são diversas as formas de intervenção do Estado na sociedade, intervenções essas embasadas nos princípios da Supremacia do Interesse Público sobre o particular e o da Indisponibilidade do Interesse Público.
Uma das formas de intervenção é a na economia, sendo que o grau de intervenção dependerá da concepção estatal e também dos problemas de mercado.
Fato é que a intervenção do Estado na Economia tem como premissa a ideia de que, por vezes, o comportamento intencional dos agentes de mercado leva a falhas, de maneira que o Estado deve agir para solucionar tais questões, reequilibrando aquele determinado setor.
Nesse contexto é importante ressaltar que a intervenção do Estado na economia nem sempre se dará de forma direta por meio da monopolização ou pela participação direta. Há também a intervenção indireta “sobre” a economia, na qual o Estado prefere a regulação dos setores de mercado. E nesse ponto surge a relevância das Agências Reguladoras.
Assim, este trabalho buscará entender as Agências Reguladoras no Brasil, sua atuação e relevância, considerando-se sua origem e evolução.
Pode-se afirmar que o movimento de “agentificação” ganhou força no Brasil na década de 1990, quando a relativização dos monopólios e o movimento de desestatização levou à privatização de empresas estatais por diversos mecanismos, como a alienação de ações, atos de incorporação, fusão e cisão, ente outros. Nesse passo, houve o fortalecimento do movimento regulatório e diretivo do Estado sobre a atuação dos particulares em setores da economia.
Não é só. Esse movimento de privatização, com a diminuição da atuação direta do Estado, também fez com que inúmeros serviços públicos passassem a ser prestados também pela iniciativa privada, de forma a garantir maior eficiência.
Nesse ímpeto de intervenção indireta, o Estado manteve seu poder de regulamentação e fiscalização, sendo as Agências Reguladoras Pessoas Jurídicas criadas exatamente com a finalidade de disciplinar e fiscalizar técnicas em um determinado setor, impondo normas para a conduta dos atuantes, bem como sanções para o caso de inobservância daquelas.
Vê-se, portanto, a relevância das Agências Reguladoras no modelo estatal atual, tornando-se imperioso o estudo do seu papel regulador a partir de seu poder normativo. Dessa forma, neste trabalho serão apresentadas as principais visões doutrinárias acerca do tema, sendo certo que o ponto principal de debate é no tocante ao fundamento desse poder normativo e os seus limites.
Deve-se ter em vista que, ao disciplinarem questões técnicas para ajustar determinado setor de mercado, as Agências Reguladoras emitem atos administrativos com forte caráter normativo, no sentido de determinarem regras a serem respeitadas. Obviamente, os atos emanados pelas Agências Reguladoras não são leis e também não devem ser confundidos com decretos regulamentares do titular do Poder Executivo visando o fiel cumprimento das leis, diferenciação essa que será realizada ao longo deste trabalho, ao final do qual se assumirá um posicionamento acerca da questão.
Assim, pela peculiaridade própria dos atos de regulação emitidos pelas Agências Reguladoras cabe um estudo mais aprofundado sobre a abrangência, destinatários e os limites desse intitulado “Poder Normativo”, sobretudo considerando-se o princípio da Separação de Poderes e tendo-se em mente a vedação, em regra, de inovação no ordenamento jurídico brasileiro a partir de atos normativos secundários.
2 AS AGÊNCIAS REGULADORAS NO BRASIL
2.1 SURGIMENTO E LINHAS GERAIS
Como já aduzido na introdução deste trabalho, o Estado brasileiro, sobretudo na década de 1990, visando afastar crises econômico-financeiras, passou a intervir de forma mais indireta na economia, preferindo regular os setores a atuar diretamente nos mesmos.
A redefinição do Estado brasileiro foi necessária quando se percebeu a enorme quantidade de estruturas viciadas e que geravam crises, sendo a desestatização de alguns setores a medida encontrada na busca de maior eficiência. Essa redefinição, diga-se, não quer dizer que o Brasil se tornou um Estado mínimo, mas sim que continua presente, embora assumindo uma postura mais indireta de intervenção.
