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A alegação de simulação como alternativa à tese de alienação fraudulenta de bens

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09/03/2016 às 14:08
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3. A ALEGAÇÃO DE SIMULAÇÃO COMO ALTERNATIVA

A simulação, prevista nos arts. 166 (incisos III e VI, que tratam de ilicitude de motivos) e 167 do Código Civil[18], pode ser considerada a fraude em seu sentido mais extenso, não apenas por sua definição, mas também por conta da multiplicidade de origens da causa simulandi[19].

No que concerne à definição, parece-nos suficiente a lição do jurista e autor do projeto do Código Civil de 1916, Clóvis Beviláqua:

“Diz-se que há simulação, quando o ato existe apenas aparentemente, sob a forma em que o agente o faz entrar nas relações da vida. É um ato fictício, que encobre e disfarça uma declaração real da vontade, ou que simula a existência de uma declaração que se não fez”[20].

Tais atos fictícios ou inverídicos são indiscutivelmente comuns, embora de difícil constatação, pois a eles subjaz uma extensa gama de motivos, incluindo a fraude ao fisco e o prejuízo indiscriminado a credores.

O ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Orosimbo Nonato, tratou na obra Fraude contra credores a respeito dos traços que diferenciam a simulação e a fraude. Com apoio no magistério de Antonio Butera e outros juristas, Nonato defende que a simulação, a priori, diz respeito a um negócio fictício, enquanto que a fraude se associa a um negócio sincero, de fato querido pelo autor ou agente[21]. O autor ainda acrescenta, no que diz respeito às ações que visam, em cada caso, combater o ilícito:

“A de simulação, quando armada para mostrar o fictício do ato, paragona-se à pauliana. Assim em um caso como em outro, ocorre manobra fraudulenta do devedor. Nas duas hipóteses, peleja o credor por fazer incidir a execução no bem alienado – fingidamente ou não – pelo devedor.

Na pauliana, dá-se alienação real para revogada; na simulação ocorre transferência fingida, dá-se um simulacro de transferência, que se faz mister desvelar para a execução do credor”[22] (grifo no original).

No caso apresentado em nossa introdução, parece bem clara a configuração da simulação em sua absoluta forma, visto que, na prática, os bens doados continuam sob administração do executado, porém a título de usufruto.

Não se pode negar que a doação em vida de bens a herdeiros é aceita pelo ordenamento jurídico pátrio. Se, todavia, a esse propósito se soma ou se nele se encobre a intenção de impedir que credores tenham acesso aos bens transferidos, a nulidade da doação restará evidente, pois ao menos um dos motivos que moviam o doador estava obnubilado e se traduzia numa ilicitude.

De todo modo, merece destaque o fato de que, para o reconhecimento da simulação, não se exige do credor provas tais como as requeridas para atesto da fraude à execução ou fraude contra credores. Assim, o que se eleva na situação de ato simulado é a constatação objetiva do ardil, o que levou, algum tempo depois (no nosso caso-exemplo), à frustração das execuções ajuizadas contra o agente. Por outro lado, na fraude contra credores e fraude à execução, em vez de se desvelar o ato oculto ou fictício, prepondera o dever de demonstrar o prejuízo que causou a fraude – a ocorrência do consilium fraudis e do eventus damni constitui as condições da ação pauliana, já que o negócio, nesse caso, era verdadeiro e não aparente[23].

Vê-se, portanto, que a diferença entre a ação pauliana e o pedido de nulificação de ato simulado, quanto à finalidade, apenas se revela à medida que são diversas as situações de fraude stricto sensu e simulação, como apontado alhures, sendo a segunda, de certa forma, mais abrangente. No entanto, a diferença entre essas ações não se resume ao já exposto, e aqui o interesse da Fazenda Pública se acentua.

Nesse ponto, recorremos mais uma vez à lição de Orosimbo Nonato, que acentua não competir a ação pauliana aos credores posteriores à fraude, ao passo que a ação de simulação se abre a todos os credores, indiscriminadamente. Eduardo Espínola, citado pelo ex-ministro, elucida:

“No caso de atos fraudulentos apenas os credores anteriores poderão dizer-se por eles prejudicados e não os posteriores, pois quando adquiriram essa qualidade já os bens aludidos se não achavam no patrimônio do devedor, não podendo, assim, contar com eles para a garantia geral de seus créditos (...). Na simulação, as coisas se passam de modo diverso; os bens aparentemente alienados não saíram efetivamente do patrimônio do devedor”[24].