Como ressalta Diogo de Figueiredo Moreira Neto
Após a Constituição de 1988 e, sobretudo, ao longo da década de 90, o tamanho e o papel do Estado passaram para o centro do debate institucional. E a verdade é que o intervencionismo estatal não resistiu à onda mundial de esvaziamento do modelo no qual o Poder Público e as entidades por ele controladas atuavam como protagonistas do processo econômico. (2003, pg. 21).
Assim, o Estado brasileiro que figurava como Social e burocrático, intervindo diretamente em diversos setores, com excesso de gastos públicos, passou a ter uma postura mais liberal. Tal postura tem como marco a Lei n° 8031/90, denominada de Programa Nacional de Desestatização. Referido diploma legal foi revogado pela Lei n° 9041/97, ainda vigente e que tem entre seus objetivos reordenar a posição estratégica do Brasil na economia, transferindo à iniciativa privada atividades tidas como indevidamente exploradas pelo setor público e permitir que a Administração Pública concentre seus esforços nas atividades em que a presença do Estado seja fundamental para a consecução das prioridades nacionais (art. 1°, I e IV, CF).
Fato é que o Estado não pode deixar de cuidar para que as atividades sejam exercidas corretamente pelos particulares e, assim, surge a necessidade de elaboração de regras específicas a gerir determinados setores, tendo em vista um adequado serviço prestado à coletividade, posto a intervenção indireta do Estado não implicar na falta de responsabilidade deste.
A redução expressiva das estruturas públicas de intervenção direta na ordem econômica não produziu um modelo que possa ser identificado com o de Estado mínimo. Pelo contrário, apenas se deslocou a atuação estatal do campo empresarial para o domínio da disciplina jurídica, com ampliação de seu papel na regulação e fiscalização dos serviços públicos e atividades econômicas. (MOREIRA NETO, 2003, pg. 25).
É nesse contexto que surgem as Agências Reguladoras com a finalidade exatamente de controlar certos setores, não apenas de exploração de atividades econômicas, mas também de prestação de serviços públicos objetos de concessão e permissão.
Esse controle se dará por atividade regulatória através de normas, além de contar com atuação fiscalizatória e sancionadora quando não obedecidas as regras emanadas. Não se pode olvidar, ainda, das atividades de fomento e educativas das Agências Reguladoras, sendo certo que o conteúdo da regulação variará a depender do setor.
2.2 NATUREZA JURÍDICA E CARACTERÍSTICAS DAS AGÊNCIAS REGULADORAS
As Agências Reguladoras são Autarquias, com atribuições típicas de Estado e, dessa forma, são Pessoas Jurídicas de Direito Público, criadas por Lei específica e integrantes da Administração Pública Indireta.
Por serem Autarquias, as Agências Reguladoras seguem o Regime Jurídico de Direito Público, com prerrogativas e sujeições no exercício de suas funções e, de outra banda, tem personalidade jurídica própria que garante autonomia no tocante às opções políticas do Governo.
Entende-se que o legislador atribuiu às Agências Reguladoras a denominação de Autarquias em Regime Especial, nome este presente em várias leis criadoras de Agências, a exemplo das Leis n° 9478/97 (art. 7°) e a Lei n° 9472/97 (art. 8°).
O regime especial conferido às Agências Reguladoras visa garantir às mesmas uma maior liberdade no exercício de suas atribuições, afastando o receio de interferências indevidas, tanto por parte do Estado, quanto de seus agentes.
Nesse diapasão, pode-se dizer que as Agências Reguladoras têm um regime especial, pois, além de deterem autonomia político-administrativa e econômico-financeira, apresentam peculiaridades que Autarquias comuns não possuem, peculiaridades essas relativas à maior autonomia e independência que as Agências Reguladoras têm em relação ao Poder Político Central, a exemplo de seu Poder Normativo, a estabilidade dos seus dirigentes e a possibilidade de solver litígios entre os agentes de mercado ou delegatários de serviço, agindo como mediadoras de conflitos no âmbito das atividades por elas controladas, sendo certo que outras características para esse regime especial dependem das respectivas Leis de criação das Agências.