Assim sendo, abre-se ao exequente a possibilidade de, em específicas situações, perquirir acerca da intenção do executado ao praticar determinado ato de disposição de bens, sobretudo quando esse ato é mais antigo que o crédito que se busca satisfazer. E, nessas situações, ao contrário do que se vê na fraude contra credores e fraude à execução, não é preciso se atentar à má-fé do terceiro, ainda que por presunção legal, pois diante do ato simulado não importa terem o adquirente e o devedor consciência da redução desse último à insolvência[25].


CONSIDERAÇÕES FINAIS

O tema ora retratado, decerto, não poderia se esgotar nas linhas acima escritas, nas quais trouxemos tão-somente um caso concreto, até certo ponto emblemático, para retratar a dificuldade enfrentada pelos credores para obter a garantia de seus créditos, isso em face não apenas da ardilosidade e astúcia dos devedores, mas sobretudo perante os engessados mecanismos legais que buscam resguardar a boa-fé nos negócios.

Como se viu, os tradicionais institutos que permitem a anulação ou declaração de nulidade de determinados negócios são insuficientes para contemplar a multidão de possibilidades, para um devedor, de manter seu patrimônio (sobretudo bens imóveis) em detrimento da dívida crescente, o que só agrava o quadro de insegurança jurídica hoje observado na atividade empresarial brasileira.

Com efeito, um ordenamento jurídico que protege em excesso o devedor – e não estamos falando da impenhorabilidade dos bens de família – corrobora com a manutenção de altas taxas de juros bancários e com a sensação de desequilíbrio de forças entre quem paga tempestivamente suas obrigações e quem faz uso cotidiano da inadimplência para competir no mercado.

Além do exemplo trabalhado neste artigo – a doação de bens a herdeiros com reserva de usufruto –, poderíamos citar outros casos que dificilmente seriam revertidos por fraude à execução ou fraude contra credores: uma questionável permuta de bens entre empresas endividada e sã, execução trabalhista promovida por parente de sócio da empresa, dação em pagamento suspeita... a depender das particularidades em concreto, não haveria solução aberta ao credor. A não ser apresentar a tese de simulação.

Entretanto, justamente pela existência dos tradicionais institutos de fraude, há certa resistência dos operadores jurídicos quanto à consideração da simulação como um instrumento inibidor dos negócios inidôneos praticados às vésperas de um processo de execução. Fazemos votos para que essa resistência seja vencida em breve.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ASSIS, Araken de. Manual da execução. 14ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012.

BEVILÁQUA, Clóvis. Teoria Geral do Direito Civil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1980.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 2ª ed., 33ª imp. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996.

GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil, vol. I. 11ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

LEMOS Jr, Eloy Pereira; SILVA, Raul Sebastião Vasconcelos. Reorganização societária e blindagem patrimonial por meio de constituição de holding. Londrina: Scientia Iuris, v. 18, n. 2, p. 55-71, dez. 2014.

MAMEDE, Gladston; MAMEDE, Eduarda Cotta. Blindagem patrimonial e planejamento jurídico. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2012.

MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil, vol. 1. 31ª ed. São Paulo: Saraiva, 1993.

NONATO, Orozimbo. Fraude contra credores (da ação pauliana). Rio de Janeiro: Ed. Jurídica e Universitária, 1969.

RODRIGUES, Silvio. Direito Civil, vol. 1. 34ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003.

STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 7ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.


Notas

[1]     “Presume-se dissolvida irregularmente a empresa que deixar de funcionar no seu domicílio fiscal, sem comunicação aos órgãos competentes, legitimando o redirecionamento da execução fiscal para o sócio-gerente”.

[2]     Eis a redação do novel artigo:

“Art. 792.  A alienação ou a oneração de bem é considerada fraude à execução:

I - quando sobre o bem pender ação fundada em direito real ou com pretensão reipersecutória, desde que a pendência do processo tenha sido averbada no respectivo registro público, se houver;

II - quando tiver sido averbada, no registro do bem, a pendência do processo de execução, na forma do art. 828;

III - quando tiver sido averbado, no registro do bem, hipoteca judiciária ou outro ato de constrição judicial originário do processo onde foi arguida a fraude;

IV - quando, ao tempo da alienação ou da oneração, tramitava contra o devedor ação capaz de reduzi-lo à insolvência;

V - nos demais casos expressos em lei.

§ 1º A alienação em fraude à execução é ineficaz em relação ao exequente.

§ 2º No caso de aquisição de bem não sujeito a registro, o terceiro adquirente tem o ônus de provar que adotou as cautelas necessárias para a aquisição, mediante a exibição das certidões pertinentes, obtidas no domicílio do vendedor e no local onde se encontra o bem.

§ 3º Nos casos de desconsideração da personalidade jurídica, a fraude à execução verifica-se a partir da citação da parte cuja personalidade se pretende desconsiderar.