A seguir serão apresentadas, em linhas gerais, as principais características das Agências Reguladoras que possibilitam afirmar que as mesmas possuem um regime especial.
2.2.1 Estabilidade dos Dirigentes – Independência Administrativa
A lei n° 9986/2000 dispõe sobre a gestão de recursos humanos no âmbito das Agências Reguladoras Federais e entre suas disposições cuida da questão referente à estabilidade dos dirigentes das Agências, ponto esse essencial na garantia da autonomia dos mesmos no exercício de suas funções.
O artigo 9° do mencionado diploma legal deixa claro que os Conselheiros e Dirigentes das Agências Reguladoras não podem ser demitidos ad nutum, só perdendo o mandato em caso de renúncia, condenação judicial transitada em julgado ou por processo administrativo disciplinar.
Ressalte-se, ainda, que os dirigentes das Agências Federais serão escolhidos pelo Presidente da República e por ele nomeados, após aprovação pelo Senado Federal.
O objetivo do mandato fixo e estabilidade é que os dirigentes possam realizar seu trabalho sem receios de possíveis interferências externas, isto é, independência administrativa das Agências em última análise.
Quanto aos dirigentes cabe ressaltar, ainda, a determinação de que os mesmos se submetam a uma espécie de ‘quarentena’ após o fim do mandato, sendo esse um período fixado em Lei, no qual o ex-dirigente não poderá prestar qualquer serviço, ainda que indiretamente, a empresas reguladas e fiscalizadas pela Agência Reguladora a qual era vinculado. Em razão de tal vedação, no período de quarentena o ex-dirigente perceberá o valor correspondente ao mandato que exercia.
2.2.2 Agências Reguladoras como mediadoras de conflitos – Autonomia Decisória
Além da questão já abordada quanto aos dirigentes das Agências Reguladoras, há também outra característica destas que lhe dão a denominação de Autarquias em regime especial, como a possibilidade de mediarem conflitos entre os regulados. Explica-se.
Fato é que a função de resolver conflitos, em que pese típica, não é exclusiva do Poder Judiciário, sendo tal função exercida atipicamente pelos demais poderes da Federação. As Agências Reguladoras, Autarquias Especiais, também têm como peculiaridade a possibilidade de solver conflitos dos particulares exercentes da atividade regulada, bem como entre estes e o próprio Poder Público.
Essa aptidão de dirimir conflitos está diretamente relacionada ao Poder Normativo das Agências, posto a mediação ser feita com base na interpretação das normas.
É importante ressaltar que a autonomia e independência das Agências pressupõem um posicionamento neutro e imparcial na mediação dos conflitos, sendo o objetivo o adequado funcionamento do setor regulado. Ademais, por serem especializadas, entende-se que a solução dada ao conflito será mais célere e técnica.
Busca-se com tal peculiaridade as soluções com base em consenso dos interessados, a partir de concessões recíprocas, o que nem sempre é possível, cabendo, então, à Agência decidir. Neste ponto, surge o questionamento acerca da possibilidade de recurso contra as decisões técnicas proferidas pelas Agências Reguladoras.
A divergência encontrada é no tocante ao cabimento do recurso hierárquico impróprio, isto é, aquele recurso dirigido a uma autoridade superior e que não integra a mesma estrutura hierárquica do órgão prolator da decisão atacada.
Como Autarquias, as Agências Reguladoras não se subordinam hierarquicamente à Administração Direta, mas, de outra banda, são submetidas ao denominado controle finalístico pela vinculação. Nesse passo, há entendimento de que cabe recurso administrativo impróprio para o Ministério à qual se vincula a Agência, desde que haja previsão legal autorizativa.
José dos Santos Carvalho Filho, por sua vez, entende ser inadequado tal controle por recurso hierárquico impróprio, considerando-se que as ações das Agências Reguladoras são dotadas de maior independência.
Semelhante controle traduz uma forma de supervisão ministerial, inadequada para as agências em virtude de sua peculiar fisionomia de ser dotada de maior independência quanto a suas ações. Embora tenham que estar necessariamente vinculadas à Administração Direta (normalmente, a um Ministério ou Secretaria Estadual ou Municipal), não podem sofrer o mesmo tipo de controle a que se submetem as demais pessoas da administração indireta. (CARVALHO FILHO, 2011, p.438).
Sobre o fundamento do recurso, questiona-se sobre se esse é cabível quando as decisões das Agências extrapolarem o âmbito técnico regulado, ou se abrangem também decisões estritamente técnicas.
Parece que, pela autonomia das Agências Reguladoras e seu poder de regulação técnica, caso a decisão obedeça aos parâmetros previstos em lei, tem-se que não há que se falar em recurso hierárquico impróprio. Por outro lado, se a decisão invadir outras competências o recurso é plenamente cabível, pois as Agências integram um todo maior, devendo respeitar as políticas públicas e as prioridades do Estado.
2.2.3 Controle diferenciado das Agências Reguladoras
Como já assinalado, as Agências Reguladoras possuem autonomia administrativa e financeira. Tal fato, porém, não impede o controle finalístico no âmbito de suas atuações, como ocorre com as Autarquias comuns.
Assim, as Agências Reguladoras devem prestar contas aos Tribunais de Contas, sendo também controladas pelos Três Poderes, sendo o controle político realizado pelo Poder Legislativo, nos termos do artigo 49, X, da Constituição Federal, controle este auxiliado pelas Cortes de Contas, conforme o artigo 71 da Magna Constituição, no tocante ao controle financeiro-orçamentário.
E, claro, o Poder Judiciário pode realizar o controle jurídico, este a posteriori e unicamente de Legalidade, razoabilidade e proporcionalidade (art. 5°, XXXV, CF), sendo certo que os elementos resultantes de valoração acerca da conveniência e oportunidade do ato, “como ocorre com os atos administrativos em geral, revelam o regular exercício da função administrativa e são privativos dos agentes administrativos, estando, por conseguinte, excluídos de apreciação judicial”. (CARVALHO FILHO, 2011, p. 442).
Não se pode olvidar, ainda, do controle exercido pela população (artigo 74, §2°, CRFB).
3 O PODER NORMATIVO DAS AGÊNCIAS REGULADORAS
Já é sabido que, com a mudança do modelo estatal brasileiro nas últimas décadas, a Administração Pública passou a interferir de forma mais indireta nos serviços e atividades econômicas, adotando uma postura mais reguladora e fiscalizatória.
Pode-se dizer que, na conjuntura atual, o Estado brasileiro tem maior foco no planejamento, controle e regulação, abstendo-se de exercer diretamente determinadas atividades que considera melhor exercidas pela iniciativa privada.
A década de 1990 marcou a acentuação do movimento de privatização no Brasil, bem como da instituição das Agências Reguladoras. Segundo Maria Sylvia Zanella Di Pietro, a justificativa para tanto é que
[...] com a privatização de empresas estatais prestadoras de serviços públicos e a instituição de concorrência entre as mesmas, havia necessidade de órgão especializado para organizar o setor, manter o equilíbrio do mercado e resolver os conflitos entre as prestadoras de serviços ou entre estas e os usuários (2004, pg. 37).
Nesse passo, foram criadas diversas Agências Reguladoras com o objetivo de regular e fiscalizar setores específicos, a exemplo da ANATEL (telecomunicações), ANEEL (energia elétrica), ANA (água), ANTT (transportes terrestres), entre outras.
Registre-se que as atividades de regulação por normatização, fiscalização, sanção e fomento das Agências podem variar casuisticamente, no sentido de dependerem das Leis criadoras de tais Autarquias Especiais.
Quanto ao Poder Normativo, este é objeto de intenso debate em razão de as Agências Reguladoras poderem criar normas que, em que pese secundárias - não são atos legais em sentido estrito, mas infralegais - são dotadas de generalidade e abstração, para observância daqueles que atuem no ramo regulado.
Doutrinariamente há diversas tentativas de explicação do poder normativo das Agências Reguladoras. Para alguns, esse poder tem por base uma “deslegalização” de certas matérias, passando ao domínio dos regulamentos e não de lei; outros aduzem que o poder normativo das Agências é um poder regulamentar delegado, enquanto há ainda quem diga que o poder normativo não pode inovar no ordenamento, devendo ser estritamente técnico.