§ 4º Antes de declarar a fraude à execução, o juiz deverá intimar o terceiro adquirente, que, se quiser, poderá opor embargos de terceiro, no prazo de 15 (quinze) dias”.

[3]     Art. 158. Os negócios de transmissão gratuita de bens ou remissão de dívida, se os praticar o devedor já insolvente, ou por eles reduzido à insolvência, ainda quando o ignore, poderão ser anulados pelos credores quirografários, como lesivos dos seus direitos.

§ 1º Igual direito assiste aos credores cuja garantia se tornar insuficiente.

§ 2º Só os credores que já o eram ao tempo daqueles atos podem pleitear a anulação deles”.

[4]     Segundo Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, o verbo blindar tem o significado de pôr ao abrigo, proteger, resguardar, revestir (Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996).

[5]     Blindagem patrimonial e planejamento jurídico. São Paulo: Atlas, 2012, p. 43.

[6]     LEMOS Jr, Eloy Pereira; SILVA, Raul Sebastião Vasconcelos. Reorganização societária e blindagem patrimonial por meio de constituição de holding. Londrina: Scientia Iuris, v. 18, n. 2, p. 55-71, dez. 2014.

[7]     Manual da Execução. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 296.

[8]     Idem, ibidem.

[9]     ASSIS, Araken de. Ob. cit., p. 113.

[10]    GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil, vol. I. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 335.

[11]    Direito Civil, vol. 1. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 228.

[12]    Fraude contra credores. Rio de Janeiro: Ed. Jurídica e Universitária, 1969, p. 156.

[13]    Vide art. 64 da Lei 9.532/1997.

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[14]    “Art. 593. Considera-se em fraude de execução a alienação ou oneração de bens:

I - quando sobre eles pender ação fundada em direito real;

II - quando, ao tempo da alienação ou oneração, corria contra o devedor demanda capaz de reduzi-lo à insolvência;

III - nos demais casos expressos em lei.

(...)

Art. 615-A. O exeqüente poderá, no ato da distribuição, obter certidão comprobatória do ajuizamento da execução, com identificação das partes e valor da causa, para fins de averbação no registro de imóveis, registro de veículos ou registro de outros bens sujeitos à penhora ou arresto.

(...)

§ 3º Presume-se em fraude à execução a alienação ou oneração de bens efetuada após a averbação (art. 593)”.

[15]    Merece registro o disposto no art. 544 do Código Civil: “A doação de ascendentes a descendentes, ou de um cônjuge a outro, importa adiantamento do que lhes cabe por herança”.

[16]    Por sua relevância, transcrevemos o teor do artigo:

“Art. 2.003. A colação tem por fim igualar, na proporção estabelecida neste Código, as legítimas dos descendentes e do cônjuge sobrevivente, obrigando também os donatários que, ao tempo do falecimento do doador, já não possuírem os bens doados.

Parágrafo único. Se, computados os valores das doações feitas em adiantamento de legítima, não houver no acervo bens suficientes para igualar as legítimas dos descendentes e do cônjuge, os bens assim doados serão conferidos em espécie, ou, quando deles já não disponha o donatário, pelo seu valor ao tempo da liberalidade”.

[17]  STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, pp. 103-105.

[18]    “Art. 166. É nulo o negócio jurídico quando:

(...)

III - o motivo determinante, comum a ambas as partes, for ilícito;

(...)

VI - tiver por objetivo fraudar lei imperativa;

(...)

Art. 167. É nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido for na substância e na forma.

§ 1º Haverá simulação nos negócios jurídicos quando:

I - aparentarem conferir ou transmitir direitos a pessoas diversas daquelas às quais realmente se conferem, ou transmitem;

II - contiverem declaração, confissão, condição ou cláusula não verdadeira;

III - os instrumentos particulares forem antedatados, ou pós-datados”.

[19]    MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil, vol. 1. São Paulo: Saraiva, 1993, p. 208.

[20]    Teoria Geral do Direito Civil. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1980, p. 225.

[21]    Ob. cit., pp. 45-46.

[22]    Idem, p. 46.

[23]    Idem, pp. 49-50.

[24]    Idem, p. 48.

[25]    Idem, p. 50.

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Sobre o autor
Thiago Batista da Costa

Bacharel em Direito e pós-graduado pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Procurador da Fazenda Nacional em Caxias do Sul/RS

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA, Thiago Batista. A alegação de simulação como alternativa à tese de alienação fraudulenta de bens. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4634, 9 mar. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/46976. Acesso em: 23 abr. 2024.

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Este artigo é fruto de pesquisas e estudos empreendidos pelo autor após caso concreto vivenciado em sua atuação enquanto Procurador da Fazenda Nacional.

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