Para os defensores da tese da “deslegalização” as Agências Reguladoras podem exercer suas atribuições normativas livremente, desde que no limite do autorizado pela Lei criadora da mesma. A “deslegalização” seria, assim, uma técnica pela qual o Poder Legislativo possibilita à entidade da Administração o exercício de regulação de determinada matéria, tirando-a do domínio do legislador.
Dessa forma, segundo tal teoria, por não implicar a “deslegalização” uma delegação propriamente dita de poder, não haveria, nesse caso, inconstitucionalidade na atuação reguladora das Agências, a qual seria uma política legislativa realizada com base num poder regulatório previsto na própria Constituição Federal, que aduz a existência de órgãos reguladores.
Tal entendimento é defendido, por exemplo, por Diogo de Figueiredo Moreira Neto, o qual aduz que a “deslegalização” seria “a retirada, pelo próprio legislador, de certas matérias, do domínio da lei (domaine de laloi) passando-as ao domínio do regulamento (domaine de l’ordonnance)”. (2003, pg. 122)
A lei de deslegalização não necessita, assim, sequer penetrar na matéria a ser tratada, bastando que abra a possibilidade a quaisquer outras fontes normativas, estatais ou não, de regulá-la por atos próprios que, por óbvio, não serão de responsabilidade do Poder Legislativo, ainda que sobre eles possa e deva continuar a ser exercido um controle político sobre eventuais exorbitâncias. (MOREIRA NETO, 2003, pg. 122).
Registre-se que há posicionamentos contrários à “deslegalização”, geralmente embasados no princípio da separação dos poderes, visando evitar que atos normativos secundários usurpem o papel da Lei. Nesse contexto, faz-se necessária a determinação dos limites legítimos de flexibilização do princípio da legalidade para o adequado entendimento do Poder Normativo das Agências Reguladoras.
O crescimento do papel do Executivo, alimentado pela necessidade moderna de agilidade nas ações estatais e pela relação cada vez mais próxima entre ação estatal e conhecimentos técnicos especializados, acabou por exigir uma nova leitura do princípio (legalidade), e nessa linha é que se admite hoje a distinção entre reserva absoluta e reserva relativa de lei, de um lado e, de outro, entre reserva de lei formal ou material. (MOREIRA NETO, 2003, pg. 56).
Para o mencionado autor, a ideia de legalidade estrita teve sua rigidez reduzida, no sentido de haver, no modelo atual de Estado, maior espaço de normatização por parte da Administração Pública. Obviamente essa liberdade é contida pelo próprio princípio da Legalidade, essencial na defesa dos direitos e constitucionalmente previsto no artigo 5°, inciso II da Constituição Federal.
Assim, a “deslegalização” implicaria na possibilidade de transferência de competências normativas para um ente integrante da Administração, como as Agências Reguladoras, em razão da necessidade de conhecimentos técnicos especializados na regulação dos setores de mercado.
Já o jurista José dos Santos Carvalho Filho tem o seguinte entendimento sobre a “deslegalização”:
Na verdade, não há, como supõem alguns estudiosos (equivocadamente, a nosso ver), transferência do poder legiferante a órgãos ou pessoas da Administração, mas tão somente o poder de estabelecer regulamentação sobre matéria de ordem técnica que, por ser extremamente particularizada, não poderia mesmo estar disciplinada na lei. Por conseguinte, nenhuma ofensa estará sendo perpetrada ao princípio da reserva legal contemplado em âmbito constitucional. (CARVALHO FILHO, 2011, p. 437).
Então, nesse âmbito, quais seriam os limites constitucionais a essa “deslegalização”?
Tem-se que, por vezes, há necessidade de as normas serem mais detalhadas a fim de garantir-se uma regulação concreta e efetiva. Sabe-se que as leis em sentido formal são dotadas de abstração e, nesse contexto, o Poder Legislativo pode optar apenas pela imposição direta de condutas ou pode escolher por dispor apenas sobre finalidades. Nessa segunda opção, segundo a tese ora apresentada, as normas específicas serão elaboradas pela “deslegalização”, ou seja, serão normas secundárias, mas legitimadas. (MOREIRA NETO, 2003, pg. 122).
Importante que se ressalte que a norma reguladora emanada com base na “deslegalização” não possuirá natureza jurídica de uma norma legal, já que deriva de uma norma dessa natureza, a qual lhe confere a validade e os limites necessários. Assim, pode-se dizer que é limite à “deslegalização” a reserva legal estrita, quando se exige lei formal emanada pelo Poder Legislativo sobre um determinado tema.
Em que pese o interessante raciocínio da tese da “deslegalização”, é necessário bastante cuidado na sua interpretação, sobretudo em razão dos princípios da separação dos poderes e da legalidade, sendo certo que as normas emanadas pelas Agências Reguladoras os terão como limites.
Nesse ínterim, fato é que nem todos são a favor da tese acima exposta. Os contrários a tal entendimento aduzem que as únicas matérias que podem ser ‘delegadas’, nos termos da Constituição Federal, são aquelas previstas no artigo 62 (Medidas Provisórias) e no artigo 68 (Leis Delegadas) da Constituição Federal, não cabendo, assim, ao administrador atuar como legislador.
Para Celso Antônio Bandeira de Mello agir dessa forma implicaria uma delegação disfarçada, não cabendo a órgãos da Administração inovar na ordem jurídica, devendo suas normas ficarem adstritas a aspectos técnicos.
Dado o princípio constitucional da legalidade e consequente vedação a que atos inferiores inovem inicialmente na ordem jurídica, resulta claro que as determinações normativas advindas de tais entidades hão de se cifrar a aspectos estritamente técnicos, que estes, sim, podem, na forma da lei, provir de providências subalternas. (MELLO, 2003, pg. 157).
Também Maria Sylvia Zanella Di Pietro é contrária à tese da “deslegalização”, aduzindo que a mesma só seria possível se realizada no próprio texto constitucional, não por lei infraconstitucional.
Quanto à deslegalização de matérias – que significa tirar determinada matéria da competência legislativa – somente seria aceitável se feita pela própria Constituição. Não pode ser feita por lei ordinária porque isto implicaria retirar da competência do Poder Legislativo, competência que lhe foi outorgada pela Constituição. (DI PIETRO, 2004, pg. 45).
Outra tese acerca do Poder Normativo das Agências Reguladoras é a de que esse poder é semelhante ao Poder Regulamentar exercido pelo Chefe do Poder Executivo (art. 84, IV, CF).
Para Marçal Justen Filho “a competência para editar regulamentos não é privativa do Presidente da República, mas se distribui entre as diversas entidades integrantes da Administração Pública” (2006, pg. 478).
Para o citado autor, negar a atribuição de competência normativa abstrata às Agências Reguladoras implicaria numa atividade administrativa centralizada e sem a influência devida na regulação de setores específicos.
A figura das Agências Reguladoras se insere no processo de dissociação entre a prestação de serviços públicos e sua regulação. Mais ainda, é resultado da proposta de assegurar que a disciplina dos serviços públicos seja norteada por critérios não exclusivamente políticos. (...) Talvez a grande inovação trazida pela proposta das Agências Reguladoras seja a concentração em uma única instituição autárquica de diversas características que existiam isoladamente em certos órgãos. (JUSTEN FILHO, 2006,pg. 475).
No entanto, em que pese o entendimento do raciocínio do renomado autor, não se acompanha o mesmo no tocante à ideia de que o poder normativo das Agências Reguladoras se assemelha ao Poder Regulamentar dos Chefes do Poder Executivo. Isto porque, as normas emanadas pelas Agências Reguladoras não são propriamente regulamentadoras de Lei, como são os decretos executivos e, além disso, entende-se que o Poder Regulamentar foi conferido unicamente aos Chefes do Executivo, não podendo ser delegado às Agências, portanto.
O Poder Regulamentar, nos termos do artigo 84 da Constituição, foi conferido, com exclusividade, ao Presidente da República (Chefes do Poder Executivo), o qual o realiza através dos regulamentos de execução (inciso IV) e regulamentos “autônomos” (inciso VI), com delegação restrita nesta última hipótese.
Pode-se conceituar o regulamento em nosso Direito como ato geral e (de regra) abstrato, de competência privativa do Chefe do Poder Executivo, expedido com a estrita finalidade de produzir as disposições operacionais uniformizadoras necessárias à execução de lei cuja aplicação demande atuação da Administração Pública. O regulamento previsto no art. 4°, VI, é uma limitadíssima exceção, e apresenta uma fisionomia toda ela peculiar. (MELLO, 2003, pg. 317).
Observa-se, destarte, pelas teses até aqui expostas como é tênue a linha entre a regulação por normatização feita pelas Agências Reguladoras e os limites dessa regulação frente aos princípios da legalidade e o da separação dos poderes.
Então, qual seria o fundamento a garantir o poder normativo das Agências Reguladoras, consubstanciado na possibilidade destas editarem atos normativos gerais e abstratos para observância obrigatória aos exercentes de determinada atividade?
Considerando que as Agências Reguladoras foram criadas em momento de desestatização de várias atividades no Brasil, tendo a finalidade de regular tecnicamente a atuação dos particulares nos setores determinados, entende-se que a regulação realizada pelas Agências não deve inovar no ordenamento jurídico, pois não se dá por meio de Lei e não está, igualmente, regulamentando leis, mas sim, criando normas técnicas e econômicas numa regulamentação mais específica e eficiente do mercado.
Assim, como afirma Celso Antônio Bandeira de Mello, as disposições das normas emanadas pelas Agências Reguladoras devem ser estritamente técnicas, estando abrangidas pelo campo da chamada ‘supremacia especial’ (2003, pg. 157).
Ainda quanto à fundamentação do Poder Normativo das Agências Reguladoras, importante trazer à baila que a Constituição Federal previu em seus artigos 21, XI e 177, §2°, III, a instituição de órgãos reguladores das telecomunicações e do petróleo, respectivamente.
Para Maria Sylvia Zanella Di Pietro, quando o legislador constitucional quis prever a competência normativa para um órgão administrativo, o fez de forma expressa, aduzindo a autora, assim, que, reconhecer essa competência no tocante a outros órgãos e entidades que não os previstos no texto constitucional, violaria a própria Constituição e, consequentemente, o princípio da legalidade. (2004, pg. 43-44).
De todo modo, reconhecendo a existência de outras Agências Reguladoras além das relativas a petróleo e telecomunicações, aduz a doutrinadora que as normas emanadas pelas Agências em geral devem observar a hierarquia normativa do ordenamento jurídico brasileiro.
[...] mesmo as Agências Reguladoras das telecomunicações e do petróleo, previstas na Constituição como órgãos reguladores, ao baixar normas voltadas à ‘regulação’ dos setores que lhes são afetos, têm que observar a hierarquia das normas, inclusive a superioridade das normas regulamentares baixadas pelo Chefe do Poder Executivo, titular único da função. (DI PIETRO, 2004, pg. 44).
Nesse contexto, Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2004, pg. 45) complementa afirmando que “admitir que as Agências Reguladoras possam baixar regulamentos autônomos seria admitir que elas podem exercer poder maior do que o Chefe do Poder Executivo”.
Afasta, assim, a autora, a tese de que as Agências exercem Poder Regulamentar semelhante ao do Chefe do Poder Executivo, mas sim tem um poder de editar normas de regulação de um setor específico, sendo criadas para esse fim, conforme também aduz Celso Antônio Bandeira de Mello, já citado ao longo deste trabalho.
Entende-se que a regulação feita pelas Agências Reguladoras tem como objetivo disciplinar, coordenar e fiscalizar um determinado setor, definindo parâmetros técnicos a serem observados pelos atuantes na área, visando evitar desvios e garantir eficiência e bons resultados na atividade, sendo o fim principal o atendimento ao interesse público.
Nesse raciocínio, interessante é a definição da professora Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2004, pg. 23), no tocante à regulação estatal como “o conjunto de regras de conduta e de controle da atividade econômica pública e privada e das atividades sociais não exclusivas do Estado, com a finalidade de proteger o interesse público”, abrangendo, assim, tanto a regulação econômica, quanto a regulação social. Nesse passo, a autora aduz que tal conceito de regulação se encontra diretamente ligado às Agências Reguladoras e seu Poder Normativo.
Segundo Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2004, pg. 26), para que se possa entender o papel regulador desempenhado pelas Agências Reguladoras, importante a compreensão de que a atividade regulatória se enquadra no próprio conceito de poder de polícia, ao definir regras de conduta e controle, tendo por finalidade salvaguardar o interesse coletivo.
Fato é que o poder de polícia, tendo em vista o princípio da legalidade, não pode implicar em criação de obrigações e vedações sem que as mesmas estejam previstas em lei, pois “o Poder Legislativo, no exercício do poder de polícia que incumbe ao Estado, cria, por lei, as chamadas limitações administrativas ao exercício das liberdades públicas” (DI PIETRO, 2004, pg. 27).
De outra banda, não se pode olvidar que o princípio da legalidade não traz um impedimento total ao Poder Executivo de, através de atos normativos, exercer sua parcela do Poder de Polícia. Obviamente, esses atos normativos estarão subordinados hierarquicamente à lei.
Segundo tal raciocínio, o Poder Normativo das Agências Reguladoras implica na criação de normas técnicas de regulação de determinado setor, definindo regras de conduta dos atuantes no ramo específico, tendo por fim último o atendimento dos interesses da coletividade.
Interessante mencionar também o entendimento da professora Maria Sylvia Zanella Di Pietro acerca da legitimação do Poder Normativo das Agências Reguladoras a partir da participação dos interessados na regulação. Para a autora, a regulação realizada pelas Agências implica num novo tipo de direito, o qual deve resultar de um consenso com os interessados.
Esse é um tipo de direito que pode ser baixado pelas Agências brasileiras, exatamente porque resulta de negociação com os interessados. Mas deve colocar-se em nível inferior às normas estatais, inclusive aos regulamentos baixados pelo Chefe do Poder Executivo. (DI PIETRO, 2004, pg. 48).
Nesse diapasão, as normas emanadas pelas Agências Reguladoras brasileiras retirariam sua legitimidade da participação dos interessados. Por isso, a autora critica o fato de as Agências brasileiras terem se inspirado no modelo norte-americano, sem, contudo, adotar o procedimento de participação ali utilizado, ao menos não de forma obrigatória.
Também aduz a autora que a existência de entes reguladores no Brasil não é novidade, afirmando que “sejam órgãos, autarquias ou agências, a atividade regulatória não muda a sua natureza e não se alteram os seus limites” (DI PIETRO, 2004, pg. 28).
Vê-se, destarte, que a doutrina brasileira possui os mais variados posicionamentos no tocante ao poder normativo das Agências Reguladoras, sendo certo que, reconhecendo-se as vantagens de uma regulação específica de um setor por meio de normas emanadas por entes próprios de regulação, fiscalização e controle, faz-se necessário um cuidado especial na observância dos limites dessa regulação em face do princípio da legalidade.
Fato é que, independentemente da denominação escolhida e dos fundamentos defendidos pela doutrina acerca do Poder Normativo das Agências Reguladoras, tais Autarquias Especiais o possuem e o exercem na regulação de setores específicos e determinados, tendo importante papel na intervenção estatal em prol do interesse coletivo.
E, assim, tem-se como correto o entendimento do professor José dos Santos Carvalho Filho, o qual reconhece o Poder Normativo das Agências Reguladoras, ressaltando, porém, a necessidade de verificação do regular exercício desse Poder.
Semelhante poder tem suscitado alguns questionamentos, inclusive quanto à sua constitucionalidade. Não vemos, porém, qualquer óbice quanto à sua instituição, de resto já ocorrida em outros sistemas jurídicos. O que nos parece inafastável é a verificação, em cada caso, se foi regular o exercício do poder ou, ao contrário, se foi abusivo, com desrespeito aos parâmetros que a lei determinou. Consequentemente, o poder normativo técnico não pode deixar de submeter-se a controle administrativo e institucional. (CARVALHO FILHO, 2011, p. 436-437).